quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Uma reflexão urgente: democracia e autonomia nas universidades públicas

Em 2015, ao completar um decênio de existência, duas questões de extrema importância prometem enfocar as atenções na UFRB: o processo sucessório da reitoria e a convocação da estatuinte. A questão da estatuinte na UFRB e o processo de escolha dos dirigentes nas universidades colocam em relevo uma problemática mais substantiva: qual o grau de democracia e participação nas instituições de ensino superior no Brasil. Apesar de a UFRB ser uma instituição nova, produto da expansão recente do ensino superior a partir do REUNI, a nossa estrutura de funcionamento atual, inclusive o processo de escolha dos dirigentes, tem características imperiosas herdadas da mesma lógica das antigas universidades. Em parte, isso se explica pela herança da tutora (UFBA), mas é um processo político mais complexo, tem a ver com o fato que nem nos governos da Nova República nem nos atuais governos do PT aconteceu um efetivo processo de democratização da estrutura de poder das instituições do ensino superior. Os processos estatuintes e as escolhas de dirigentes nas novas universidades, apesar das promessas, mantém, quase que na sua totalidade, a mesma restrição à participação da comunidade acadêmica. Dessa forma, é importante assinalar que mesmo a “universidade nova” apresentada nos últimos tempos como panaceia para crise universitária mantém o controle das decisões como na universidade velha da época da ditadura militar.

A luta pela estatuinte na UFRB não pode ser apenas a atualização das normas e regras de funcionamento da instituição. Assim como a “escolha” dos dirigentes não pode ser vista como apenas um referendar de projetos já previamente definidos. Neste sentido, como parte da mobilização da comunidade universitária da UFRB por democracia e autonomia, apresentou-se uma discussão sobre o processo geral nas universidades a partir dos anos 80 até o período mais recente de expansão das IFES. Interessante notar que, apesar das mobilizações da comunidade universitária em praticamente todas as universidades publicas do país (estaduais e federais) desde o período do fim da ditadura militar e pelas chamadas liberdades democráticas, a estrutura de funcionamento das universidades e faculdades é caracterizada por uma ausência efetiva de participação e democracia.

Nos anos 80 e 90, a mobilização contra as listas sêxtuplas nos conselhos universitários e contra a ingerência dos governos nas escolhas dos dirigentes do ensino superior levou a uma ampla luta contra o que se chama “entulho da ditadura” nas universidades. A luta pela democracia e autonomia nas universidades públicas teve uma ampla repercussão e resultados contraditórios. A mobilização por estatuintes democráticas e por eleições diretas para reitor evidenciava a insatisfação geral e representava um questionamento relativo da estrutura universitária claramente obsoleta e autoritária, e que nem mesmo os reitores (e os demais cargos dirigentes) eram escolhidos pela comunidade universitária. Por varias razões, sobretudo pelo caráter geral da transição brasileira (longa e pactuada), em que a mudança também significou permanência. Aos poucos a burocracia universitária (a mesma da época da ditadura) foi abrindo espaço para setores opositores, sobretudo entre uma camada de docentes, que passaram eventualmente a conquistar posições de comando. Este processo de reestruturação dos membros da burocracia universitária foi feito na maioria dos casos através de mobilizações com discursos em nome de democracia e acordos nos conselhos universitários, em que foi instituída uma democracia limitada e controlada, ou seja, uma democracia de fachada. As entidades representativas dos três setores da universidade (docentes, estudantes e servidores técnicos) construíram consultas informais nos processos de escolhas dos dirigentes das universidades. Esta política foi implementada em todo território nacional pela atuação das direções (UNE, ANDES e FASSUBRA). As consultas eram apresentadas como um processo de eleição direta para reitor, o que, na verdade, não eram, pois continuava havendo a lista, a indicação pelos conselhos universitários e, por fim, a escolha final pelo MEC ou pelo governador do estado.  A luta pela democracia foi reduzida a exigir que uma consulta informal fosse referendada pela estrutura vigente.

O que era apresentado como uma tática inteligente de driblar a estrutura para conseguir a democracia possível, foi se transformando em um mecanismo para preservar o poder nas mãos da burocracia universitária, agora renovada com parte dos oposicionistas. Em alguns casos, como na UFBA em 1988, o conselho universitário e o governo federal não aceitaram o mais votado nas consultas, e mais recentemente na USP, o que gerou atritos e mobilizações importantes. Entretanto, o que vale destacar é que os reitores democráticos “eleitos”, que passaram a ser a maioria na Andifes (Associação dos Reitores), apesar das promessas, e não tencionando por uma verdadeira autonomia universitária, não alteram os estatutos das universidades para que até mesmo a proposta limitada de eleição direta para reitor pudesse ser garantida. Mesmo após o fim da ditadura militar, nem nos parlamentos, nem por iniciativa dos governos executivos (governos estaduais e presidência da república), foram votadas leis para democratizar as universidades.

A LDB e a Lei 9.192/95 estabeleceram que “o Reitor e o Vice-Reitor de universidade federal serão nomeados pelo Presidente da República e escolhidos entre professores dos dois níveis mais elevados da carreira ou que possuam título de doutor, cujos nomes figurem em listas tríplices organizadas pelo respectivo colegiado máximo, ou outro colegiado que o englobe, instituído especificamente para este fim, em caso de consulta prévia à comunidade universitária, nos termos estabelecidos pelo colegiado máximo da instituição, prevalecerão a votação uninominal e o peso de setenta por cento para a manifestação do pessoal docente em relação à das demais categorias.” Por sua vez, os doze anos dos governos do PT e seus aliados não alteraram  a antiga estrutura de poder nas universidades. O processo de melhoria do acesso com o aumento de vagas e com a expansão das IFES, com construção de novas universidades, não veio acompanhado de criação de novas formas de participação e democratização nas universidades. O resultado dessa ausência de participação e de confiança nas instâncias deliberativas das universidades é o aumento do desinteresse em participar da construção das questões estruturais da universidade pelos membros da comunidade. Ou seja, a construção da universidade tem um caráter burocrático e administrativo, cada vez mais as definições importantes e relevantes estão distantes do controle democrático da própria comunidade, (os principais interessados). Através de editais e portarias, o MEC burla a autonomia das universidades, ao mesmo tempo que, através do controle do repasse dos recursos financeiros, contratação de pessoal e equipamentos, condiciona atuação dos reitores e da burocracia universitária nas universidades. Cada vez mais, os reitores “eleitos” e demais dirigentes são transformados em “gestores”, ou seja, são verdadeiras correias de transmissão da política anti-autonomia e democracia do MEC. Então, qual a alternativa nesse contexto de controle da burocracia universitária sobre os destinos da universidade?


