segunda-feira, 26 de abril de 2010

Pátria minha

Pátria minha idolatrada salve, salve! Nesse mês de abril o Salvador na sola do pé homenageou o Brasil por meio de poemas falados. Brasil amado, Brasil querido, Brasil venerado porque é a pátria minha gentil que me pariste. Mãe amada, mãe gentil, mãe cruel. O Brasil é uma mãe estranha que acolhe e maltrata, que ampara e despreza, que afaga e violenta, que nos orgulha e envergonha. Nosso país ainda conserva em suas estruturas sociais vícios terríveis que nasceram tão logo o colonizador resolveu fincar raízes nessas terras. Nossas antigas misérias continuam a atormentar milhares de brasileiros. Nossas misérias mais recentes afligem milhões de brasileiros nos grandes e pequenos centros urbanos. A saúde e educação precárias insistem e persistem. As desigualdades sociais estão cada vez mais acentuadas. O tráfico de drogas avança de forma assustadora, contaminando a sociedade como câncer virulento. A violência nos grandes centros urbanos ganhou ares de guerra civil não declarada. Nas pequenas cidades e, também, no campo a subserviência e o medo ainda nos fazem lembrar os idos tempos dos coronéis. Na política, enquanto os homens exercem seus podres poderes, como já escreveu o Caetano Veloso, a corrupção de toda espécie nos mata, aos poucos, ou nem tão aos poucos assim, de fome, de raiva e de sede. Oh, pátria minha gentil que me pariste, que será do teu futuro se o futuro é agora?! O Poema Falado desta semana (ver abaixo)foi produzido com trechos dos versos do Vinícius de Moraes intitulados Pátria Minha. Quem os recita é a sempre magnífica Maria Bethânia. Boa leitura! (por Sílvio Benevides)
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A minha pátria é como se não fosse, é íntima / Doçura e vontade de chorar; uma criança dormindo / É minha pátria. Por isso, no exílio / Assistindo dormir meu filho / Choro de saudades de minha pátria. // Se me perguntarem o que é a minha pátria direi: não sei. / De fato, não sei / Como, por que e quando a minha pátria / Mas sei que a minha pátria é a luz, o sal e a água / Que elaboram e liquefazem a minha mágoa / Em longas lágrimas amargas. // Vontade de beijar os olhos de minha pátria / De niná-la, de passar-lhe a mão pelos cabelos... / Vontade de mudar as cores do vestido (auriverde!) tão feias / De minha pátria, de minha pátria sem sapatos / E sem meias pátria minha / Tão pobrinha! // Porque te amo tanto, pátria minha, eu que não tenho / Pátria, eu semente que nasci do vento / Eu que não vou e não venho, eu que permaneço / Em contato com a dor do tempo, eu elemento / De ligação entre a ação o pensamento / Eu fio invisível no espaço de todo adeus / Eu, o sem Deus! // Tenho-te no entanto em mim como um gemido / De flor; tenho-te como um amor morrido / A quem se jurou; tenho-te como uma fé / Sem dogma; tenho-te em tudo em que não me sinto a jeito / Nesta sala estrangeira com lareira / E sem pé-direito. // Ah, pátria minha, lembra-me uma noite no Maine, Nova Inglaterra / Quando tudo passou a ser infinito e nada terra / E eu vi alfa e beta de Centauro escalarem o monte até o céu / Muitos me surpreenderam parado no campo sem luz / À espera de ver surgir a Cruz do Sul / Que eu sabia, mas amanheceu... // Fonte de mel, bicho triste, pátria minha / Amada, idolatrada, salve, salve! / Que mais doce esperança acorrentada / O não poder dizer-te: aguarda... / Não tardo! // Quero rever-te, pátria minha, e para / Rever-te me esqueci de tudo / Fui cego, estropiado, surdo, mudo / Vi minha humilde morte cara a cara / Rasguei poemas, mulheres, horizontes / Fiquei simples, sem fontes. // Pátria minha... A minha pátria não é florão, nem ostenta / Lábaro não; a minha pátria é desolação / De caminhos, a minha pátria é terra sedenta / E praia branca; a minha pátria é o grande rio secular / Que bebe nuvem, come terra / E urina mar. // Mais do que a mais garrida a minha pátria tem / Uma quentura, um querer bem, um bem / Um libertas quae sera tamem / Que um dia traduzi num exame escrito: / “Liberta que serás também” / E repito! // Ponho no vento o ouvido e escuto a brisa / Que brinca em teus cabelos e te alisa / Pátria minha, e perfuma o teu chão... / Que vontade de adormecer-me / Entre teus doces montes, pátria minha / Atento à fome em tuas entranhas / E ao batuque em teu coração. // Não te direi o nome, pátria minha / Teu nome é pátria amada, é patriazinha / Não rima com mãe gentil / Vives em mim como uma filha, que és / Uma ilha de ternura: a Ilha Brasil, talvez. // Agora chamarei a amiga cotovia / E pedirei que peça ao rouxinol do dia / Que peça ao sabiá / Para levar-te presto este avigrama: “Pátria minha, saudades de quem te ama...Vinicius de Moraes”.
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Texto extraído do livro Vinicius de Moraes: Poesia Completa e Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1998, p. 383.
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Imagem: Ivaldo Cavalcante.

Tem sempre lugar pro otimismo, cara

Pô, há 500 anos, o Brasil nem existia. Quer dizer, estava encoberto. E 500 anos depois ainda somos um país jovem. Pode? Pode. O Brasil já nasceu equipado com célula-tronco. Por isso, neste albor (oba! oba!), nas primeiras luzes da gloriosa Era Lula, que muitos deturpam para Lula já era, temos a obrigação de repetir alto e bom som: NADA DE PESSIMISMO, COMPATRIOTAS!

Agora são outros 500. E não adianta fazer balanço dos anteriores. Foram bons, foram ruins, foram péssimos, foram um fracasso. Mas já se foram. Agora temos que acreditar nos que vêm. Ora, pois.

