1 – Em sua opinião, qual a importância de eventos como o “Juventude e
Política na América Latina”, realizado pelo GEPPS (Grupo de Estudos e Pesquisa
sobre Política e Sociedade) em Cachoeira no dia 30/11/2012 do qual o Senhor participou?
Considero que todo evento universitário promovido com perfil histórico/político e que aborde nosso cenário continental é saudável para as comunidades discente e docente e para a população em geral porque estará retribuindo a inversão do cidadão que através dos impostos mantêm esses espaços públicos de estudo e capacitação profissional. Ainda mais quando o assunto é a juventude e as suas mobilizações na América Latina, um tema amplo e fundamental - embora pouco divulgado nos meios oficiais pelo congênito temor que os estudantes representam para os governos - que nos traz o exemplo das lutas dos estudantes em vários períodos da nossa história e nos atualiza sobre os movimentos contemporâneos. É bom citar, também, que num momento como o atual, em que raramente há efervescência estudantil nas ruas, com sua histórica participação nas lutas pela redução das tarifas dos ônibus, com suas marchas em defesa de condições de ensino dignas ou em apoio e solidariedade a outros temas e movimentos sociais, organizar eventos deste tipo serve para lembrar esse papel estudantil e para produção de conhecimento, reflexão, organização e tomadas de posições com vistas a novas disputas, no jogo político liberal-burguês, nas ruas ou no próprio âmbito acadêmico.
2 – Diante de sua experiência como documentarista, cujo trabalho constantemente enfoca movimentos sociais latino-americanos, o que singulariza os movimentos sociais brasileiros em relação ao dos países nos quais o Senhor já filmou?
A imensidão do Brasil já seria um primeiro atributo quanto à generalidade de assuntos e diversidade de respostas de movimentos sociais similares para um mesmo conflito. Estados brasileiros, quase países que abrigam focos de tensão em todo o território nacional, restringem, muitas vezes pelas distâncias a serem percorridas, a possibilidade de circulação contínua e oferecem matizes diferentes nas suas propostas e ações coletivas. Em geral, outros países mantêm uma certa identidade operacional e política nos seus movimentos, seja esta inclusive por motivos histórico/étnicos como na Bolívia onde é preponderante o tema indígena e não há grandes variações de respostas nos conflitos frente às multinacionais ou frente ao Estado, por exemplo. Isto pode representar soluções contundentes nesses países, coisa que no Brasil torna-se mais difícil. Aqui, o MST, movimento dos trabalhadores rurais sem terra, talvez seja o único movimento de massa que pode oferecer tamanha contundência, possivelmente pela sua extensão nacional, verticalidade e articulação política inclusive no exterior. O peso do latifúndio, a expansão do plantio da soja transgênica em imensos territórios, ou seja, o agronegócio sustentado pelo governo federal, a implementação de usinas hidrelétricas como a de Belo Monte também com amplo apoio do Palácio do Planalto, entre muitos outros focos de tensão social, são poderosos alicerces capitalistas que agridem o meio ambiente e o homem e a resposta popular a isto no Brasil se ressente pelas distâncias entre outras questões igualmente graves, aspecto que em países de menores dimensões é possível construir uma centralidade que afete com maior incidência o alvo pretendido. Por outro lado, pelo peso econômico o Brasil não pode se omitir quanto a ter uma imprensa que dispute espaço com a imprensa hegemônica que defende justamente essas agressões ao meio ambiente e ao trabalhador. Além de imprensa alternativa – entre as quais incluo o cinema de combate – construir outra poderosa quanto as que atuam no plano simbólico e por isto arraigadas no inconsciente popular. Países da América Latina enfrentam os tubarões financeiros e seus porta-vozes da imprensa e da TV quotidianamente com veículos de porte, além dos alternativos e as redes sociais. Em resumo, além das dimensões geográficas e culturais, poderia dizer que não há grandes diferenças na maneira em que os movimentos sociais afrontam a barbárie do sistema capitalista no nosso continente. Por mais prosaica que a frase possa parecer, a luta é uma só, do rio Bravo, na fronteira do México com os EUA á Terra do Fogo, na Argentina.
3 – Alguns de seus documentários retrataram personagens políticos ligados à esquerda: Che Guevara, Salvador Allende e Carlos Marighella. O que mais pesa no momento de escolher um biografado, a sua história de vida ou suas concepções ideológicas? Já pensou em retratar algum personagem político ligado à direita? Por quê?