Em primeiro lugar, é importante não cometer o equívoco de apresentar ilusões que existe democracia e participação nas universidades. A estrutura universitária (estatutos, regimentos) precisa ser mudada por completo a partir da mobilização da própria comunidade acadêmica. Ë preciso colocar em relevo a necessidade de uma participação efetiva da comunidade através da proposta da gestão tripartite, ou seja, a autonomia universitária através do autogoverno, formada por docentes, estudantes, servidores técnicos e setores populares. Devemos aproveitar este momento conjuntural da UFRB para construir de fato uma universidade democrática, discutindo os pilares que sustentam nossa universidade sob a égide da democracia, é momento de priorizar o congresso estatuinte para propor mudanças democráticas radicais dentro dos limites da UFRB e abrir espaço para questionamentos e provocações para os entraves democráticos que engessam a universidade brasileira (por Antonio Eduardo Alves de Oliveira, Professor Ciências Sociais UFRB / Fonte: APUR).

Imagem: Charge de João da Silva.

segunda-feira, 21 de abril de 2014

O amor eternizado na Arte

Thomas Mann (1937)
O texto abaixo consiste em um trecho de uma carta redigida pelo escritor alemão Thomas Mann ao seu amigo Hermann Lange. Nela, Mann admite que se apaixonara na sua adolescência por um rapaz chamado Armin Armens, seu colega no Katharineum. Esse amor juvenil foi eternizado pelo autor no seu livro “Tonio Kröger”, uma novela de cunho autobiográfico, que nas suas próprias palavras, “mescla melancolia e crítica, subjetividade e ceticismo, sentimentalismo e intelectualismo”. Esse fato ocorrido na vida de Mann deu origem ao amor por Hans Hansen que consome Tonio Kröger “como um desejo pesado e cobiçoso”. Do mesmo modo, é possível dizer que o amor de Mann por Armens originou o arrebatamento que tomou conta do escritor maduro Gustav Aschenbach pelo jovem e belo Tadzio, personagens da excepcional novela “Morte em Veneza”. Em qualquer um dos casos, o amor pueril entre dois rapazes, apesar das constantes perseguições e insistentes negações ao longo dos séculos, foi eternizado por meio de uma arte que brilha intensamente e resiste dignamente feito o sol que nos alumia (por Silvio Benevides).
 
O jovem Armin Martens
(autor desconhecido)
“Eu o amei – ele realmente foi o meu primeiro amor, o sentimento mais terno, mais pleno de felicidade e dor que jamais me fora concedido. Trata-se de algo que nunca se esquece, mesmo tendo passado muitos anos. Isso pode soar ridículo, mas retenho na memória essa paixão inocente como um tesouro. É perfeitamente compreensível que ele passagem não soubesse o que fazer com o meu arrebatamento, que lhe confessei em um ‘grande’ dia. Em parte por minha culpa, em parte culpa sua. Esse sentimento feneceu, então – por ele mesmo, cujos encantos sofreram consideráveis devastações ao longo da adolescência; foi o primeiro de nós a perecer em um lugar qualquer. Mas eu ergui um memorial para ele em Tonio Kröger [...] É incrível pensar, também, que o destino daquele menino-homem foi despertar um sentimento que um dia se tornou um poema eterno”. (por THOMAS MANN – trecho de uma carta escrita para Hermann Lange sobre seu colega de escola Armin Martens, que o inspirou para compor a personagem Hans Hansen do livro Tonio Kröger).
Imagem: Thomas Mann (1937) por Carl van Vechten.
 

terça-feira, 1 de abril de 2014

Reflexões sobre o golpe civil-militar de 1964

Estudantes do CCE relembram na UFRB o golpe de 1964
(Cachoeira/BA)
Neste 01/04/2014 o Brasil relembra o golpe civil-militar perpetrado pelas forças de oposição ao presidente João Goulart, assim como pela elite civil e militar brasileira que, naquele momento histórico, temia perder seus privilégios de classe devido aos inéditos avanços e conquistas políticas das forças de esquerda dentro e fora do governo. Alguns analistas políticos brasileiros, a exemplo do Jacob Gorender, classificam o golpe civil-militar de 1964 como um movimento de contra-revolução apoiado de forma ampla e irrestrita pelo governo dos EUA, uma espécie de patrocinador oficial de todas as ditaduras latino-americanas daquele período que se seguiram à ditadura brasileira. 

Estudantes de Artes Visuais relembram o golpe (Cachoeira/BA)
Cinco décadas após esse episódio que deu início a vinte e um anos de um regime ditatorial sangrento, o momento é propício à reflexão. O Estado e a sociedade brasileira estão, de fato, imunes a golpes e a ditaduras? O autoritarismo, a arrogância, a truculência e a violência das nossas chamadas forças de segurança deixaram de fazer vítimas? A tortura é, de fato, uma prática banida do nosso país, especialmente das nossas instituições policiais? A nossa democracia é sólida o suficiente para resistir aos ataques e à sanha voraz de uma elite econômica, política e intelectual que não deseja, de maneira alguma, abrir mão um milímetro sequer dos seus privilégios seculares? Os grandes veículos de comunicação, outrora grandes entusiastas do golpe e da ditadura, são, hoje, realmente democráticos? Até que ponto o apoio de ontem não se converterá no apoio de amanhã? Por que ainda não se teve coragem para guilhotinar a cabeça desse leviatã, como fizeram alguns de nossos vizinhos? E quanto ao alto clero da Igreja Católica? Teria aprendido a lição ou continuará sua cruzada implacável contra os infiéis? São questões sobre as quais devemos refletir para que o passado não se repita no presente. Como bem disse o Caetano Veloso, “é preciso estar a tento e forte”, sempre! (por Silvio Benevides

Reportagem Especial – 1964: Um Golpe Na História 

Há 50 anos o Brasil entrava no mais duradouro regime militar de sua história. Numa cadeia de acontecimentos que levaram à deposição do presidente João Goulart, forças civis e militares, governistas e oposicionistas, lutavam para fincar suas posições ideológicas na condução do país. A WebTV.UNEB reuniu especialistas e personalidades que viveram o momento para debater as causas e consequências do golpe militar de 1964.

   

Imagens: Silvio Benevides

sexta-feira, 14 de março de 2014

Poesia o que é?

