segunda-feira, 19 de abril de 2010

O povo brasileiro

Quem tentasse derivar de qualquer origem própria do país o que é característico do brasileiro, cairia no inverídico e no artificial, pois nada é tão típico do brasileiro quanto o fato de ser ele um ente humano sem história, ou, ao menos, um ente humano com uma história curta. Sua civilização não assenta como a dos povos europeus em tradições remotas que datam dos tempos míticos, nem pode referir-se, como a dos peruanos e mexicanos, a um passado pré-histórico no próprio solo. Embora a nação brasileira nos últimos anos haja realizado muito por novas combinações e por trabalho próprio, os elementos construtivos de sua civilização são em sua totalidade importados da Europa. Tanto a religião e os costumes quanto o modo de viver desses milhões e milhões de habitantes do Brasil pouco devem ou verdadeiramente nada devem ao seu solo. Todos os valores da civilização foram trazidos do estrangeiro por navios de toda espécie, pelas antigas caravelas portuguesas, pelos vapores modernos, e mesmo o mais patriótico e mais ambicioso empenho não pode até agora achar ou inventar uma contribuição importante dos aborígenes para a civilização brasileira. Não existe poesia brasileira pré-histórica, religião originariamente brasileira, música brasileira antiga, não existem lendas populares conservadas através de séculos e nem mesmo os modestos inícios de uma profissão artística. Ao passo que nos museus nacionais de etnologia de outros países com orgulho são apresentados os exemplares milenários de escrita e de arte autóctones, nos museus brasileiros nada disso há que ver. Contra esse fato de nada vale procurar e esquadrinhar, e os que tentam hoje declarar brasileiros alguns ritos e danças como a macumba e o samba, com isso encobrem e deslocam artificialmente a verdadeira situação, pois essas danças e ritos foram trazidos pelos negros com suas cadeias e suas marcas de ferrete. Tão pouco são autóctones os únicos objetos de arte que se encontraram no solo brasileiro, os utensílios de argila pintados que se encontraram na ilha de Marajó; sem dúvida, foram trazidos ou aqui feitos por indivíduos de raças estrangeiras, provavelmente por peruanos que desceram, o rio Amazonas até a ilha que fica na sua foz. Temos, pois, que nos contentar com o seguinte: no ponto de vista de civilização, nada de característico na arquitetura, e qualquer forma de arte plástica não remonta aqui a uma época anterior à colonial, anterior ao século dezessete ou dezesseis, e mesmo os seus mais belos produtos nas igrejas da Bahia e de Olinda, com seus altares cheios de ouro e seus móveis entalhados, são evidentes rebentos do estilo português ou jesuítico e quase não podem distinguir-se dos existentes em Goa ou dos da própria metrópole. Onde quer que na História aqui alguém pretenda recuar além do dia em que os primeiros europeus aportaram a esta terra, cairá num vácuo, num nada. Tudo o que hoje denominamos brasileiro e como tal reconhecemos, não é possível explicar por meio de uma tradição própria, e sim por meio duma transformação fecunda, operada pela terra, pelo clima e pelos habitantes dela, do que era europeu.

O que é tipicamente brasileiro é hoje já bastante evidente para não ser confundido com o que é português, muito embora o seu parentesco, a sua filiação, ainda seja perceptível. É absurdo negar essa relação. Portugal deu ao Brasil as três coisas que são de importância decisiva para a constituição dum povo, o idioma, a religião e os costumes, e com isso deu as formas segundo as quais o novo país, a nova nação, pode desenvolver-se. Desenvolverem-se para outro conteúdo essas formas primitivas, sob outro sol e num espaço de outras dimensões e com o afluxo cada vez mais intenso de sangue estrangeiro, foi um processo inevitável, porque orgânico, processo que nenhuma autoridade régia e nenhuma organização armada poderia deter. Sobretudo a direção do pensamento das duas nações foi diferente; Portugal, como país mais velho na História, sonhava com um grande passado, que nunca mais poderia repetir-se, e o Brasil tinha e tem os olhos voltados para o futuro. A metrópole já esgotou, de maneira grandiosa, as suas possibilidades, mas a sua ex-colônia, o Brasil, ainda não atingiu inteiramente as suas. A diversidade está não tanto na estrutura étnica quanto numa diferença de gerações. Ambos os povos, hoje unidos por estreita amizade, não se tornaram estranhos um ao outro; viveram, apenas, de certo modo, separados. O sinal mais claro disso é terem ambos o mesmo idioma. Na grafia e no vocabulário, o português falado em Portugal e o falado no Brasil são ainda hoje quase inteiramente idênticos, e é preciso que o leitor conheça bem o idioma para poder dizer que a obra que tem nas mãos é dum poeta brasileiro ou dum poeta português; e, doutra parte, quase nenhum dos vocábulos da língua tupi ou da tamoia que os primeiros missionários ainda registravam, passou ao idioma português do Brasil de hoje. O brasileiro apenas fala o português de moda diferente do que o faz o lusitano, fala-o mais brasileiramente do que este, e nisso está toda a diferença; o mais curioso é que esse sotaque brasileiro permaneceu o mesmo, do norte ao sul, do leste ao oeste, num território de oito milhões e quinhentos mil quilômetros quadrados. O português e o brasileiro compreendem-se perfeitamente, pois se servem dos mesmos vocábulos, da mesma sintaxe, mas na entonação e, em parte também, já na expressão literária começam essas variantes, primitivamente mínimas, a intensificar-se mais ou menos na mesma proporção em que o inglês e o. americano do norte com o mesmo idioma de decênio para decênio se afastam um do outro como individualidades. A influência da distância de mil milhas, de outro clima, de outras condições de vida, de novas relações e novas comunidades necessariamente teve que, após quatrocentos anos, pouco a pouco se tornar perceptível, e lenta mas inevitavelmente teve que se originar no Brasil um novo tipo, um tipo étnico inteiramente específico.