Ambas pesam, sua história pessoal e sua história política, ambas caminham juntas quando se trata de personagens imbuídos de um compromisso social profundo nas suas vidas. Também são de fundamental importância suas concepções ideológicas e o reflexo que estas imprimiram na História da Humanidade, e se estas coincidem com as concepções do investigador, do documentarista, o circulo fecha perfeitamente. Não sou daqueles que aceitam qualquer contrato de trabalho e qualquer personagem para retratar, e se escondem no anti-sectarismo, tenho um compromisso facilmente reconhecível e expresso nas personagens e nos temas que abordo. É bom deixar claro que nesses documentários citados há recortes temporais precisos: em “Carabina M2, uma arma americana, Che na Bolívia” é abordado o período final da vida do Comandante Ernesto Che Guevara e a sua tentativa de incendiar o continente para enfrentar o imperialismo ianque a partir da selva boliviana; em “Buscando a Allende” a lente está no período da construção do socialismo através das urnas e a destruição do sonho pelo genocida Pinochet; em “Carlos Marighella, quem samba fica, quem não samba vai embora” é sua opção pela luta armada como resistência à ditadura que é ressaltada numa vida cheia de peripécias. Isto é, o retrato destes personagens é traçado justamente em cima de projetos de vida que misturam sua história e sua ideologia. Por questões inclusive de pequenos orçamentos e equipes ínfimas, abordar a vida inteira destes personagens seria muito dificultoso, recortar esses períodos já é bem complexo. Devo dizer que ao não trabalhar com roteiros definidos de antemão – só um plano de temas - cada um desses documentários se torna uma aventura de anos de pesquisa, com intensos mergulhos nos personagens e cujo roteiro final é construído à medida que o projeto avança – em paralelo com outros projetos - o que os torna muito mais complexos na sua construção do que um filme de ficção na hora de filmar, por exemplo, onde quase tudo já está estruturado desde o inicio.
Quanto à segunda parte da pergunta, abordei recentemente a vida e obra do maior pesquisador da guerra e do universo de Canudos: o sergipano José Calasans (“José Calasans, tradutor do sertão”), que teve na juventude ligações com o Integralismo de Plínio Salgado, mas o meu interesse foi a sua relação com o folclore e a Guerra de Canudos, tema que pesquiso há anos. Não é o que se consideraria uma personagem política, embora a Guerra de Canudos seja um tema caro a muitos pesquisadores à direita e à esquerda com intensa participação política na sociedade. Por outro lado, a vida de Juan Domingo Perón, controverso personagem latino-americano, alvo do interesse e de disputa de gerações argentinas de todas as cores políticas seria um tema interessantíssimo, embora sua esposa, Evita Perón me interesse muito mais como personagem, como persona dramática, como pessoa cultuada pelas esquerdas. Certa vez um colega me convidou a dirigir com ele um projeto denominado mais ou menos assim: “ACM, mito e verdade” aí eu disse: você faz a parte do mito, eu o da verdade. O projeto não foi adiante. Fiz sim, recentemente, um trabalho sobre a dançarina de pagode e vereadora transexual Leo Kret (no youtube tem o trailer: “Leo Kret do Brasil, o filme”) a convite da sua assessoria, que atua nos quadros de um partido de direita e religioso, mas o meu interesse foi a questão da diversidade sexual no âmbito parlamentar, a possibilidade de arejar os corredores dos poderes municipais com algo novo inclusive politicamente - infelizmente não deu nenhum resultado justamente por se cercar dos “profissionais” desses corredores - e a discussão sobre a dinâmica eleitoral que a levou até a Câmara Municipal de Salvador em 2008. Diria que abordo uma figura histórica daquelas citadas na primeira parte da pergunta quando sinto essa necessidade de trazer a tona períodos importantes da nossa história, vidas exemplares, tanto quanto o impulso que essas informações contidas nos filmes podem representar para ações políticas contemporâneas ou pelo menos para elucidar aspectos similares de nossa época. É um pouco como o meu trabalho na poesia, o tema, a personagem tem que ter sua contundência sensorial para iniciar um trabalho.