Pois se, como todos sabem, a Geometria é resultado da curiosidade dos sábios gregos vagabundando na Ágora de Atenas; a Astronomia veio da superstição que criou antes a Astrologia; a Economia surgiu da avareza; a Eloquência nasceu do ódio e do puxa-saquismo – por que a Grandeza do Brasil não pode começar com um Deficiente Digital? OTIMISMO, GENTE! OTIMISMO! (por Millôr Fernandes)
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Imagem: Millôr Fernandes.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Quem foram os primeiros descobridores da província do Brasil

A província do Brasil está situada além da linha equinocial da parte do sul, debaixo da qual começa ela a correr junto do rio que se diz das Amazonas, onde se principia o norte da linha de demarcação e repartição; e vai correndo esta linha pelo sertão desta província até 45 graus, pouco mais ou menos. Esta terra se descobriu aos 25 dias do mês de abril de 1500 anos por Pedro Álvares Cabral, que neste tempo ia por capitão-mor para a Índia por mandado de el-rei D. Manuel, em cujo nome tomou posse desta província, onde agora é a capitania de Porto Seguro, no lugar onde já esteve a vila de Santa Cruz, que assim se chamou por se aqui arvorar uma muito grande, por mando de Pedro Álvares Cabral, ao pé da qual mandou dizer, em seu dia, a 3 de maio, uma solene missa, com muita festa, pelo qual respeito se chama a vila do mesmo nome, e a província muitos anos foi nomeada por de Santa Cruz e de muitos Nova Lusitânia; e para solenidade desta posse plantou este capitão no mesmo lugar um padrão com as armas de Portugal, dos que trazia para o descobrimento da Índia para onde levava sua derrota. A estas partes foi depois mandado por Sua Alteza Gonçalo Coelho com três caravelas de armada, para que descobrisse esta costa, com as quais andou por elas muitos meses buscando-lhe os portos e rios, em muitos dos quais entrou e assentou marcos dos que para este descobrimento levava, no que passou grandes trabalhos pela pouca experiência e informação que se até então tinha de como a costa corria, e do curso dos ventos com que se navegava. E recolhendo-se Gonçalo Coelho com perda de dois navios, com as informações que pôde alcançar, as veio dar a el-rei D. João, o III, que já neste tempo reinava, o qual logo ordenou outra armada de caravelas que mandou a estas conquistas, a qual entregou a Cristóvão Jacques, fidalgo da sua casa que nela foi por capitão-mor, o qual foi continuando no descobrimento desta costa e trabalhou um bom pedaço sobre aclarar a navegação dela, e plantou em muitas partes padrões que para isso levava. Contestando com a obrigação do seu regimento, e andando correndo a costa, foi dar com a boca da Bahia, a que pôs o nome de Todos os Santos, pela qual entrou dentro, e andou especulando por ela todos os seus recôncavos, em um dos quais — a que chamam o rio do Paraguaçu — achou duas naus francesas que estavam ancoradas resgatando com o gentio, com as quais se pôs às bombardas, e as meteu no fundo, com o que se satisfez e se recolheu para o Reino, onde deu suas informações a Sua Alteza, que, com elas, e com as primeiras e outras que lhe tinha dado Pedro Lopes de Sousa, que por esta costa também tinha andado com outra armada, ordenou de fazer povoar essa província, e repartir a terra dela por capitães e pessoas que se ofereceram a meter nisso todo o cabedal de suas fazendas, do que faremos particular menção em seu lugar (por Gabriel Soares de Sousa, in: Tratado Descritivo do Brasil, 1587).

Poema Falado produzido com trecho da Carta do Descobrimento, de Pero Vaz de Caminha e versos do Carlos Drummond de Andrade intitulados Hino Nacional.
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Imagem: Pedro Álvares Cabral, por Filipe Roberto da Silva Stocqueler.

O achamento do Brasil

Durante milhares e milhares de anos jaz incógnito e anônimo o gigantesco território brasileiro com suas florestas verde-escuras e sussurrantes, suas montanhas e seus rios e seu mar ritmicamente sonoro. A tardinha de 22 de abril de 1500, de repente aparecem no horizonte algumas velas brancas; caravelas bojudas e pesadas, com a vermelha cruz portuguesa em suas velas, aproximam-se da costa, e no dia seguinte chegam à praia desconhecida os primeiros escaleres.

É a frota portuguesa que, sob o comando de Pedro Alvares Cabral, em março de 1500 zarpara da foz do Tejo, a fim de repetir a inolvidável viagem de Vasco da Gama, cantada por Camões nos “Lusíadas”, aquele “feito nunca feito”, em torno do Cabo da Boa Esperança, em demanda das Índias... Ao que se veio a dizer, ventos contrários desviaram os navios da rota de Vasco da Gama, para essa ilha desconhecida — pois primeiramente é denominada ilha de Santa Cruz, essa costa, de cuja extensão ainda não se faz idéia. Desde que não se considerem como descobrimentos as viagens de Alonso Pinzon, que chegou às proximidades da foz do Amazonas, e a duvidosa descoberta de Vespuccio, parece pois que o descobrimento do Brasil teria cabido a Portugal e a Pedro Alvares Cabral, graças apenas a uma singular combinação entre os ventos e as ondas. Os historiadores, porém, há muito que não estão mais propensos a dar crédito a esse “acaso” pois Cabral levava consigo o piloto de Vasco da Gama, o qual conhecia exatamente o caminho mais próximo, e a fábula dos ventos contrários perde de valor, em face: do testemunho de Pero Vaz de Caminha, que se achava a bordo e afirmou expressamente que eles,. “sem haver tempo forte ou contrário”, se haviam afastado do Cabo Verde. Como nenhuma tempestade os houvesse desviado tanto para oeste que, em vez de contornarem o cabo de Boa Esperança, subitamente aportassem ao Brasil, uma determinada intenção ou — o que ainda é mais provável — uma ordem secreta de seu rei — fez com que dirigisse Cabral o seu curso para oeste. Isso torna mais provável a hipótese que a Coroa portuguesa, já muito antes do descobrimento oficial, tivesse conhecimento secreto da existência e da situação geográfica do Brasil. Há nesse ponto ainda grande segredo. Os documentos que poderiam desvendá-lo desapareceram para sempre, com a destruição dos arquivos, por ocasião do terremoto de Lisboa, e o mundo provavelmente nunca saberá o nome do primeiro descobridor do Brasil. Parece que, logo após o descobrimento da América por Colombo, um navio português foi enviado para explorar essa nova parte do mundo e, de regresso, levou novas informações, ou, já antes de Colombo obter audiência, tinha a Coroa portuguesa conhecimento mais ou menos certo dessa terra, no oeste longínquo. A favor disso há também certos elementos. Mas o que quer que soubesse, evitava Portugal dá-lo a conhecer ao vizinho invejoso; na época dos descobrimentos a Coroa tratava todas as novidades relativas a explorações náuticas como segredo militar ou comercial de Estado, cuja divulgação a potências estrangeiras era punida com a pena de morte. Mapas, portulanos, roteiros, relatórios de pilotos, do mesmo modo que ouro e pedras preciosas, eram encerradas na Tesouraria de Lisboa, como preciosidades, e, particularmente no caso do Brasil, uma divulgação prematura era inoportuna, pois, de acordo com a bula papal Inter Caetera, legalmente pertenciam aos espanhóis ainda todas as regiões até a distância de cem léguas a oeste do Cabo Verde. Um descobrimento oficial dentro dessa zona, nesse momento, só teria aumentado as posses do vizinho, e não as próprias. Não era, pois, do interesse de Portugal anunciar, antes de tempo, tal descobrimento, se de fato ele se dera. Era preciso estar legalmente garantido que essa nova terra pertencia não à Espanha, mas sim à Coroa portuguesa, e isso Portugal, com manifesta previdência, garantira a si por meio do Tratado de Tordesilhas, que em 7 de junho de 1494, portanto pouco depois do descobrimento da América, ampliara a zona portuguesa, das primitivas cem léguas para trezentas e setenta a oeste do Cabo Verde — justamente, pois, tanto que abrangesse ela a costa do Brasil, ao que se diz, ainda então não descoberta. Se essa ampliação foi uma casualidade, não deixou de ser uma casualidade que concorda admiravelmente com o desvio de Pedro Alvares Cabral, da rota natural, desvio que, por outro modo, é inexplicável.