Se me perguntarem o que é poesia, direi não sei. Não sei, porque simplesmente a poesia pertence à ordem das coisas indefiníveis, inclassificáveis. Definições e classificações são movimentos que nos conduzem tão somente à racionalização do mundo. A poesia, ao contrário, vai além e nos mostra que razão rima com emoção. Sem esta, a razão não passa de um deserto árido e estéril. Mas poesia também rima com bruxaria. Talvez os poetas, além de fingidores, sejam, igualmente, bruxos. Sim, porque somente conhecendo em demasia as artimanhas de magias milenares se consiga atingir as profundezas das almas que habitam todos os tempos que compõem as infinitas eras. Se desejas saber o que a poesia é, interroga, então, Gustavo Adolfo Bécquer: “¿Qué es poesía? – dices mientras clavas en mi pupila tu pupila azul. ¿Qué es poesía? ¿Y tú me lo preguntas?  Poesía... eres tu.” Ao Mestre dos Magos, Fernando Pessoa (por Silvio Benevides).

Autopsicografia
                                   
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

(FERNANDO PESSOA)
 
Imagens: Peanuts e Marçal

domingo, 19 de janeiro de 2014

Uma notícia está chegando lá do Maranhão

O texto abaixo foi escrito pelo excelente Zeca Baleiro e publicado pelo jornal Folha de São Paulo. Trata-se de uma análise sobre a situação de barbárie denunciada pela OAB, pela ONU e pela OEA na qual se encontra o Maranhão, reduto político dos Sarney. A análise do Zeca Baleiro não nos revela nenhuma novidade. Ainda assim, soa como um tapa na cara, especialmente na cara cínica daqueles e daquelas (para que não me acusem de preconceito de gênero) que governam esse feudo chamado Maranhão.

Em 1965, um ano após o golpe militar, o então deputado federal José Sarney deixou o Congresso Nacional para governar o Estado do Maranhão. Em seu discurso de despedida da Câmara Federal ele afirmou com a eloquência digna de um imortal: “Os caminhos da violência no Maranhão, nestes últimos anos, foram de inacreditável ferocidade e não haverá nenhuma demasia verbal ao dizermos que aquele estado era um campo de concentração da democracia brasileira” (Fonte: Congresso Nacional – Seção I – 10734 – Sexta-Feira, 10/12/1965). O que teria mudado de lá para cá? Qual a contribuição dos Sarney para o avanço da democracia no Maranhão e o bem-estar dos maranhenses? Muitas dúvidas (ou seriam dívidas?) pairam no ar.

Mas não nos iludamos, o Maranhão é o Brasil e para o Brasil se tornar de verdade um país repleto de dignidade será preciso expurgar todo e qualquer tipo de câncer político, seja no Maranhão, na Bahia, no Acre, em São Paulo ou em qualquer outro rincão desse enorme país. Em outros tempos se disse: “ou o Brasil acaba com a saúva, ou a saúva acaba com o Brasil”. Hoje, porém, urge dizer: ou o Brasil acaba com os Sarney (e tudo que eles representam), ou os Sarney certamente acabarão com o Brasil. Leiam e reflitam, afinal, novas eleições se aproximam (por Silvio Benevides).
 
Se o crime organizado dá as cartas e oprime o povo com ameaças dignas de terroristas, é porque há uma natural permissãoLeio com assombro as notícias que chegam do Maranhão. Imagens e relatos dolorosos e repugnantes despejados em tempo real em sites, jornais e telejornais, escancarando a nossa vergonha e impotência diante de barbaridades que já extrapolam nossas fronteiras e repercutem mundo afora. Como todos, estou pasmo. Mas nem tanto. Nasci no Maranhão e sei que a barbárie (a todos agora revelada de um modo talvez sem precedentes) já impera há anos na prática de seus governantes vitalícios, que agem como os velhos donos das capitanias hereditárias do passado.

Se o crime organizado neste momento dá as cartas e oprime o povo com ameaças e ações dignas dos mais perigosos terroristas, é porque há uma natural permissão --a impunidade crônica dos oligarcas senhores feudais, que comandam (?) o Estado com mãos de ferro há 47 anos (a minha idade exatamente) e que, ao longo desse tempo, vem cometendo atrocidades sem castigo, com igual maldade, típica dos grandes tiranos e ditadores. Esses donos do poder maranhense (e nunca dantes a palavra “dono” foi empregada com tanta adequação como aqui e agora) são exemplo e espelho para que criminosos ajam sem nenhum medo da punição.

Pois a miséria extrema que assola o Estado há décadas, o analfabetismo estimulado pela sanha dos coiotes ávidos de votos, a cultura antiga de currais eleitorais, a corrupção mais descarada do mundo e o atentado ao patrimônio histórico de sua bela e triste capital são crimes tão hediondos quanto os cometidos no complexo penitenciário de Pedrinhas. A diferença crucial é que, enquanto os bandidos que agora aterrorizam (e matam) a população aos olhos assustados da nação estão em presídios infectos e superlotados, os criminosos de colarinho branco (e terninho bege) habitam palácios.

No meio do caos, soa tão patética quanto simbólica a notícia veiculada dias atrás neste jornal [Folha de São Paulo] sobre abertura de licitação para o abastecimento das residências oficiais da governadora. A lista de compras é de um rigor e de uma opulência espantosos. Parece coisa da monarquia francesa nos dias que antecederam sua queda. No presídio de Pedrinhas, cabeças são cortadas. Resta saber se, para além dos muros da prisão, alguém um dia irá para a guilhotina (por Zeca Baleiro, cantor e compositor, para a Folha de São Paulo).

Imagens: Latuff (charge) e Marlene Bergamo/Folhapress.

sábado, 11 de janeiro de 2014

Entrevista com David Harvey: “Vivemos hoje no que eu chamaria de democracias totalitárias”.