4 – Durante o evento “Juventude e Política na América Latina” foram exibidos dois de seus documentários, “A revolta do Buzú” (2003) e “La rebelión Pingüina” (2006), ambos sobre o movimento estudantil. Quais as diferenças e semelhanças entre esses dois movimentos?
De início, a semelhança óbvia: seus atores principais, os estudantes secundaristas. Nas duas, a participação de estudantes universitários foi pequena embora tenha havido solidariedade com o correr dos dias. As duas manifestações se iniciaram pelo aumento da tarifa dos ônibus urbanos. Só que no Chile essa demanda foi rapidamente superada para atingir propostas de transformações estruturais da educação, num pais cuja educação está quase toda privatizada. Na Bahia, o tema tarifário sempre foi excludente, embora outras antigas reivindicações do movimento estudantil - que finalmente foram atendidas - acabaram pautando a agenda. E foi isto o que criou fricções entre as diversas linhas organizativas estudantis, uns com a proposta originária de baixar a tarifa em aberto confronto com os empresários e a Prefeitura e outros grupos ligados a partidos com propostas de cunho mais político atendendo, inclusive, determinações partidárias, nos “cabildos” (deliberações espontâneas nas ruas) diários, e nos gabinetes, sempre de olho em alianças, negociações, e tudo que diz respeito ao mundo parlamentar. Uma diferença fundamental foi o nível repressivo. Enquanto no Chile (é importante dizer que o movimento foi nacional com epicentro em Santiago e não apenas local como na Bahia), carros hidrantes, bombas de gás lacrimogêneo e cassetetes de uma polícia rigorosa e infelizmente muito profissional (os carabineiros) dispersavam as multidões estudantis e recebiam o troco de pedradas dos pinguins (estudantes secundaristas chilenos) aqui a força repressiva não teve o mesmo papel (o que gerou até um conflito entre a cúpula do PFL local que instigava a repressão e o prefeito) além de em muitas ocasiões ficar completamente perdida perante a mobilidade contínua dos focos de protesto, do corte de rua dos estudantes e da dinâmica sem líderes visíveis. Houve sim focos de repressão nos subúrbios, mas nada comparável à violência chilena. Aqui o movimento foi inteiramente nas ruas, no Chile num segundo momento, depois da repressão atingir níveis de brutalidade extrema, os estudantes ocupam os Colégios para se protegerem e o movimento social como um todo apoia as ações estudantis, tanto isto é verdade que até hoje (2012) aquele movimento de 2006 continua se manifestando sem importar a cor política dos governos de turno, o que deixa claro que é uma questão de Estado, de abandono da educação pelo Estado, não muito diferente do que acontece no Brasil. Aqui o apoio do movimento social foi tímido e o da população praticamente inexistente, fora alguns aplausos nos cortes de rua, completamente diferente do acontecido naquele país [Chile], onde a população arrecadava até dinheiro para os estudantes e os pais estavam mobilizados junto aos seus filhos. Muitas mais diferenças e semelhanças poderiam ser citadas relativas ao contexto histórico/social de cada um dos países. O importante é que ambos os movimentos tiveram e têm muita influência, a Revolta do Buzú inspirou movimentos em nível nacional, e o documentário parece ter contribuído muito para isso e A rebelião dos estudantes chilenos deixou sua marca em nível continental.
5 – Quais os seus próximos projetos?
Na área literária dois livros para serem lançados. Um deles de poesias sobre Carlos Marighella, que não pode sair este ano. No audiovisual, um dos projetos principais é continuar com o tema da luta armada no Brasil abordado no documentário sobre Marighella. Outra linha é a pesquisa de temas afro-brasileiros e aí entra Jorge Amado de quem fiz um documentário este ano para o seu centenário (“Testemunho de um leitor de Jorge Amado”), também projetos sobre a História brasileira (um dos personagens que já está em fase de pesquisa é o sergipano Manoel Bonfim, o rebelde esquecido e pouco conhecido). Outros projetos audiovisuais mais ligados à mobilização política surgem de acordo com a dinâmica das ruas e dos movimentos sociais, como a desocupação do Pinheirinho no início deste ano, por exemplo, mas, em geral, as amplas mobilizações do passado, de alguns anos a esta parte tem acontecido muito menos, por que será? (Fonte: GEPPS)
Catálogo de livros e filmes de Carlos Pronzato: www.lamestizaaudiovisual.blogspot.com
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Imagem: Silvio Benevides/GEPPS