Essa hipótese, levantada por alguns historiadores, de um anterior conhecimento do Brasil e de uma instrução secreta del-Rei dada a Cabral, para que se desviasse muito para oeste, a fim de que por uma “maravilhosa casualidade” — “milagrosamente”, como escreveu ele ao rei da Espanha — pudesse descobrir a nova terra, ganha também muito de credibilidade pela maneira como o cronista da frota, Pero Vaz de Caminha, dá ao rei notícia do descobrimento do Brasil. Ele não manifesta admiração ou entusiasmo de inesperadamente ter aportado à nova terra: consigna apenas secamente o fato, como uma coisa natural. Igualmente o segundo cronista, que é desconhecido, diz apenas “che ebbe grandissimo piacere”. Nem uma palavra de triunfo, nenhuma das suposições, usuais, em Colombo e em seus sucessores, de que, com isso, se houvesse atingido a Ásia — nada mais do que uma notícia fria, que parece mais confirmar um fato. conhecido do que anunciar um novo. Assim, por um ulterior achado de documentos, poderia Cabral talvez ainda perder definitivamente a glória de haver descoberto o Brasil, a qual, aliás, já é contestada com o aportamento de Pinzon ao norte do rio Amazonas. Mas, enquanto não tivermos tal documento, deve o dia 22 de abril de 1500 ser considerado a data em que esta nova nação entrou para a História Universal.

A primeira impressão causada pela nova terra aos navegadores que a ela aportam é excelente: terra fértil, ventos amenos, fresca água potável, abundantes frutos, habitantes afáveis e não perigosos. Quem quer que chegue ao Brasil nos anos seguintes, repete as palavras hínicas de Américo Vespuccio, que, aqui chegando um ano depois de Cabral, exclama: “Se algures na terra existe o paraíso terrestre, não pode ele estar longe daqui!” Os habitantes que nos primeiros dias aparecem, em inocente traje de nudez, aos descobridores, e lhes mostram o corpo nu “com tanta inocência como o rosto”, os acolhem afavelmente. Mas são sobretudo as mulheres que, por seu corpo bem feito e sua condescendência rápida e sem preferências, (gratamente gabada também por todos os cronistas posteriores) fazem esquecer aos navegantes as privações de muitas semanas. Por enquanto não se dá uma verdadeira exploração ou ocupação do interior do novo território, pois Cabral, após o cumprimento de sua incumbência secreta, tem que, o mais depressa possível, prosseguir para sua meta oficial, para as Índias. A 2 de maio, após uma permanência de, ao todo, dez dias, ruma para a África, depois de ordenar a Gaspar de Lemos que com um navio percorra a costa na direção do norte e em seguida regresse a Lisboa, levando a notícia do descobrimento e alguns exemplares de frutos, de vegetais e de animais da nova terra.
A nova de que a frota de Cabral, seja em cumprimento de uma incumbência secreta, seja por mero acaso, atingiu essa nova terra, é recebida com agrado, mas sem verdadeiro entusiasmo, no palácio real. Em cartas oficiais é ela transmitida ao rei da Espanha, a fim de ficar garantido para Portugal o título legal de posse. Todavia a comunicação de que o novo território é uma região “sem ouro, nem prata, nem nenhuma coisa de metal”, a princípio confere pouco valor ao descobrimento, Portugal descobriu nos últimos decênios tantas terras e se apossou duma parte tão grande do mundo que a capacidade colonizadora desse pequeno país verdadeiramente está de todo esgotada. O novo caminho marítimo para as Índias garante-lhe o monopólio das especiarias e, só com isso, já uma riqueza imensa. Sabe-se em Lisboa que em Calicut, em Malaca, a riqueza em pedras preciosas, tecidos custosos, porcelanas e especiarias, que há séculos se tornou lendária, está pronta para sofrer uma ousada pilhagem, e a sofreguidão de, com um assalto, arrebatar para si todo esse mundo de cultura superior e de fausto oriental impele Portugal a uma exaltação de intrepidez e de heroísmo, que dificilmente, na História Universal, outra se lhe iguala. Mesmo os “Lusíadas” quase não conseguem tornar compreensível essa nova expedição, semelhante à de Alexandre Magno, que um punhado de homens empreende, a fim de, com alguns navios, conquistar simultaneamente três continentes e, além disso, todo o oceano desconhecido. É que o pequeno e pobre Portugal, que, quase apenas há dois séculos, se libertou do domínio árabe, não possui dinheiro; o rei, toda vez que prepara uma frota, tem de antemão que empenhar o rendimento dela a banqueiros e comerciantes. Portugal também não possui soldados em número suficiente para guerrear ao mesmo tempo, os árabes, os indús, os malaios, os africanos, os selvagens e, em todos os lugares dos três continentes, estabelecer colônias e fortalezas. Contudo, como por milagre, extrai de si todas essas forças; cavaleiros, camponeses, e, conforme certa vez disse Colombo, indignado, até alfaiates abandonam as oficinas, as mulheres, os filhos, todos as suas profissões, e afluem, de todo o país, para os portos. Não os assusta o fato de que, segundo as célebres palavras de João de Barros, se torne “o oceano o mais freqüente túmulo dos portugueses”, pois a palavra “Índias” possui poder mágico. O rei sabe que um navio que regressa de Golconda compensa o prejuízo de dez que se perdem; um homem que resiste às tempestades, aos naufrágios, aos combates, às doenças, está rico para si e para seus descendentes. Como a porta que dá para a tesouraria do mundo de então está arrombada, ninguém quer permanecer na “pequena casa” da pátria, e essa vontade unânime dá a Portugal um êxtase de força e de coragem que, por um século, faz do impossível possibilidade e da inverossimilhança realidade Brasil (por Stefan Zweig, In: Brasil, país do futuro).
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Imagem: Monte Pascoal, por João Farias.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Saudações, Brasília!

Hoje a capital do Brasil está a completar 50 anos de história. Uma cidade cuja face reflete bem a face do nosso país. De um lado, qualidades que nos engrandecem e orgulham. De outro, defeitos que nos envergonham e humilham. Quando, normalmente, se fala em Brasília, a primeira imagem que nos vem à mente é a de corrupção política, esteja ela no âmbito federal, no âmbito distrital ou, ainda, nos corredores do funcionalismo público. Brasília é o principal centro político do país. Como a política profissional nos tem dado motivos de sobra para desconfiarmos dela, nossa capital fica estigmatizada como um antro de corrupção e sujeira. Vergonha!