Um dos mais influentes pensadores marxistas da atualidade, o geógrafo britânico David Harvey esteve no Brasil em novembro para divulgar o lançamento de seu livro ‘Os limites do capital’. Escrito há mais de 30 anos, a obra ganha sua primeira versão em português, mas, segundo Harvey, isso não significa que tenha ficado ultrapassada, pelo contrário. Pioneiro em sua análise geográfica da dinâmica de acumulação capitalista descrita por Marx, o livro, assim como grande parte da obra de Harvey, tornou-se mais relevante para entender os efeitos da exploração econômica dos espaços urbanos e suas consequências para os trabalhadores, ainda mais numa conjuntura marcada pela eclosão de protestos contra as condições de vida nas cidades, não só no Brasil, mas também na Europa, América do Norte e África. Nesta entrevista, Harvey faz uma análise dos levantes urbanos que ocorrem em todo mundo, aponta que não será possível atender às reivindicações por meio de uma reforma do capitalismo, e defende: é preciso começar a pensar em uma sociedade pós-capitalista.
Eis a entrevista.
"Os limites do capital’ foi escrito há mais de 30 anos. Desde então o capitalismo sofreu mudanças profundas. Qual é a atualidade dessa obra para entender o modelo de acumulação capitalista hoje?
DAVID HARVEY: O livro explora a teoria de Marx sobre acumulação de capital para entender as práticas de urbanização ao redor do mundo em vários lugares e momentos históricos diferentes. Minha investigação sobre as ideias de Marx se estenderam para uma análise de coisas como a renda fundiária, preços de propriedades, sistemas de crédito. Uma coisa curiosa aconteceu: a análise de Marx era sobre o capitalismo praticado no século 19. Na época em que comecei a escrever ‘Os limites do capital’, havia muitos aspectos do mundo ao meu redor que não se encaixavam com a descrição de Marx: tínhamos um Estado de Bem-estar Social, os Estados estavam envolvidos na economia de diferentes formas, havia arranjos de seguridade social e movimentos sindicais fortes em muitos países. Mas aí veio a chamada contrarrevolução neoliberal depois dos anos 1970, com Margareth Thatcher, Ronald Reagan, as ditaduras na América Latina, e o capitalismo regrediu para sua forma do século 19. Por exemplo, houve o desmantelamento de muito da rede de seguridade social em boa parte da Europa e América do Norte; o capital se tornou muito mais feroz em sua relação com movimentos trabalhistas; as proteções que vinham de Estados que eram em algum grau influenciados por movimentos políticos de esquerda foram desmanteladas em boa parte do mundo. O que vimos desde os anos 1970 é um aumento da desigualdade social, que é precisamente o que Marx disse que aconteceria caso adotássemos um sistema de livre mercado. Adam Smith postulava que se tivéssemos um livre mercado seria melhor para todos. O que Marx mostra no ‘O Capital’ é que quanto mais perto de um livre mercado mais provável é que os ricos fiquem cada vez mais ricos e os pobres mais pobres. E essa tem sido a tendência por grande parte do mundo desde os anos 1970 por conta do neoliberalismo. De uma maneira curiosa, por essa razão, Marx se tornou mais relevante para entender o mundo hoje do que era na época em que escrevi o livro. Ao mesmo tempo, muitas das lutas que vemos ao nosso redor agora são lutas urbanas em vez de lutas baseadas em unidades fabris, de modo que ligar a dinâmica do que Marx descrevia com a dinâmica da urbanização se tornou mais relevante.
E o papel dos centros urbanos na dinâmica de acumulação capitalista, como mudou ao longo desse período?
DAVID HARVEY: O capital produz constantemente excedentes, e uma das coisas que aconteceu é que a cidade se tornou um local para a absorção de capital excedente. Muito desse dinheiro foi para construção de estruturas, em alguns casos para a construção de megaprojetos. O capital adora esses megaprojetos, como os envolvidos em Copas do Mundo e Olimpíadas, porque são uma ótima oportunidade para gastar muito dinheiro na construção de novas infraestruturas, o que levanta uma questão interessante: essas novas infraestruturas acrescentam algo à produtividade do país? Se você for para a Grécia, vai ver um país essencialmente falido, com esses estádios vazios ao redor, que foram construídos para um evento que durou algumas semanas. A maioria dos lugares que sediam esses eventos tem problemas financeiros sérios depois mas, no processo, as empreiteiras, construtoras e financiadoras ganham muito dinheiro. Ao longo dos últimos 40 anos, o capital excedente foi cada vez mais canalizado para mercados de ativos, como os direitos de propriedade intelectual, em que você investe no controle de patentes e vive da renda, sem fazer nada. E, da mesma forma, as cidades, as propriedades urbanas, se tornaram ativos muito lucrativos. O que vemos hoje nos mercados imobiliários é que é quase impossível para a maioria da população encontrar um lugar para viver que não absorva mais da metade de sua renda. Esse é um processo mundial: tivemos uma crise na habitação nos Estados Unidos, na qual o mercado de propriedade entrou em colapso. Em Nova York, Los Angeles e São Francisco os preços estão subindo, e vemos o mesmo fenômeno na Europa: tente achar um lugar para morar em Londres, em Paris. Mais e mais dinheiro está sendo extraído das pessoas na forma de aluguel. Isso é interessante, porque há um deslocamento da exploração do trabalho e da produção para explorar as pessoas em termos de extração de aluguel de seu local de moradia. O capital consegue inclusive fazer concessões aos trabalhadores e recapturar esse dinheiro que o trabalhador ganha aumentando o valor do aluguel.
Você trabalha atualmente em um livro que lista 17 contradições do capital: pode falar um pouco sobre elas a partir da crise de 2008?
DAVID HARVEY: A forma como as contradições funcionam é que elas estão interconectadas. O que houve em 2008 foi uma serie de contradições: entre valor de uso e de troca, entre a forma do dinheiro e o valor que ele deveria representar e entre aspectos da propriedade privada e o poder do Estado. Todas essas contradições se juntaram para criar um ambiente propício ao acontecimento da crise na habitação. Por exemplo: você olha uma casa, e há uma contradição entre encará-la em termos de valor de uso e valor de troca. Em algum ponto a casa se torna uma forma dupla de valor de troca, porque as pessoas que compram a casa a veem como uma forma de poupança. E mais tarde eles compram uma casa como uma forma de investimento, uma forma de ganhar dinheiro. Em vez de comprar uma casa para morar, as pessoas compram casas para reformá-las e vendê-las, para ganhar dinheiro em cima disso. Então se o mercado imobiliário está em alta, é possível ganhar muito dinheiro muito rápido com esse processo, e o resultado disso é que as vizinhanças se tornaram instáveis, porque ninguém mora e cuida do local, só usam a casa para ganhar dinheiro. E ao mesmo tempo, há muita especulação para tentar elevar o valor da casa por meio de ajustes superficiais, o que não é um problema em si, até que o mercado imobiliário despenque, porque as coisas não podem subir para sempre. Se começa a cair, todo mundo vende rapidamente e você tem o crash que vimos nos Estados Unidos em 2007-2008, e também na Espanha, Irlanda e em muitas partes do mundo.