O que no ponto de vista físico e psíquico caracteriza o brasileiro é, sobretudo, ser ele de compleição mais delicada do que a do europeu e a do norte-americano. O tipo corpulento, volumoso, alto, ossudo, falta quase inteiramente entre os brasileiros. Igualmente falta neles toda brutalidade, violência e veemência, tudo o que é grosseiro, presunçoso e arrogante. O brasileiro é um indivíduo calmo, pensativo e sentimental, às vezes até com um ligeiro laivo de melancolia, a qual já Anchieta em 1585 e o Padre Cardim julgaram sentir na atmosfera, quando qualificaram esta nova terra de “desleixada e remissa e algo melancólica”. Mesmo no trato exterior as maneiras são visivelmente moderadas. É raro ouvir alguém falar alto ou dirigir-se a outra pessoa, encolerizado, aos gritos. E precisamente onde se reúnem massas humanas sente-se mais claramente essa ausência de vozearia, o que ao estrangeiro causa admiração. Numa grande festa popular, como na Penha, ou numa travessia de barca para uma espécie de festa religiosa de arraial na ilha de Paquetá, nas quais num pequeno espaço se acham milhares de pessoas, e entre estas muitas crianças, não ouvimos algazarra e gritos de júbilo, não vemos os indivíduos incitarem-se mutuamente para uma alegria turbulenta. Mesmo quando se divertem em massas, as pessoas aqui se conservam calmas e discretas, e essa ausência de tudo o que é forte e brutal, dá à sua alegria suave um delicioso encanto. Fazer barulho, gritar, fazer algazarra e dançar desenfreadamente são no Brasil prazeres tão contrários aos costumes que, por assim dizer, se reservam para os quatro dias de carnaval, que servem de válvula de segurança para todos os instintos represados; mas, mesmo nesses quatro dias de alegria aparentemente infrene, numa massa de um milhão de pessoas como que picadas por uma tarântula, não se observam excessos, inconveniências e baixezas; todo estrangeiro e até qualquer senhora podem calmamente atrever-se a andar nas ruas cheias de bulício e de ruído. O brasileiro conserva sempre sua natural delicadeza e boa índole. As mais diversas classes tratam-se mutuamente com uma polidez e cordialidade que a nós pessoas da Europa, tão brutalizada nos últimos anos, sempre causam admiração. Vemos abraçarem-se dois homens na rua. Pensamos que são irmãos ou velhos amigos dos quais um acaba de chegar da Europa ou duma viagem ao estrangeiro. Mas na esquina seguinte tornamos a ver dois homens saudarem-se dessa mesma maneira e verificamos então que o abraço entre os brasileiros é uma praxe absolutamente trivial, uma expansão de cordialidade. A polidez é aqui a forma básica natural das relações humanas e assume maneiras que nós na Europa há muito tempo já esquecemos: em toda conversa na rua conservam as pessoas o chapéu na mão; toda vez que alguém pede uma informação é atendido com todo o interesse; e nos círculos sociais mais elevados. o ritual da formalidade com visita, paga de visita e entrega de cartão é realizado com rigor protocolar. Todo estrangeiro é recebido do modo mais acolhedor e tudo lhe facilitam da maneira mais obsequiosa; desconfiados como, infelizmente, nós europeus nos tornamos ante tudo o que é naturalmente humano, perguntamos a amigos e a indivíduos recém-imigrados se essa patente cordialidade não é apenas formalidade, se essa convivência boa, amistosa, sem visível ódio e inveja entre raças e classes não é uma mera ilusão ótica de uma primeira impressão superficial. Mas todos são unânimes em elogiosamente declarar que a primeira e a mais essencial qualidade do povo brasileiro é ser de boa índole. Todo indivíduo a quem perguntamos repete as palavras dos primeiros que chegaram a essa terra: “É a mais gentil gente”. Jamais se ouviu falar aqui de crueldade para com