Mas enxergar Brasília apenas pelo prisma da corrupção política é, no mínimo, injustiça. A capital do Brasil é uma cidade exuberante e bela. Discorrer sobre sua arquitetura já é lugar comum. Os prédios e monumentos projetados por seus idealizadores nos deslumbram e fascinam muito mais quando os vemos de perto, bem ao alcance dos olhos e do coração, que palpita a cada encontro com as paisagens de cartão postal. Sua natureza é dotada de uma singela exuberância que em poucas cidades do Brasil e do mundo se pode encontrar. Maravilha cuja beleza, não sei por que, me faz lembrar os versos escritos por Carlos Lyra e Vinícius de Moraes: “coisa mais bonita é você assim; justinho você; eu juro, eu não sei por que você”.

A despeito da sua arquitetura e da sua natureza, o maior tesouro de Brasília é mesmo o seu povo. Simpático e hospitaleiro, o brasiliense sabe receber um visitante de braços abertos e sorriso largo, coisa que jamais esquecerei. A cara dessa gente é, também, a cara do povo brasileiro: misturado, miscigenado e com influências culturais que sintetizam a identidade dos diferentes povos espalhados por esse imenso Brasil. Por tudo isso, considero injusto associar Brasília tão somente ao lado podre da política. Concordo com o Presidente Lula quando ele declarou aos Diários Associados, em um momento de sensatez, que há, sim, razões de sobre para o povo de Brasília comemorar. Para ele, “o significado de Brasília como capital não pode ser confundido com os administradores que cometeram absurdos. Muitas vezes os erros são cometidos porque as pessoas acham que são impunes. Brasília, de um lado, tem que estar de luto, porque aconteceu essa barbaridade, mas, ao mesmo tempo, tem que ter orgulho. É uma cidade extraordinária, que tem crescido muito acima do que foi previsto por Niemeyer e JK. Cresceu um pouco desordenada, acho que houve irresponsabilidade em alguns momentos. Brasília é isso, tem um lado humano, o Plano Piloto, o centro das cidades satélites, e o lado desumano daqueles que vivem no Entorno em situações adversas. Ainda assim, acho que o povo tem que comemorar porque foi uma epopeia o nosso Juscelino cumprir e ter coragem de fazer uma coisa pensada em 1823. Não era fácil tirar a capital do Rio de Janeiro”. Comemoremos, pois, com os versos do Vinícius de Moraes! Saudações, Brasília! “Terra de irmãos, ó alma brasileira...Terra-poesia de canções e de perdão, terra que um dia encontrou seu coração”, no meu coração. Parabéns brasilienses! (por Sílvio Benevides)
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Imagem: Memorial JK (Brasília), por Sílvio Benevides.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Acerca de las historias de Pindorama

Para la historia oficial, el Brasil inició en 1500, cuando la flota del lusitano Pedro Álvares Cabral llegó aquí. Sin embargo, mucho antes de los portugueses desembarcaren en esta tierra ella ya era habitada por pueblos de diversas naciones. Algunos de estos pueblos, principalmente aquellos que habitaban el litoral, solían llamar de Pindorama, esto es, “tierra de las palmeras”, el suelo que Cabral bautizó de Tierra de Vera Cruz y hoy he llamada de Brasil. Luego, Pindorama es el Brasil de los otros tiempos.

Como se sabe, el Brasil es fruto de una conjunción de tres pueblos de origines diferentes: indígenas, africanos y europeos. Pero, mucho más que una conjunción genética, el pueblo brasileño es fruto de una conjunción de leyendas, creencias, mitos e historias provenientes de las más distintas tradiciones que, en las tierras de Pindorama, se mezclaron de una manera singular, como escribió Darcy Ribeiro.

El “Poema Falado” de hoy es compuesto de variadas imágenes que retratan el pueblo brasileño y sus mezclas culturales llenas de horror y, muchas veces, graciosas también. El énfasis fue dado a la cultura indígena. Esta opción ocurrió, primeramente, por causa de mi afinidad con esta cultura. Después, porque yo pienso que los indígenas necesitan más de voz que los negros, por ejemplo. No porque sufrieron más o fueran más masacrados, pero porque fueron casi extintos. Bien o mal los negros consiguieron resistir de manera magnifica a la violencia colonizadora y su cultura y tradiciones están muy presentes en la sociedad brasileña hasta hoy. Lo mismo no ocurrió con la cultura indígena. El proceso de extinción todavía no he finalizado, pues actualmente está en curso un otro igualmente peligroso que es el exterminio simbólico. Así, creo que sea necesario hablar sobre ellos y también sobre su participación en el proceso de formación de la cultura, de la mentalidad y de la lengua brasileña (por Sílvio Benevides).

El Poema Falado abajo fue producido con fragmentos de la Carta do Descobrimento, de Pero Vaz de Caminha, y versos de Oswald de Andrade intitulados Erro de Português. La música es Io Paraná, cantada por los indígenas Caiapó Metutire e también por el gran brasileño Gilberto Gil.
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Imagem: Guerreiro, por Chico Mazzoni (1985).

Do tratamento que fazem às mulheres e como as escudeiram

Costumam estes índios tratar bem às mulheres, nem lhe dão nunca, nem pelejam com elas, tirando em tempo dos vinhos, porque então de ordinário se vingam delas, dando por desculpa depois o vinho que beberam e logo ficam amigos como dantes, e não duram muito os ódios entre eles, sempre andam juntos e quando vão fora a mulher vai detrás e o marido diante para que se acontecer alguma cilada não caia a mulher nela, e tenha tempo para fugir enquanto o marido peleja com o contrário, etc., mas à tornada da roça ou qualquer outra parte vem a mulher diante e o marido detrás, porque, como tenha já tudo seguro, se acontecer algum desastre possa a mulher que vai diante fugir para casa, e o marido ficar com os contrários, ou qualquer cousa. Porém em terra segura ou dentro na povoação sempre a mulher vai diante o marido detrás, porque são ciosos e querem sempre ver a mulher (por Fernão Cardim, in: Tratado da terra e gente do Brasil, 1625).

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Imagem: Casal Cinta Larga, coleção de postais de Jorge Lara.

Sobre selvagens Tupinambás, dos quais eu fui prisioneiro

Os Tupinambás vivem próximos ao mar, ao pé da grande serra já mencionada, mas seu território se estende também além das montanhas, por cerca de sessenta milhas. Têm terras no Rio Paraíba, que vem da serra e desemboca no mar, e ao longo do mar possuem uma área de cerca de 28 milhas de comprimento, que habitam.