Essa tensão entre valor de troca e de uso é importante, mas é importante olharmos também para a forma como tudo é monetarizado. Há uma forma interessante com que o dinheiro começa a gerar mais dinheiro, esse aspecto especulativo do dinheiro. Eu poderia ter uma casa em Nova York sem a menor ideia de quem é o proprietário porque as hipotecas são divididas em pedacinhos e uma parte dela está na Alemanha, outra em Hong Kong e ninguém consegue descobrir de quem é a dívida. Isso é uma ficção que aconteceu por causa da maneira como o sistema monetário evoluiu. A outra contradição é entre o Estado e a propriedade privada. O que vemos é que, em países como os Estados Unidos, o Estado vem incentivando a compra de casa própria nos últimos 40 anos, criando novas instituições financeiras para apoiar a aquisição da casa própria, dando isenções de impostos se você é proprietário, a um ponto que todo mundo tem que se tornar um proprietário, quando isso não é economicamente racional em mercados especulativos desse tipo. Entre quatro e seis milhões de pessoas foram despossuídas de suas casas nos Estados Unidos através dessa crise de execução de hipotecas. Quando perguntaram para as pessoas por que elas achavam que isso tinha acontecido, quem elas culparam? Elas mesmas. É exatamente o que os neoliberais dizem que você deve fazer.
Vivemos num mundo em que o modo de pensar neoliberal se tornou profundamente arraigado: essa ideia de que nós como indivíduos somos responsáveis por sermos pobres. Como dizer para as pessoas que não é culpa delas, que é um problema sistêmico? É como o capital funciona, especialmente na sua forma de livre mercado, e se você é pobre você é um produto deste sistema. A única maneira de solucionar isso é mudando o sistema, o que quer dizer que é preciso tornar-se anticapitalista.
Na sua avaliação, as manifestações que acontecem no Brasil apontam uma insatisfação da população brasileira aos efeitos concretos dessas contradições?
DAVID HARVEY: Eu acho que em vários lugares do mundo atualmente você vai encontrar um sentimento de profunda insatisfação. Há um grande descontentamento, mas acho que em nenhum desses lugares emergiu um movimento consolidado em termos de um entendimento de para onde esse descontentamento deve ser canalizado e o que deve ser feito para mudar esse quadro. Como resultado, o que você vê são essas erupções contínuas ao redor do mundo. Eu vejo que há um sentimento de descontentamento mundial que não está sintetizado, mas é interessante notar como ele entra em erupção e ninguém espera.
Ninguém esperava o que aconteceu no Brasil, foi uma surpresa. Ninguém esperava o que aconteceu na Praça Taksim, em Istambul, em Estocolmo, em Londres. O que se vê é um padrão global de expressões de descontentamento, que não localizaram o problema central, mas que são indicações de um descontentamento profundo com a maneira como o mundo caminha. Para mim, a melhor forma de se analisar isso é olhar quão bem o capital está indo. A maneira mais simples de ilustrar isso é olhando para a desigualdade de renda.
Dados de vários países ao redor do mundo mostram que os 2% de maior renda entre a população saíram da crise muito bem e na verdade ganharam muito dinheiro com ela, enquanto o padrão de vida do resto encolheu. Isso varia de um país para outro, mas dados da Oxfam apontam que os 100 maiores bilionários do mundo aumentaram sua riqueza em US$ 240 bilhões só em 2012. O número de bilionários aumentou dramaticamente nos últimos cinco anos, não só nos Estados Unidos: esse número dobrou na Índia nos últimos três anos, há muitos bilionários no Brasil, o mais rico do mundo é Carlos Slim, do México, há bilionários surgindo na Rússia, na China. Os dados mostram que o capital está indo extremamente bem.
É possível atender às reivindicações das ruas com uma reforma no capitalismo?
DAVID HARVEY: As opiniões variam na questão de o quanto podemos extrair das dificuldades atuais e ainda termos um capitalismo dinâmico. Minha análise é que será muito difícil desta vez. Certamente é possível acabar com alguns dos excessos do capitalismo neoliberal e certamente podemos ter um tipo de capitalismo mais socialmente justo, com redistribuição modesta de riqueza das classes abastadas para as classes médias e baixas. Há possibilidades de reforma do sistema e eu obviamente as apoiaria. Mas não acho que elas vão resolver o problema. Acho que a quantidade de riqueza que pode ser redistribuída é relativamente limitada. Em segundo lugar, falta poder político para fazê-lo. Temos uma situação agora em que essencialmente o poder político, a mídia, estão completamente capturados pelo grande capital, e a barreira política para fazer algo além de medidas pontuais é imensa.
Temos uma oligarquia global que controla essencialmente toda a riqueza mundial, a mídia, os partidos políticos, o processo político. Vivemos hoje no que eu chamaria de democracias totalitárias, e acho que é muito difícil quebrar isso porque a oligarquia não está interessada em abrir mão desse poder. Então há uma barreira política e há também uma barreira econômica, porque se você realmente começa a redistribuir riqueza no modo que precisaríamos para resolver esses problemas e ter educação, saúde e transporte público decente para todos, se realmente fôssemos fazer isso, teríamos que tirar muito do dinheiro que hoje vai para os projetos que interessam ao grande capital.
Por que você acha que vai ser difícil sair da crise atual?
DAVID HARVEY: O capital tem que crescer, e crescer a uma taxa composta, que tem uma curva de crescimento exponencial. Isso significa que cada vez mais somos empurrados a encontrar oportunidades de investimento lucrativas, mais e mais. Meu cálculo, de maneira grosseira, é que nos anos 1970, globalmente, era preciso achar oportunidades de investimento lucrativas para algo em torno de US$ 600 bilhões. Hoje é preciso encontrar canais lucrativos para investimentos na ordem de US$ 3 trilhões. Em 20 anos, falaremos em canais lucrativos de investimento para US$ 6 trilhões e assim por diante. Acho que manter o capital ativo tornou-se um sério problema, e se houver um crescimento zero, há uma crise. O crescimento composto se torna cada vez mais problemático. Temos tido esse problema desde os anos 1970 e é por isso que mais e mais capitalistas estão vivendo de renda ao invés de procurar oportunidades de investimento lucrativas produzindo coisas materiais, que já não é tão lucrativo. E se todo mundo investe no “rentismo”, ninguém produz nada, o que também é um problema.
Você fala da importância de uma imaginação pós-capitalista. Fale sobre a sua visão do que seria uma sociedade pós-capitalista.
DAVID HARVEY: É preciso haver uma revolução nas percepções, nas práticas, nas instituições. E essas revoluções levam muito tempo para se concretizarem. Quando você pensa na história do neoliberalismo, vê que foi uma transformação revolucionária que aconteceu num período de 30, 40 anos. Se foi possível mudar daquilo para isso, por que não podemos mudar do que vemos hoje para outra coisa? Mas temos que pensar não simplesmente em termos de fazermos barricadas, mudarmos governos. Temos que pensar nisso como um processo de 40 anos de mudança de mentalidades, concepções. Por exemplo, como as pessoas pensam a solidariedade social com seus vizinhos. Nos anos 1970 havia muito mais solidariedade social, e hoje o mundo se tornou muito mais individualista. Uma revolução é um processo, não um evento, estamos falando de transformações de longo prazo, e isso requer que as pessoas comecem a formular ideias sobre como mudar o mundo. Há muitos elementos que estão sendo praticados atualmente, o problema é que a maioria em pequena escala. Por exemplo, economias solidárias sendo praticadas ao redor do mundo, no Brasil, nos Estados Unidos. Há grupos tentando desenvolver modos de vida alternativos, ambientalistas, por exemplo, o movimento de recuperação de fábricas por trabalhadores na Argentina, há muitos movimentos desse tipo acontecendo, alguns em meio à crise. Na Grécia vemos o desenvolvimento de sistemas monetários alternativos e por aí vai. Há muitas coisas acontecendo atualmente que podem ser consideradas experimentos-piloto. Acho importante olhá-las e analisar quais são os elementos para se pensar um tipo diferente de sociedade no futuro.
Entrevista originalmente publicada pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV) em 08-01-2014.
Imagem: The Guardian

