quinta-feira, 22 de abril de 2010

O achamento do Brasil

Durante milhares e milhares de anos jaz incógnito e anônimo o gigantesco território brasileiro com suas florestas verde-escuras e sussurrantes, suas montanhas e seus rios e seu mar ritmicamente sonoro. A tardinha de 22 de abril de 1500, de repente aparecem no horizonte algumas velas brancas; caravelas bojudas e pesadas, com a vermelha cruz portuguesa em suas velas, aproximam-se da costa, e no dia seguinte chegam à praia desconhecida os primeiros escaleres.

É a frota portuguesa que, sob o comando de Pedro Alvares Cabral, em março de 1500 zarpara da foz do Tejo, a fim de repetir a inolvidável viagem de Vasco da Gama, cantada por Camões nos “Lusíadas”, aquele “feito nunca feito”, em torno do Cabo da Boa Esperança, em demanda das Índias... Ao que se veio a dizer, ventos contrários desviaram os navios da rota de Vasco da Gama, para essa ilha desconhecida — pois primeiramente é denominada ilha de Santa Cruz, essa costa, de cuja extensão ainda não se faz idéia. Desde que não se considerem como descobrimentos as viagens de Alonso Pinzon, que chegou às proximidades da foz do Amazonas, e a duvidosa descoberta de Vespuccio, parece pois que o descobrimento do Brasil teria cabido a Portugal e a Pedro Alvares Cabral, graças apenas a uma singular combinação entre os ventos e as ondas. Os historiadores, porém, há muito que não estão mais propensos a dar crédito a esse “acaso” pois Cabral levava consigo o piloto de Vasco da Gama, o qual conhecia exatamente o caminho mais próximo, e a fábula dos ventos contrários perde de valor, em face: do testemunho de Pero Vaz de Caminha, que se achava a bordo e afirmou expressamente que eles,. “sem haver tempo forte ou contrário”, se haviam afastado do Cabo Verde. Como nenhuma tempestade os houvesse desviado tanto para oeste que, em vez de contornarem o cabo de Boa Esperança, subitamente aportassem ao Brasil, uma determinada intenção ou — o que ainda é mais provável — uma ordem secreta de seu rei — fez com que dirigisse Cabral o seu curso para oeste. Isso torna mais provável a hipótese que a Coroa portuguesa, já muito antes do descobrimento oficial, tivesse conhecimento secreto da existência e da situação geográfica do Brasil. Há nesse ponto ainda grande segredo. Os documentos que poderiam desvendá-lo desapareceram para sempre, com a destruição dos arquivos, por ocasião do terremoto de Lisboa, e o mundo provavelmente nunca saberá o nome do primeiro descobridor do Brasil. Parece que, logo após o descobrimento da América por Colombo, um navio português foi enviado para explorar essa nova parte do mundo e, de regresso, levou novas informações, ou, já antes de Colombo obter audiência, tinha a Coroa portuguesa conhecimento mais ou menos certo dessa terra, no oeste longínquo. A favor disso há também certos elementos. Mas o que quer que soubesse, evitava Portugal dá-lo a conhecer ao vizinho invejoso; na época dos descobrimentos a Coroa tratava todas as novidades relativas a explorações náuticas como segredo militar ou comercial de Estado, cuja divulgação a potências estrangeiras era punida com a pena de morte. Mapas, portulanos, roteiros, relatórios de pilotos, do mesmo modo que ouro e pedras preciosas, eram encerradas na Tesouraria de Lisboa, como preciosidades, e, particularmente no caso do Brasil, uma divulgação prematura era inoportuna, pois, de acordo com a bula papal Inter Caetera, legalmente pertenciam aos espanhóis ainda todas as regiões até a distância de cem léguas a oeste do Cabo Verde. Um descobrimento oficial dentro dessa zona, nesse momento, só teria aumentado as posses do vizinho, e não as próprias. Não era, pois, do interesse de Portugal anunciar, antes de tempo, tal descobrimento, se de fato ele se dera. Era preciso estar legalmente garantido que essa nova terra pertencia não à Espanha, mas sim à Coroa portuguesa, e isso Portugal, com manifesta previdência, garantira a si por meio do Tratado de Tordesilhas, que em 7 de junho de 1494, portanto pouco depois do descobrimento da América, ampliara a zona portuguesa, das primitivas cem léguas para trezentas e setenta a oeste do Cabo Verde — justamente, pois, tanto que abrangesse ela a costa do Brasil, ao que se diz, ainda então não descoberta. Se essa ampliação foi uma casualidade, não deixou de ser uma casualidade que concorda admiravelmente com o desvio de Pedro Alvares Cabral, da rota natural, desvio que, por outro modo, é inexplicável.