São pressionados por adversários de todos os lados. Ao norte, seus vizinhos são uma tribo de selvagens chamados Guaitacás. São seus inimigos. Seus adversários ao sul são os Tupiniquins; os que vivem em direção ao interior da terra são chamados Carajás; perto deles, na serra, vivem os Guaianás, e, entre estes, vive mais uma tribo, a dos Maracajás, que os perseguem continuamente. Todas estas tribos guerreiam entre si, e quando alguém captura um inimigo, ele é comido (por Hans Staden, in: Duas viagens ao Brasil, 1556).

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Imagem: Guerreiro Paiter, por Jesco von Puttkamer (1970).

Que trata da luxúria destes bárbaros

São os tupinambás tão luxuriosos que não há pecado de luxúria que não cometam; os quais sendo de muito pouca idade têm conta com mulheres, e bem mulheres; porque as velhas, já desestimadas dos que são homens, granjeiam estes meninos, fazendo-lhes mimos e regalos, e ensinam-lhes a fazer o que eles não sabem, e não os deixam de dia, nem de noite. É este gentio tão luxurioso que poucas vezes têm respeito às irmãs e tias, e porque este pecado é contra seus costumes, dormem com elas pelos matos, e alguns com suas próprias filhas; e não se contentam com uma mulher, mas têm muitas, como já fica dito pelo que morrem muitos de esfalfados. E em conversação não sabem falar senão nestas sujidades, que cometem cada hora; os quais são tão amigos da carne que se não contentam, para seguirem seus apetites, com o membro genital como a natureza formou; mas há muitos que lhe costumam pôr o pêlo de um bicho tão peçonhento, que lho faz logo inchar, com o que têm grandes dores, mais de seis meses, que se lhe vão gastando espaço de tempo; com o que se lhes faz o seu cano tão disforme de grosso, que os não podem as mulheres esperar, nem sofrer; e não contentes estes selvagens de andarem tão encarniçados neste pecado, naturalmente cometido, são muito afeiçoados ao pecado nefando, entre os quais se não têm por afronta; e o que se serve de macho, se tem por valente, e contam esta bestialidade por proeza; e nas suas aldeias pelo sertão há alguns que têm tenda pública a quantos os querem como mulheres públicas (por Gabriel Soares de Sousa, in: Tratado Descritivo do Brasil, 1587).
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Imagem: Vicente, índio Chamacoco, por Guido Boggiani (1900).

O povo brasileiro

Quem tentasse derivar de qualquer origem própria do país o que é característico do brasileiro, cairia no inverídico e no artificial, pois nada é tão típico do brasileiro quanto o fato de ser ele um ente humano sem história, ou, ao menos, um ente humano com uma história curta. Sua civilização não assenta como a dos povos europeus em tradições remotas que datam dos tempos míticos, nem pode referir-se, como a dos peruanos e mexicanos, a um passado pré-histórico no próprio solo. Embora a nação brasileira nos últimos anos haja realizado muito por novas combinações e por trabalho próprio, os elementos construtivos de sua civilização são em sua totalidade importados da Europa. Tanto a religião e os costumes quanto o modo de viver desses milhões e milhões de habitantes do Brasil pouco devem ou verdadeiramente nada devem ao seu solo. Todos os valores da civilização foram trazidos do estrangeiro por navios de toda espécie, pelas antigas caravelas portuguesas, pelos vapores modernos, e mesmo o mais patriótico e mais ambicioso empenho não pode até agora achar ou inventar uma contribuição importante dos aborígenes para a civilização brasileira. Não existe poesia brasileira pré-histórica, religião originariamente brasileira, música brasileira antiga, não existem lendas populares conservadas através de séculos e nem mesmo os modestos inícios de uma profissão artística. Ao passo que nos museus nacionais de etnologia de outros países com orgulho são apresentados os exemplares milenários de escrita e de arte autóctones, nos museus brasileiros nada disso há que ver. Contra esse fato de nada vale procurar e esquadrinhar, e os que tentam hoje declarar brasileiros alguns ritos e danças como a macumba e o samba, com isso encobrem e deslocam artificialmente a verdadeira situação, pois essas danças e ritos foram trazidos pelos negros com suas cadeias e suas marcas de ferrete. Tão pouco são autóctones os únicos objetos de arte que se encontraram no solo brasileiro, os utensílios de argila pintados que se encontraram na ilha de Marajó; sem dúvida, foram trazidos ou aqui feitos por indivíduos de raças estrangeiras, provavelmente por peruanos que desceram, o rio Amazonas até a ilha que fica na sua foz. Temos, pois, que nos contentar com o seguinte: no ponto de vista de civilização, nada de característico na arquitetura, e qualquer forma de arte plástica não remonta aqui a uma época anterior à colonial, anterior ao século dezessete ou dezesseis, e mesmo os seus mais belos produtos nas igrejas da Bahia e de Olinda, com seus altares cheios de ouro e seus móveis entalhados, são evidentes rebentos do estilo português ou jesuítico e quase não podem distinguir-se dos existentes em Goa ou dos da própria metrópole. Onde quer que na História aqui alguém pretenda recuar além do dia em que os primeiros europeus aportaram a esta terra, cairá num vácuo, num nada. Tudo o que hoje denominamos brasileiro e como tal reconhecemos, não é possível explicar por meio de uma tradição própria, e sim por meio duma transformação fecunda, operada pela terra, pelo clima e pelos habitantes dela, do que era europeu.

O que é tipicamente brasileiro é hoje já bastante evidente para não ser confundido com o que é português, muito embora o seu parentesco, a sua filiação, ainda seja perceptível. É absurdo negar essa relação. Portugal deu ao Brasil as três coisas que são de importância decisiva para a constituição dum povo, o idioma, a religião e os costumes, e com isso deu as formas segundo as quais o novo país, a nova nação, pode desenvolver-se. Desenvolverem-se para outro conteúdo essas formas primitivas, sob outro sol e num espaço de outras dimensões e com o afluxo cada vez mais intenso de sangue estrangeiro, foi um processo inevitável, porque orgânico, processo que nenhuma autoridade régia e nenhuma organização armada poderia deter. Sobretudo a direção do pensamento das duas nações foi diferente; Portugal, como país mais velho na História, sonhava com um grande passado, que nunca mais poderia repetir-se, e o Brasil tinha e tem os olhos voltados para o futuro. A metrópole já esgotou, de maneira grandiosa, as suas possibilidades, mas a sua ex-colônia, o Brasil, ainda não atingiu inteiramente as suas. A diversidade está não tanto na estrutura étnica quanto numa diferença de gerações. Ambos os povos, hoje unidos por estreita amizade, não se tornaram estranhos um ao outro; viveram, apenas, de certo modo, separados. O sinal mais claro disso é terem ambos o mesmo idioma. Na grafia e no vocabulário, o português falado em Portugal e o falado no Brasil são ainda hoje quase inteiramente idênticos, e é preciso que o leitor conheça bem o idioma para poder dizer que a obra que tem nas mãos é dum poeta brasileiro ou dum poeta português; e, doutra parte, quase nenhum dos vocábulos da língua tupi ou da tamoia que os primeiros missionários ainda registravam, passou ao idioma português do Brasil de hoje. O brasileiro apenas fala o português de moda diferente do que o faz o lusitano, fala-o mais brasileiramente do que este, e nisso está toda a diferença; o mais curioso é que esse sotaque brasileiro permaneceu o mesmo, do norte ao sul, do leste ao oeste, num território de oito milhões e quinhentos mil quilômetros quadrados. O português e o brasileiro compreendem-se perfeitamente, pois se servem dos mesmos vocábulos, da mesma sintaxe, mas na entonação e, em parte também, já na expressão literária começam essas variantes, primitivamente mínimas, a intensificar-se mais ou menos na mesma proporção em que o inglês e o. americano do norte com o mesmo idioma de decênio para decênio se afastam um do outro como individualidades. A influência da distância de mil milhas, de outro clima, de outras condições de vida, de novas relações e novas comunidades necessariamente teve que, após quatrocentos anos, pouco a pouco se tornar perceptível, e lenta mas inevitavelmente teve que se originar no Brasil um novo tipo, um tipo étnico inteiramente específico.