terça-feira, 31 de dezembro de 2013

O tempo é um rio

Ser humano é ser composto de substância semelhante à mistura de argila e água que se faz e refaz ao sabor dos ventos, ao sabor das chuvas. Talvez por isso, para suportar a sua fragilidade e fugacidade, o ser humano busque incansavelmente controlar toda a vida ao seu redor. E dessa busca incansável nasceu o tempo, essa categoria que, tal qual um rio, ao passar, tudo leva, tudo traz, por vezes suave, por vezes voraz. Mas o que é o tempo, esse “compositor de destinos; senhor de todos os ritmos”?  

O tempo é, sem dúvida, uma ilusão, uma miragem que sempre nos leva a pensar, refletir sobre tudo que passou e, também, sobre tudo que está por vir. E o que está por vir, o que será? Pode ser um furacão, pode ser um mar de rosas, pode ser sim, pode ser não, pode ser uma dor, uma queda, um abismo, uma brisa ou um frescor imenso que invade o peito e o enche de uma alegria sem fim. Seja isto ou aquilo, o que está por vir, virá amanhã ou depois de amanhã! Assim é a vida. Tão imensa quanto o tempo ou talvez o próprio tempo que passa devagar, átimo após átimo nos deixando à deriva pelo imenso oceano que é a vida. O que está por vir se aproxima bem devagar, fazendo-me pensar que no fundo, bem lá no fundo, o que todo mundo quer e deseja é ser feliz. É isso! Sejamos felizes e deixemos que os outros também sejam. Até! (por Silvio Benevides).
 
Imagem: Dinarte.

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

A construção da memória histórica

De acordo com o dicionário Houaiss da língua portuguesa, história é um substantivo feminino que diz respeito ao conjunto de conhecimentos relativos ao passado da humanidade, segundo o lugar, a época e o ponto de vista escolhido. Também significa, entre outras acepções, a ciência que estuda eventos passados com referência a um povo, país, período ou indivíduo específico, ou, ainda, a evolução da humanidade ao longo de seu passado e presente, assim como a sequência de acontecimentos e fatos a ela correlatos. Por extensão, a história também pode ser entendida como o julgamento da posteridade; a memória dos homens. Mas como se constrói essa memória?
 
A construção da memória histórica sempre ocorre a partir do olhar de quem conta a história, ou seja, o olhar do narrador. Esse narrador, por sua vez, ocupa um lugar na estrutura social, isto é, ele pertence a uma determinada classe social, faz parte deste ou daquele gênero, tem esta ou aquela idade ou orientação sexual, traz na pela e na cara as marcas que caracterizam esta ou aquela raça ou etnia, é parte integrante de uma nação, defende ideias, valores, crenças, além de possuir um código moral mais ou menos rígido e assim por diante. E o que isso significa? Significa que, sendo sempre construído a partir de um ponto de vista específico, este conjunto de conhecimento é sempre relativo e deve ser a todo instante submetido à análise criteriosa do contexto no qual e a partir do qual ele foi erigido.

No contexto atual, caracterizado pelo que o pensador espanhol Manuel Castells denominou de informacionalismo, grandes empresas de comunicação se converteram em grandes narradores históricos. Elas dominam grande parte da produção da informação, assim como, a distribuição em larga escala daquilo que produzem, muitas vezes de alcance global. Nesse processo, orientado por interesses ideológicos comprometidos com a reprodução do capital e de tudo o mais que lhe dá sustentação, alguns acontecimentos históricos se convertem em fatos da maior importância para humanidade, enquanto outros, de igual ou de maior importância, são diminuídos, negligenciados ou ainda totalmente ignorados. O mesmo ocorre com as personalidades que os protagonizaram. Um exemplo disso são as mortes do presidente dos Estados Unidos, John Kennedy e do presidente do Chile, Salvador Allende.

Hoje, 22 de novembro, o assassinato do presidente Kennedy completa cinquenta anos. As manchetes sensacionalistas dos noticiários impressos e televisivos trataram o acontecimento como um dos mais marcantes fatos históricos do século XX ou, ainda, “o atentado que chocou o mundo”. Mas a qual mundo esses noticiários se referem? Concordo que o atentado que pôs fim à vida de John Kennedy foi um fato chocante, mas muito mais por ter sido filmado “em tempo real” do que por sua importância histórica propriamente dita ou qualquer outra coisa. Esse atentado, porém, não foi mais chocante do que o atentado que matou o presidente chileno Salvador Allende e que no último dia 11 de setembro completou quarenta anos. Disposto a resistir ao golpe de Estado perpetrado por setores militares e civis da sociedade chilena, que contaram o apoio financeiro, logístico e bélico-militar do governo dos Estados Unidos, Allende se manteve no La Moneda, sede do governo. A força aérea chilena bombardeou o palácio, matando o presidente cujas ações promoveram grandes mudanças que beneficiaram amplos setores da sociedade, especialmente os mais populares. Contudo, quase nada (para ser otimista) foi dito e/ou divulgado na grande imprensa sobre esse acontecimento. Tampouco o evento foi tratado como um acontecimento marcante para a história da humanidade e do século XX. Por que não? Porque como nos informa o dicionário, a história diz respeito ao conjunto de conhecimentos relativos ao passado da humanidade, segundo o lugar, a época e o ponto de vista escolhido. E o ponto de vista escolhido, desde quando a história passou a ser narrada, é o de quem sempre esteve no poder e não quer, de modo algum, largar o osso. Na presente era talvez as coisas estejam mudando com a emergência de múltiplas narrativas. Isso, porém, é uma outra história (por Silvio Benevides).