Essa hipótese, levantada por alguns historiadores, de um anterior conhecimento do Brasil e de uma instrução secreta del-Rei dada a Cabral, para que se desviasse muito para oeste, a fim de que por uma “maravilhosa casualidade” — “milagrosamente”, como escreveu ele ao rei da Espanha — pudesse descobrir a nova terra, ganha também muito de credibilidade pela maneira como o cronista da frota, Pero Vaz de Caminha, dá ao rei notícia do descobrimento do Brasil. Ele não manifesta admiração ou entusiasmo de inesperadamente ter aportado à nova terra: consigna apenas secamente o fato, como uma coisa natural. Igualmente o segundo cronista, que é desconhecido, diz apenas “che ebbe grandissimo piacere”. Nem uma palavra de triunfo, nenhuma das suposições, usuais, em Colombo e em seus sucessores, de que, com isso, se houvesse atingido a Ásia — nada mais do que uma notícia fria, que parece mais confirmar um fato. conhecido do que anunciar um novo. Assim, por um ulterior achado de documentos, poderia Cabral talvez ainda perder definitivamente a glória de haver descoberto o Brasil, a qual, aliás, já é contestada com o aportamento de Pinzon ao norte do rio Amazonas. Mas, enquanto não tivermos tal documento, deve o dia 22 de abril de 1500 ser considerado a data em que esta nova nação entrou para a História Universal.

A primeira impressão causada pela nova terra aos navegadores que a ela aportam é excelente: terra fértil, ventos amenos, fresca água potável, abundantes frutos, habitantes afáveis e não perigosos. Quem quer que chegue ao Brasil nos anos seguintes, repete as palavras hínicas de Américo Vespuccio, que, aqui chegando um ano depois de Cabral, exclama: “Se algures na terra existe o paraíso terrestre, não pode ele estar longe daqui!” Os habitantes que nos primeiros dias aparecem, em inocente traje de nudez, aos descobridores, e lhes mostram o corpo nu “com tanta inocência como o rosto”, os acolhem afavelmente. Mas são sobretudo as mulheres que, por seu corpo bem feito e sua condescendência rápida e sem preferências, (gratamente gabada também por todos os cronistas posteriores) fazem esquecer aos navegantes as privações de muitas semanas. Por enquanto não se dá uma verdadeira exploração ou ocupação do interior do novo território, pois Cabral, após o cumprimento de sua incumbência secreta, tem que, o mais depressa possível, prosseguir para sua meta oficial, para as Índias. A 2 de maio, após uma permanência de, ao todo, dez dias, ruma para a África, depois de ordenar a Gaspar de Lemos que com um navio percorra a costa na direção do norte e em seguida regresse a Lisboa, levando a notícia do descobrimento e alguns exemplares de frutos, de vegetais e de animais da nova terra.
A nova de que a frota de Cabral, seja em cumprimento de uma incumbência secreta, seja por mero acaso, atingiu essa nova terra, é recebida com agrado, mas sem verdadeiro entusiasmo, no palácio real. Em cartas oficiais é ela transmitida ao rei da Espanha, a fim de ficar garantido para Portugal o título legal de posse. Todavia a comunicação de que o novo território é uma região “sem ouro, nem prata, nem nenhuma coisa de metal”, a princípio confere pouco valor ao descobrimento, Portugal descobriu nos últimos decênios tantas terras e se apossou duma parte tão grande do mundo que a capacidade colonizadora desse pequeno país verdadeiramente está de todo esgotada. O novo caminho marítimo para as Índias garante-lhe o monopólio das especiarias e, só com isso, já uma riqueza imensa. Sabe-se em Lisboa que em Calicut, em Malaca, a riqueza em pedras preciosas, tecidos custosos, porcelanas e especiarias, que há séculos se tornou lendária, está pronta para sofrer uma ousada pilhagem, e a sofreguidão de, com um assalto, arrebatar para si todo esse mundo de cultura superior e de fausto oriental impele Portugal a uma exaltação de intrepidez e de heroísmo, que dificilmente, na História Universal, outra se lhe iguala. Mesmo os “Lusíadas” quase não conseguem tornar compreensível essa nova expedição, semelhante à de Alexandre Magno, que um punhado de homens empreende, a fim de, com alguns navios, conquistar simultaneamente três continentes e, além disso, todo o oceano desconhecido. É que o pequeno e pobre Portugal, que, quase apenas há dois séculos, se libertou do domínio árabe, não possui dinheiro; o rei, toda vez que prepara uma frota, tem de antemão que empenhar o rendimento dela a banqueiros e comerciantes. Portugal também não possui soldados em número suficiente para guerrear ao mesmo tempo, os árabes, os indús, os malaios, os africanos, os selvagens e, em todos os lugares dos três continentes, estabelecer colônias e fortalezas. Contudo, como por milagre, extrai de si todas essas forças; cavaleiros, camponeses, e, conforme certa vez disse Colombo, indignado, até alfaiates abandonam as oficinas, as mulheres, os filhos, todos as suas profissões, e afluem, de todo o país, para os portos. Não os assusta o fato de que, segundo as célebres palavras de João de Barros, se torne “o oceano o mais freqüente túmulo dos portugueses”, pois a palavra “Índias” possui poder mágico. O rei sabe que um navio que regressa de Golconda compensa o prejuízo de dez que se perdem; um homem que resiste às tempestades, aos naufrágios, aos combates, às doenças, está rico para si e para seus descendentes. Como a porta que dá para a tesouraria do mundo de então está arrombada, ninguém quer permanecer na “pequena casa” da pátria, e essa vontade unânime dá a Portugal um êxtase de força e de coragem que, por um século, faz do impossível possibilidade e da inverossimilhança realidade Brasil (por Stefan Zweig, In: Brasil, país do futuro).
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Imagem: Monte Pascoal, por João Farias.

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