O que no ponto de vista físico e psíquico caracteriza o brasileiro é, sobretudo, ser ele de compleição mais delicada do que a do europeu e a do norte-americano. O tipo corpulento, volumoso, alto, ossudo, falta quase inteiramente entre os brasileiros. Igualmente falta neles toda brutalidade, violência e veemência, tudo o que é grosseiro, presunçoso e arrogante. O brasileiro é um indivíduo calmo, pensativo e sentimental, às vezes até com um ligeiro laivo de melancolia, a qual já Anchieta em 1585 e o Padre Cardim julgaram sentir na atmosfera, quando qualificaram esta nova terra de “desleixada e remissa e algo melancólica”. Mesmo no trato exterior as maneiras são visivelmente moderadas. É raro ouvir alguém falar alto ou dirigir-se a outra pessoa, encolerizado, aos gritos. E precisamente onde se reúnem massas humanas sente-se mais claramente essa ausência de vozearia, o que ao estrangeiro causa admiração. Numa grande festa popular, como na Penha, ou numa travessia de barca para uma espécie de festa religiosa de arraial na ilha de Paquetá, nas quais num pequeno espaço se acham milhares de pessoas, e entre estas muitas crianças, não ouvimos algazarra e gritos de júbilo, não vemos os indivíduos incitarem-se mutuamente para uma alegria turbulenta. Mesmo quando se divertem em massas, as pessoas aqui se conservam calmas e discretas, e essa ausência de tudo o que é forte e brutal, dá à sua alegria suave um delicioso encanto. Fazer barulho, gritar, fazer algazarra e dançar desenfreadamente são no Brasil prazeres tão contrários aos costumes que, por assim dizer, se reservam para os quatro dias de carnaval, que servem de válvula de segurança para todos os instintos represados; mas, mesmo nesses quatro dias de alegria aparentemente infrene, numa massa de um milhão de pessoas como que picadas por uma tarântula, não se observam excessos, inconveniências e baixezas; todo estrangeiro e até qualquer senhora podem calmamente atrever-se a andar nas ruas cheias de bulício e de ruído. O brasileiro conserva sempre sua natural delicadeza e boa índole. As mais diversas classes tratam-se mutuamente com uma polidez e cordialidade que a nós pessoas da Europa, tão brutalizada nos últimos anos, sempre causam admiração. Vemos abraçarem-se dois homens na rua. Pensamos que são irmãos ou velhos amigos dos quais um acaba de chegar da Europa ou duma viagem ao estrangeiro. Mas na esquina seguinte tornamos a ver dois homens saudarem-se dessa mesma maneira e verificamos então que o abraço entre os brasileiros é uma praxe absolutamente trivial, uma expansão de cordialidade. A polidez é aqui a forma básica natural das relações humanas e assume maneiras que nós na Europa há muito tempo já esquecemos: em toda conversa na rua conservam as pessoas o chapéu na mão; toda vez que alguém pede uma informação é atendido com todo o interesse; e nos círculos sociais mais elevados. o ritual da formalidade com visita, paga de visita e entrega de cartão é realizado com rigor protocolar. Todo estrangeiro é recebido do modo mais acolhedor e tudo lhe facilitam da maneira mais obsequiosa; desconfiados como, infelizmente, nós europeus nos tornamos ante tudo o que é naturalmente humano, perguntamos a amigos e a indivíduos recém-imigrados se essa patente cordialidade não é apenas formalidade, se essa convivência boa, amistosa, sem visível ódio e inveja entre raças e classes não é uma mera ilusão ótica de uma primeira impressão superficial. Mas todos são unânimes em elogiosamente declarar que a primeira e a mais essencial qualidade do povo brasileiro é ser de boa índole. Todo indivíduo a quem perguntamos repete as palavras dos primeiros que chegaram a essa terra: “É a mais gentil gente”. Jamais se ouviu falar aqui de crueldade para com animais, jamais houve aqui autos da fé da Inquisição. Tudo o que é brutal repugna ao brasileiro, e está verificado por estatística que o assassínio aqui quase nunca é praticado com premeditação, é quase sempre espontâneo, é um crime passional, é o resultado de uma explosão súbita de ciúme ou do sentimento de haver sido ofendido. Crimes ligados a astúcia, cálculo, rapacidade e perversidade são muito raros. Quando um brasileiro puxa da faca, está, por assim dizer, num estado de exaltação nervosa; quando visitei a Penitenciária de São Paulo notei que ali absolutamente não havia o verdadeiro tipo do criminoso, perfeitamente caracterizado pela criminologia. Os sentenciados que ali se achavam, eram indivíduos absolutamente pacíficos, de olhar terno, indivíduos que num momento qualquer de superexcitação haviam sido levados a fazer qualquer coisa, da qual mesmo não tinham noção. Mas em geral — e isto é confirmado por todo imigrado — ao brasileiro é alheio tudo o que é violência, brutalidade e sadismo, mesmo nos mais imperceptíveis traços. O brasileiro é de boa índole e de boa fé e o povo possui aquele traço de confiança e cordialidade que muitas vezes é próprio dos meridionais da Europa, porém que raramente é tão pronunciado e tão geral quanto aqui. Em todos os meses que aqui passei, não vi falta de afabilidade, nem nas classes superiores nem nas inferiores; por toda parte pude verificar a mesma ausência de desconfiança — hoje tão rara — para com os estrangeiros, para com os de outras raças ou de outras classes. Às vezes quando, curioso, ia eu ver as “favelas”, essas pitorescas zonas de pretos que ocupam as encostas dos morros situados em plena cidade do Rio de Janeiro, sentia-me intranqüilo e tinha um mau pressentimento, pois afinal de contas eu ia ali por curiosidade, para ver um nível mais baixo de vida e observar, em casebres de bambu e barro e cujo interior está exposto aos olhares de todos os transeuntes, indivíduos no estado mais primitivo e, com isso, indevidamente, espiar para dentro de suas casas e indagar da sua vida mais íntima. No começo, de fato, eu constantemente esperava, como num bairro de trabalhadores proletários na Europa, receber um olhar raivoso ou uma palavra injuriosa pelas costas. Mas para esses indivíduos de boa fé um estrangeiro que se dá ao trabalho de subir aqueles morros, é um hóspede benvindo e quase um amigo; o preto que está carregando água e se encontra comigo, ri, deixando ver sua dentadura reluzente, e ajuda-me a subir os degraus escorregadios de barro; as mulheres que dão de mamar aos filhos, olham-me com afabilidade e despreocupação. E do mesmo modo encontramos em todo bonde, em toda barca, quer estejamos sentados em frente de um preto, quer de um branco ou de um mestiço, a mesma cordialidade. Nunca percebemos algo de separação entre as diversas raças, nem em adultos nem em crianças. A criança preta brinca com a branca, o mulato anda muito naturalmente de braço dado com o negro, em parte alguma há restrição ou sequer “boicotagem” social para as pessoas de cor. No serviço militar, nos empregos, nos mercados, nos escritórios, nas casas comerciais, nas oficinas de trabalho, os indivíduos não pensam em se separar de acordo com a cor e a origem, e trabalham pacífica e amistosamente juntos. Japoneses casam com pretas, e pessoas brancas com pessoas mulatas; a palavra “mestiço” não é aqui um insulto, não encerra em si um menosprezo. O ódio entre as classes e o ódio entre as raças, essas plantas venenosas da Europa, ainda não criaram raízes aqui Brasil (por Stefan Zweig, In: Brasil, país do futuro).
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Imagem: Tarsila do Amaral, Operários (1933).