Imagem: Ampulheta Borboleta por Jim Tsinganos

domingo, 27 de outubro de 2013

FLICA 2013: Os neoracistas e seus racismos anacrônicos


Início da mesa "Donos da terra?", na Flica 2013.
Terminou neste domingo (27/10/13) a terceira edição da Festa Literária Internacional de Cachoeira (Flica). Durante os cinco dias da festa o acontecimento mais significativo, sem dúvida, foi a manifestação contra o racismo, ocorrida no sábado (26/10) durante a mesa “Donos da terra? Os neoíndios, velhos bons selvagens”, que tinha como debatedores os cientistas sociais Demétrio Magnoli (USP) e Maria Hilda Baqueiro (UFBA), mediados  pelo educador Jorge Portugal.

O debate teve início com um questionamento, no mínimo insólito, levantado pelo mediador: teria sobrado tanto índio assim para se precisar de tanta terra? Muita gente na platéia ficou perplexa com a pergunta, sobretudo porque ninguém esperava que um debate que se pretendia sério e isento de qualquer juízo de valor ou mesmo tomada de qualquer partido, conforme alardeou a organização do evento antes mesmo a mesa iniciar suas atividades, começasse justamente com um questionamento tão capcioso.

Ao finalizar sua pergunta, o mediador passou a palavra para a Maria Hilda Baqueiro, que fez questão de frisar que as terras destinadas aos assentamentos indígenas não são, de fato, terras indígenas, mas, sim, terras da União e reservas florestais. Sendo assim, a União pode, a qualquer momento que julgar necessário, remanejar esses povos para onde avaliar ser mais adequado. Ademais, continuou ela, embora no Brasil a população indígena seja maior que a população indígena do Canadá e dos Estados Unidos, conforme havia mencionado o mediador do debate, os portugueses foram responsáveis por um dos maiores genocídios da história da humanidade. Em seguida, o Jorge Portugal cedeu a palavra para o Demétrio Magnoli, que explanou sobre o que ele chama de narrativas sobre os índios brasileiros.

Para o sociólogo da Universidade de São Paulo, existem quatro grandes narrativas sobre os índios brasileiros, construídas ao longo da história nacional. A primeira foi criada pelos missionários jesuítas, que desejavam “salvar” almas. A segunda, criada pelo movimento romântico brasileiro no período imperial, retratava um índio que não existia nem nunca existiu. A terceira, a do Marechal Rondon e dos irmãos Villas-Bôas, visava integrar o índio à sociedade brasileira. Por fim, a narrativa dos neoíndios, forjada, segundo ele, por ONG’s vinculadas a organizações internacionais. De acordo com o Demétrio Magnoli, esta última narrativa foi responsável por banir das escolas brasileiras de maneira irresponsável a narrativa de integração do índio à sociedade nacional proposta pelo Marechal Rondon e pelos irmãos Villas-Bôas, e com isso, criou-se no Brasil, segundo ele, uma nação racialista, dividida em raças, e não uma sociedade integrada, uniforme, verdadeiramente democrática.

Protesto pacífico contra o racismo realizado na Flica 2013.
Diante de tais impropérios, Maria Hilda Baqueiro deu uma verdadeira lição sobre história indígena no Brasil, deixando bem claro e explícito para os presentes o total desconhecimento do sociólogo uspiano sobre o tema do debate e o quão suas palavras e idéias estavam imbuídas de um senso comum bem rasteiro e de juízos de valor de uma camada social brasileira que não deseja, de modo algum, abrir mão dos seus privilégios de classe. Quando o Demétrio Magnoli pediu a palavra para contestar a Maria Hilda Baqueiro, uma voz gritou em alto e bom som: RACISTA! Era o início do protesto. Um grupo de jovens estudantes abriu uma faixa na qual se podia ler “Contra as cotas, só racista” e, assim, conseguiram impedir a reprodução de um discurso racista tão fartamente reproduzido pelos grandes veículos de comunicação, por meio de intelectuais como o Demétrio Magnoli, assumidamente contrário às políticas de ações afirmativas, das quais as políticas de cotas fazem parte.

Performance realizada durante o protesto.
A manifestação/protesto ocorreu de maneira extremamente pacífica. Nada foi depredado e nenhum dos presentes teve a sua integridade física ameaçada, ao contrário das inverdades caluniosas publicadas pelo periódico Correio da Bahia, que em nota não assinada distorceu deliberadamente os fatos, numa velha manobra bem conhecida de certos veículos de comunicação, que tentam de todas as maneiras apresentar à população em geral os movimentos sociais contra-hegemônicos como movimentos hostis à ordem democrática. Mas qual ordem democrática esses veículos defendem quando distorcem fatos e publicam calúnias?

Os meninos e meninas que protestavam apenas gritavam palavras de ordem e pediam para que o tema da mesa contemplasse a discussão sobre as cotas raciais. A organização da Flica, de maneira intransigente, se recusou a atender a reivindicação dos manifestantes. Diante disso, os meninos e meninas também se recusaram a negociar e passaram a exigir a saída do Demétrio Magnoli da mesa e o cancelamento da mesa da noite, da qual participaria o filósofo e ensaísta pernambucano Luiz Felipe Pondé. Devido ao impasse que se formou, a organização da Flica decidiu encerrar a mesa e anunciou que ela voltaria a ocorrer às treze horas de portas fechadas, deixando bem claro o conceito que eles têm sobre democracia. Como os meninos e meninas que protestavam, assim como aqueles que apoiavam o movimento, se recusaram a sair para evitar que fossem impedidos de adentrar o recinto no turno vespertino, a organização do evento cortou o ar-condicionado do salão, a comunicação wi-fi e, também, impediu que as pessoas tivessem acesso a água e aos sanitários. E como se não bastasse tudo isso, os meninos e meninas é que foram acusados de anti-democráticos, intransigentes e radicais.
Performance que lembrava o genocídio de negros e índios.

O que esses meninos e meninas fizeram foi uma verdadeira demonstração do espírito democrático, pois reivindicavam o direito de fala de sujeitos historicamente forçados a se calar e, mais que isso, defendiam, em última instância, dois dos pilares fundamentais da democracia, que são a igualdade e a liberdade, haja vista que todo e qualquer discurso, assim como todo e qualquer veículo de comunicação, que difunda ou ajude a difundir idéias e ideais racistas, sexistas, homofóbicos, fascistas e nazistas atentam contra a liberdade e a igualdade (igualdade essa que não suprima as desigualdades e especificidades ontológicas e identitárias) de povos e indivíduos, como, também, atentam contra os direitos humanos e a história já nos mostrou isso. Sendo assim, tais discursos são um atentado contra a democracia. Ser democrático não é permitir que qualquer um fale qualquer coisa. Ser democrático é lutar em defesa da dignidade humana. Espero que os organizadores da Flica, os neoracistas e os reacionários de plantão que lá estavam tenham aprendido e apreendido a lição dada por esse grupo de jovens que demonstraram para o Brasil e para o mundo porque que Cachoeira sustenta o título de cidade heróica, pois é o berço das lutas contra a escravidão no Brasil e das lutas por liberdade (por Silvio Benevides).

