sábado, 24 de dezembro de 2011

Texto para reflexão: o Natal, o Capital e o Ano Novo

Para refletirmos sobre o real significado do Natal, decidi reproduzir o texto abaixo de autoria do Pedro Estevam Serrano, colunista da Isto é. O texto propõe uma reflexão bastante pertinente e sempre apropriada para as sociedades contemporâneas cada vez mais mergulhadas no consumismo desenfreado e contaminadas por toda sorte de distúrbios e doenças que isso acarreta. Eis o texto!

O Natal, o Capital e o Ano Novo – Na tradição cristã o Natal é a data da comemoração do nascimento de Jesus, e como tal um momento em que valores como generosidade, solidariedade e fraternidade são lembrados como mote da celebração. Nos discursos apenas. Na realidade, Natal é época de compras, consumo. Mais do que momento em que expressamos afeto pela generosidade do presente, tratamos nosso desconforto civilizacional e nossas depressões existenciais indo ao shopping para obter o cumprimento da ilusória promessa de felicidade que o consumo oferece.

A hiper-complexidade das sociedades contemporâneas não facilita uma leitura mais bem acabada de suas macro-características. Não ousaria fazê-lo. Não me sinto habilitado a tanto. Mas minhas leituras e observações pessoais de nossa historia recente me trazem algumas reflexões que se consolidaram em meu espírito sobre a forma em que convivemos no mundo contemporâneo.

Me parece inegável que o correr do século XX e o inicio do XXI trouxe mudanças substancias na forma de organização e produção do sistema capitalista. Não apenas mudança de grau ou intensidade, mas verdadeiras mudanças de qualidade e substancia. Cada momento da história sociopolítica e econômica da humanidade ressalta características existentes na natureza das relações intersubjetivas de nossa espécie. Mercado existia como fenômeno há muito em nossas formas de organização social. A mercancia, a troca, é e foi instrumento relevante de sobrevivência da espécie conforme nossas formas de organização social e de produção foram se tornando mais complexas.

Mas é no capitalismo que esta forma coletiva de troca e produção atinge seu ápice de relevância na vida social, torna-se espinha dorsal de nossas formas de organização social, política e econômica. O capitalismo adquire inegável caráter progressista na história humana em sua versão industrial.

A natureza disciplinar desta forma de produção repercute efeitos sobre todos os ambientes da vida social. Instituições coletivas como escola, hospitais e até restaurantes, organizados em modo hierárquico e a partir de disciplinas substituem formas aristocráticas de acesso a bens coletivos. O Poder Estatal passa a ser exercido a partir de sua submissão a normas, disciplinas coletivas e não à mera vontade autônoma de seu governante. O capitalismo se traduz em sistema de contínua expansão. Por conta das conquistas dos trabalhadores europeus no inicio do século passado, em busca de ampliação de ganhos, o capital se espraia pelo mundo.

Desde o século XIX até os dias de hoje pudemos observar a transformação do capitalismo de forma europeia em modo global de produção. Na contemporaneidade, contudo, outro fator de expansão vem a provocar mudanças que me parecem substanciais no sistema. A produção de mercadorias é secundarizada pela produção de seu feitiche. Mais do que um sistema produtor de mercadorias, o capitalismo se transforma num sistema produtor de subjetividade. Expande-se para a significação humana. Ocupa todos os espaços da vida e do imaginário. A regra econômica do condicionamento da oferta pela demanda é invertida. Oferta produz demanda, como bem enxergou Steve Jobs.

Em verdade, modos de domínio e construção da subjetividade fazem parte do próprio conceito de civilização. Religião, educação e mesmo razão e ciência são formas de trabalho e domínio da subjetividade. Mas creio que nunca tivemos na história humana um sistema sociopolítico e econômico que tivesse na produção de subjetividade o vértice de seu funcionamento. E não me refiro apenas ao âmbito limitado da publicidade e suas técnicas de marketing e nem apenas ao espetáculo que tende a dominar a linguagem midiática. Falo de toda uma máquina de comunicação e sentidos que ocupam todo nosso espaço imaginário, racional e afetivo. Impossível imaginarmos hoje uma historia pessoal de romance sem os signos de Hollywood por exemplo.

Como consequência evidente deste processo, o papel do consumidor vai substituindo o do cidadão e os exércitos de reserva de mão de obra vão saindo da reserva para a cruel exclusão da vida. O sistema passa a ter pelo poder da exclusão o exercício máximo do que Schimitt entendia como soberania. A capacidade de transformar o direito em exceção, dando ao poder o condão de disposição da vida do destinatário.

Vivemos hoje um mundo recheado de estados democráticos, mas submetidos a uma governança global imperial que se realiza em rede, sem contar, portanto, com o lugar que a disciplina outorga ao poder, o que possibilitaria identificá-lo e limitá-lo. E assim vamos às compras, sem esquecer de comprar brinquedos e roupas para nossos entes queridos e mesmo para crianças desamparadas e pessoas desfavorecidas. Não nos perguntamos a que custo vital se produzem estes bens tão baratos em alguma parte do globo, seja pela quase escravidão dos trabalhadores que os produzem seja pela exclusão necessária da vida de amplos contingentes humanos que o sistema hoje exige para operar.

Mais que autonomia de vontade, ser livre no mundo contemporâneo é ser espontâneo, e no exercício desta espontaneidade entender que estamos todos inseridos num contexto sistêmico em que o custo de nossa inclusão e sobrevivência é compartilhar e fazer parte de um processo produtivo essencialmente antiético, em que nem sequer o lugar nobre da inocência nos é possível ocupar. Mas no florescer mais intenso desta espontaneidade podemos transformá-lo, traduzir em mecanismos de cidadania global o que hoje é ilimitado e regido apenas pela força. Assim desejo a todos os leitores, que este Natal seja o nascer de nossa espontaneidade e que, através dela, em 2012 venha a destruição não do mundo e da vida, mas da morte que ronda nossa civilização (por Pedro Estevam Serrano).


Imagem: Haddon Sundblom

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