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Tratado descritivo do Brasil: Proêmio

Como todas as coisas têm fim, convém que tenham princípio, e como o de minha pretensão é manifestar a grandeza, fertilidade e outras grandes partes que tem a Bahia de Todos os Santos e demais Estados do Brasil, do que os reis passados tanto se descuidaram, a el-rei nosso senhor convém, e ao bem do seu serviço, que lhe mostre, por estas lembranças, os grandes merecimentos deste seu Estado, as qualidades e estranhezas dele, etc, para que lhe ponha os olhos e bafeje com seu poder, o qual se engrandeça e estenda a felicidade, com que se engrandeceram todos os Estados que reinam debaixo de sua proteção, porque está muito desamparado depois que el-rei D. João III passou desta vida para a eterna, o qual principiou com tanto zelo, que para o engrandecer meteu nisso tanto cabedal, como é notório, o qual se vivera mais dez anos deixara nele edificadas muitas cidades, vilas e fortalezas mui populosas, o que se não efetuou depois do seu falecimento, antes se arruinaram algumas povoações que em seu tempo se fizeram. Em reparo e acrescentamento estará bem empregado todo o cuidado que Sua Majestade mandar ter deste novo reino, pois está capaz para se edificar nele um grande império, o qual com pouca despesa destes reinos se fará tão soberano que seja um dos Estados do mundo porque terá de costa mais de mil léguas, como se verá por este Tratado no tocante à cosmografia dele, cuja terra é quase toda muito fértil, mui sadia, fresca e lavada de bons ares e regada de frescas e frias águas. Pela qual costa tem muitos, mui seguros e grandes portos, para nele entrarem grandes armadas, com muita facilidade, para as quais tem mais quantidade de madeira que nenhuma parte do mundo, e outros muitos aparelhos para se poderem fazer. É esta província mui abastada de mantimentos de muita substância e menos trabalhosos que os de Espanha. Dão-se nela muitas carnes, assim naturais dela, como das de Portugal, e maravilhosos pescados; onde se dão melhores algodões que em outra parte sabida, e muitos açúcares tão bons como na ilha da Madeira. Tem muito pau de que se fazem as tintas. Em algumas partes dela se dá trigo, cevada e vinho muito bom, e em todas todos os frutos e sementes de Espanha, do que haverá muita qualidade, se Sua Majestade mandar prover nisso com muita instância e no descobrimento dos metais que nesta terra há, porque lhe não falta ferro, aço, cobre, ouro, esmeralda, cristal e muito salitre; e em cuja costa sai do mar todos os anos muito bom âmbar; e de todas estas e outras podiam vir todos os anos a estes reinos em tanta abastança, que se escusem os que vêm a eles dos estrangeiros, o que se pode facilitar sem Sua Majestade meter mais cabedal neste Estado que o rendimento dele nos primeiros anos; com o que pode mandar fortificar e prover do necessário à sua defesa, o qual está hoje em tamanho perigo, que se nisso caírem os corsários, com mui pequena armada se senhorearão desta província, por razão de não estarem as povoações dela fortificadas, nem terem ordem com que possam resistir a qualquer afronta que se oferecer, do que vivem os moradores dela tão atemorizados que estão sempre com o fato entrouxado para se recolherem para o mato, como fazem com a vista de qualquer nau grande, temendo-se serem corsários, a cuja afronta Sua Majestade deve mandar acudir com muita brevidade, pois há perigo na tardança, o que não convém que haja, porque se os estrangeiros se apoderarem desta terra custará muito lançá-los fora dela pelo grande aparelho que têm para nela se fortificarem, com o que se inquietará toda Espanha e custará a vida de muitos capitães e soldados, e muitos milhões de ouro em armadas e no aparelho delas, ao que agora se pode atalhar acudindo-lhe com a presteza devida. Não se crê que Sua Majestade não tenha a isto por falta de providência, pois lhe sobeja para as maiores empresas do mundo, mas de informação do sobredito, que lhe não tem dado quem disso tem obrigação (por Gabriel Soares de Sousa, 1587).