animais, jamais houve aqui autos da fé da Inquisição. Tudo o que é brutal repugna ao brasileiro, e está verificado por estatística que o assassínio aqui quase nunca é praticado com premeditação, é quase sempre espontâneo, é um crime passional, é o resultado de uma explosão súbita de ciúme ou do sentimento de haver sido ofendido. Crimes ligados a astúcia, cálculo, rapacidade e perversidade são muito raros. Quando um brasileiro puxa da faca, está, por assim dizer, num estado de exaltação nervosa; quando visitei a Penitenciária de São Paulo notei que ali absolutamente não havia o verdadeiro tipo do criminoso, perfeitamente caracterizado pela criminologia. Os sentenciados que ali se achavam, eram indivíduos absolutamente pacíficos, de olhar terno, indivíduos que num momento qualquer de superexcitação haviam sido levados a fazer qualquer coisa, da qual mesmo não tinham noção. Mas em geral — e isto é confirmado por todo imigrado — ao brasileiro é alheio tudo o que é violência, brutalidade e sadismo, mesmo nos mais imperceptíveis traços. O brasileiro é de boa índole e de boa fé e o povo possui aquele traço de confiança e cordialidade que muitas vezes é próprio dos meridionais da Europa, porém que raramente é tão pronunciado e tão geral quanto aqui. Em todos os meses que aqui passei, não vi falta de afabilidade, nem nas classes superiores nem nas inferiores; por toda parte pude verificar a mesma ausência de desconfiança — hoje tão rara — para com os estrangeiros, para com os de outras raças ou de outras classes. Às vezes quando, curioso, ia eu ver as “favelas”, essas pitorescas zonas de pretos que ocupam as encostas dos morros situados em plena cidade do Rio de Janeiro, sentia-me intranqüilo e tinha um mau pressentimento, pois afinal de contas eu ia ali por curiosidade, para ver um nível mais baixo de vida e observar, em casebres de bambu e barro e cujo interior está exposto aos olhares de todos os transeuntes, indivíduos no estado mais primitivo e, com isso, indevidamente, espiar para dentro de suas casas e indagar da sua vida mais íntima. No começo, de fato, eu constantemente esperava, como num bairro de trabalhadores proletários na Europa, receber um olhar raivoso ou uma palavra injuriosa pelas costas. Mas para esses indivíduos de boa fé um estrangeiro que se dá ao trabalho de subir aqueles morros, é um hóspede benvindo e quase um amigo; o preto que está carregando água e se encontra comigo, ri, deixando ver sua dentadura reluzente, e ajuda-me a subir os degraus escorregadios de barro; as mulheres que dão de mamar aos filhos, olham-me com afabilidade e despreocupação. E do mesmo modo encontramos em todo bonde, em toda barca, quer estejamos sentados em frente de um preto, quer de um branco ou de um mestiço, a mesma cordialidade. Nunca percebemos algo de separação entre as diversas raças, nem em adultos nem em crianças. A criança preta brinca com a branca, o mulato anda muito naturalmente de braço dado com o negro, em parte alguma há restrição ou sequer “boicotagem” social para as pessoas de cor. No serviço militar, nos empregos, nos mercados, nos escritórios, nas casas comerciais, nas oficinas de trabalho, os indivíduos não pensam em se separar de acordo com a cor e a origem, e trabalham pacífica e amistosamente juntos. Japoneses casam com pretas, e pessoas brancas com pessoas mulatas; a palavra “mestiço” não é aqui um insulto, não encerra em si um menosprezo. O ódio entre as classes e o ódio entre as raças, essas plantas venenosas da Europa, ainda não criaram raízes aqui Brasil (por Stefan Zweig, In: Brasil, país do futuro).
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Imagem: Tarsila do Amaral, Operários (1933).

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