Imagens: Silvio Benevides.

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

O Menino do Gouveia



Estendido junto a mim na cama suspirativa do chateau, depois de ter sido enrabado duas vezes, tendo na mão macia e profissional a minha respeitável porra, em que fazia umas carícias aperitivas, o menino do Gouveia, isto é, o Bembem, contou-me pitorescamente a sua história com todos os não-me-bulas de sua voz suave de puto matriculado.

- Eu lhe conto. Eu tomo dentro por vocação; nasci para isso como outros nascem para músicos, militares, poetas ou até políticos. Parece que quando me estavam fazendo, minha mãe, no momento da estocada final, peidou-se, de modo que teve todos os gostos no cu e eu herdei também o fato de sentir todos os meus prazeres na bunda.

Quando cheguei aos meus treze para catorze anos, em que todos os rapazes têm uma curiosidade enorme em ver uma mulher nua, ou pelo menos um pedaço de coxa, um seio ou outra parte do corpo feminino, eu andava a espreitar a ocasião em que algum criado, ou mesmo meu tio, ia mijar, para deliciar-me com o espetáculo de um caralho de um homem.

Não sei por que era, eu sentia uma atração enorme para o instrumento de meus prazeres futuros.

Havia então, entre os empregados, um que possuía uma parativelas que era mesmo um primor de grossura e comprimento, fora a cabeçorra formidável. Uma destas picas que nos consolam até a alma!

Entretanto, o que mais aguçava a minha curiosidade e me dava um desejo insofrível, era poder ver a porra de meu tio. Este, porém, era muito cauteloso, e jamais ia satisfazer as suas necessidades sem trancar a porta da privada, ficando eu deste modo com o único recurso de calcular e julgar, pelo volume que lhe via na perna esquerda, as dimensões do seu mangalho que parecia ser colossal.

Um dia em que ele e titia foram à cidade muni-me de uma verruma e fiz na porta do quarto dos mesmos uma série de buracos dispostos de maneira que eu pudesse observar todos os movimentos noturnos.

- Confesso, Capadócio Maluco – acrescentou o Bembem, aumentando o movimento punhetal que vinha fazendo na minha pica -, que nem uma só vez me passou pela cabeça a idéia de que ia ver a titia nua ou quase nua. O meu único pensamento era poder apreciar ereto o membro viril do titio.

Nessa noite, mal nos recolhemos aos dormitórios, eu fui postar-me, metido na comprida camisola de dormir, na porta e com os olhos pregados nos furos previamente feitos.

Parece, porém, que o casal não tinha pressa nenhuma em se foder ou então ambos andavam fartos, pois meu tio, em camisa de meia, sem tirar as calças, sentou a ler um livrinho que depois eu souber ser da Coleção Amorosa do Rio Nu, enquanto minha tia, em mangas de camisa, principiou uma temível caçada a algumas pulgas teimosas.

Se eu gostasse de mulher, teria me deliciado vendo, nos movimentos bruscos da caçada, os seios da moça, que eram alvíssimos, de bicos vermelhos, redondos e rijos como se ela ainda fosse cabaçuda; porém todo o meu prazer, toda a minha curiosidade, estavam entre as pernas do tio, no seu caralho, cuja lembrança me punha comichões na bunda.

Afinal, ela parece que cansou na perseguição dos pequenos animais, pois deixou cair a saia e rapidamente substituiu a camisa por uma pequena camiseta de meia de seda que lhe chegava até o meio das nádegas.

Mesmo sem querer, tive que admirar-lhe as pernas bem-feitas, as coxas grossas, torneadas e muito claras, a basta pentelhada castanho-escura e - com quanta raiva o confesso! – o seu traseiro, amplo, macio, gelatinoso.

Ah! se eu tivese um cu daqueles, era feliz! Era impossível que meu titio, tendo ao seu dispor um cagueiro daqueles, pudesse vir a gostar da minha modesta bunda! Quanto ciúmes eu tive da tia naquela noite!

Parece que a leitura do tal livrinho produziu alguma coisa em titio. Ele principiou a olhar de vez em quando para a mulher, estendida de papo para o ar sobre o leito; depois passou várias vezes a mão pela altura da pica.

Finalmente levantou-se, num momento tirou toda a roupa e caminhou para a cama.

Oh! Céus! Eu então pude ver, com toda a dureza que uma tesão completa lhe dava, os vinte e cinco centímetros de nervo com que a Natureza o brindara. Que porra!

Grande, rija, grossa, com uma chapeleta semelhante a um pára-choques da Central e fornida dum par de colhões que devia ter leite para uma família inteira.

Ele chegou-se ao leito, começou a beijar a esposa nos olhos, na boca, no pescoço, nos seios e depois, quando a sentiu tão arreitada como ele estava, afastou-lhe as belas coxas, trepou para cima do leito e eu, do meu observatório, vi aquele primor de pica deslizar suavemente e sumir-se todo pelo cono papudo da titia, que auxiliava a entrada do monstro fazendo um amestrado exercício de quadris, a suspirar, a gemer, a vir-se, no mais completo dos gozos, na mais correta das fodas.

Não quis ou não pude assistir ao resto da cena. Eu tinha uma sensação esquisita no cu, parecia que as pregas latejavam. Mais tarde vim a saber que isso era tesão na bunda.

Corri para o meu quarto, fechei-me por dentro, atirei para longe a camisola, que me incomodava e, tendo arrancado a vela do castiçal, tentei metê-la pelo cu acima a ver se me acalmava. Fui caipora; as arestas da bugia machucavam-me o ânus e não a deixavam entrar.

Passei uma noite horrível.


De acordo com os pesquisadores James Green e Ronald Polito (In: Frescos Trópicos) O menino do Gouveia é considerado o primeiro conto erótico gay publicado no Brasil, editado pela revista Rio Nu, em 1914 e assinado por Capadócio Maluco, um pseudônimo. Na época Gouveia era a gíria para homens velhos que se relacionavam sexualmente com garotões.

Imagem: "The Absinthe drinkers". Paris.1895 (anônimo).