Poema Falado produzido a partir de fragmentos poéticos de Oswald de Andrade, Murilo Mendes e Mário de Andrade como forma de homenagear o Brasil.
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Imagem: Dois de Julho, por Sílvio Benevides.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Brasil que eu amo

Segundo a historiografia oficial, aquela que interpreta a realidade a partir da perspectiva dos dominantes, o Brasil está a completar em 2010 cinco séculos e uma década de existência. Desde a chegada de Pedro Álvares Cabral, que aqui encontrou um porto seguro para atracar a sua nau Capitânia, até nossos dias, são 510 anos de história marcada por mandonismos e cordialidades brutas e banhada por sangue, suor e lágrimas de amargura. Mas a história de um povo, a história de nosso povo, não se resume aos atos de violência e abusos praticados pelos colonizadores contra os nativos, contra os negros, que para cá vieram como escravos, ou contra todo tipo de desvalidos e oprimidos. Nossa história é, também, a história de paixões, amores, delícias, desejos e prazeres de toda ordem. Prazeres trazidos pela aragem de todos os dias, pelo aconchego de corpos em chamas, pelo cheiro de maresia. E é sobre o prazer de ser e pertencer a esta terra toda chã com grandes arvoredos que o Salvador na sola do pé, por meio de poemas falados, irá tecer nestes breves dias de abril as fibras de um tecido chamado Brasil. Brasil por mim amado, não porque seja minha pátria, pois, como já escreveu o Mário de Andrade, “pátria é acaso de migrações e do pão-nosso onde Deus der”. Brasil mui amado porque “é o ritmo do meu braço aventuroso, o gosto dos meus descansos, o balanço das minhas cantigas, amores e danças”. Este é o Brasil que eu amo, este é o Brasil que eu sou, este é o Brasil que eu quero e que me dá muito orgulho. Orgulho de ser, simplesmente. E para dar início às celebrações desse orgulho, o Poema Falado Canção do Exílio (ver abaixo), escrito por Gonçalves Dias. Boa Leitura! (por Sílvio Benevides).
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Imagem: Nego Fugido, por Adenor Gondim.

Como se apresenta a terra da América, ou Brasil, que vi em parte

A América é uma terra extensa. Existem lá várias tribos de homens selvagens com diversas línguas e numerosos animais estranhos. Tem um aspecto aprazível. As árvores estão sempre verdes. Lá não crescem madeiras parecidas com as nossas madeiras de Hessen. Os homens andam nus. Na parte da terra que fica entre os trópicos, em nenhuma estação faz tanto frio como aqui, no dia de São Miguel, mas a terra ao sul do trópico de Capricórnio é um tanto mais fria. Lá vive uma tribo de selvagens chamados Carijós. Eles usam as peles de animais selvagens e preparam-nas com esmero e se cobrem com elas. Suas mulheres produzem tecidos de fios de algodão parecidos com sacos, abertos em cima e em baixo. Vestem-nos e, na língua deles, chamam-nos de tipoi.

Naquela terra existem também algumas frutas de vegetação rasteira e arbórea, das quais homens e animais se alimentam. As pessoas têm o corpo de cor marrom avermelhada. Isso vem do sol, que as queimam assim. É um povo hábil, maldoso e sempre pronto para perseguir e comer os inimigos.

A terra da América estende-se por várias centenas de milhas para o norte e para o sul no sentido do comprimento. Velejei boas quinhentas milhas ao longo da costa, e numa parte da terra estive eu mesmo em numerosos lugares (por Hans Staden, in: Duas viagens para o Brasil, 1556).
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Imagem: National Aeronautics and Space Administration (NASA).

domingo, 4 de abril de 2010

Poema Falado: Os Lusíadas

Caminhar pelas ruas da bela e formosa Lisboa foi para mim como encontrar pedaços meus dispersos aqui e acolá. Foi como reavivar lembranças há muito adormecidas e despertar recordações de tempos imemoriais, quando o Brasil não existia sequer no desejo aventureiro dos destemidos corações lusos. Corações de uma gente antes de tudo brava e forte, cuja audácia redesenhou a geografia ocidental, definiu e redefiniu fronteiras, inventou e reinventou línguas, criou e recriou um mundo novo jamais imaginado. Grandes feitos comparáveis tão somente aos feitos dos mitológicos argonautas. Em homenagem ao peito ilustre lusitano, a quem Netuno e Marte obedeceram, e de onde o Brasil brotou, o Salvador na sola do pé, juntamente com os blogs Bienvenue-ami e O Cantinho de Coccinelle, inicia nesse mês de abril uma série de homenagens ao Brasil. O poema de abertura é Os Lusíadas (Canto I, fragmento), do lusitano-mor Luis Vaz de Camões, cuja língua gosto muito de roçar. Boa leitura (por Sílvio Benevides).

Cessem do sábio Grego e do Troiano / As navegações grandes que fizeram; / Cale-se de Alexandro e de Trajano / A fama das vitórias que tiveram; / Que eu canto o peito ilustre Lusitano, / A quem Netuno e Marte obedeceram. / Cesse tudo o que a Musa antiga canta, / Que outro valor mais alto se levanta [...] // Dai-me uma fúria grande e sonorosa, / E não de agreste avena ou flauta ruda, / Mas de tuba canora e belicosa, / Que o peito acende e a cor ao gesto muda; / Dai-me igual canto aos feitos da famosa / Gente vossa, que a Marte tanto ajuda; / Que se espalhe e se cante no universo, / Se tão sublime preço cabe em verso [...] // Dai vós favor ao novo atrevimento, / Pera que estes meus versos vossos sejam, / E vereis ir cortando o salso argento / Os vossos Argonautas, por que vejam / Que são vistos de vós no mar irado, / E costumai-vos já a ser invocado. / Já no largo Oceano navegavam, / As inquietas ondas apartando; / Os ventos brandamente respiravam, / Das naus as velas côncavas inchando; / Da branca escuma os mares se mostravam / Cobertos, onde as proas vão cortando / As marítimas águas consagradas, / Que do gado de Próteu são cortadas, // — «Eternos moradores do luzente, / Estelífero Pólo e claro Assento: / Se do grande valor da forte gente / De Luso não perdeis o pensamento, / Deveis de ter sabido claramente / Como é dos Fados grandes certo intento / Que por ela se esqueçam os humanos / De Assírios, Persas, Gregos e Romanos (por Luís Vaz de Camões).
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Imagem: Luís Vaz de Camões por Diogo José de Oliveira da Cunha.

Como se viaja de navio de Portugal para o Rio de Janeiro, que fica na América

Lisboa é uma cidade em Portugal e fica 24 graus ao norte do Equador. Quando se quer viajar de Lisboa para a província do Rio de Janeiro, na terra do Brasil, que também é chamada de América, viaja-se primeiro para as ilhas Canárias. Elas pertencem ao Rei da Espanha, e seis delas serão nomeadas aqui: Gran Canaria, Lanzarote, Fuerteventura, Ferro, Palma e Tenerife.

De lá vai-se para o arquipélago , chamado de ilhas de Cabo Verde, que significa ilhas do Morro Verde. Esse morro de cor verde situa-se na terra dos mouros negros, a qual também chamam de Guiné; o arquipélago fica abaixo do trópico de Câncer e pertence ao Rei de Portugal.

A partir das ilhas de Cabo Verde segue-se rumo ao sudoeste até a terra do Brasil. O mar é grande e muito extenso. Freqüentemente navega-se três meses até chegar à terra, primeiro passando pelo trópico de Câncer, que se deixa para trás, ao norte, não se pode mais ver a estrela do Norte, que também se chama estrela polar do Norte. Chega-se então à altura do trópico de Capricórnio em direção ao sul, vê-se o sol ao norte (por Hans Staden, in: Duas viagens para o Brasil, 1556).
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Imagem: Imotion