Como disseram os organizadores do II CachoeiraDoc, que ocorreu entre os dias 07 e 11 de dezembro, na histórica cidade de Cachoeira, Recôncavo baiano, o festival tem por desejo “provocar um deslocamento de rotas tradicionais”. Se este era o principal objetivo, devo dizer que ele foi plenamente atingido, pois deslocamentos não faltaram ao evento.
Documentários não costumam ser atraentes para produtores e exibidores ávidos por lucro. Tampouco costumam atrair um público acostumado com padrões estéticos estáticos. Se considerássemos tão somente estes dois aspectos o CachoeiraDoc já se justificaria como fundamental, pois possibilita que produções de valor encontrem um público com o qual possa dialogar e, por outro lado, um público disposto a ampliar seus horizontes estéticos. Mas os deslocamentos de rotas tradicionais propostos pela equipe organizadora do festival perpassaram, também, o tempo, o espaço e o político. Este último, em especial, foi o que mais me entusiasmou.
O festival teve início com a exibição na Praça D’Ajuda do documentário MARIGHELLA (2011), da Iza Grinspum Ferraz, a mesma diretora do magnífico O POVO BRASILEIRO (2000), baseado na obra do Darcy Ribeiro. Carlos Marighella, como se sabe (ou, pelo menos, se deveria saber), foi membro do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e considerado o inimigo número um do regime militar instituído em 1964 por conta, sobretudo, da sua atuação política na guerrilha urbana. Perseguido a vida toda por conta de suas convicções ideológicas, Marighella foi assassinado pela ditadura em novembro de 1969. Esse trabalho da Iza Grinspum é fundamental por dois motivos. Primeiro, porque a partir das suas lembranças infantis sobre o seu tio Marighella, ela resgata não apenas a memória da sua família, mas, também, a memória do Brasil, que neste caso específico, como em tantos outros, foi insistentemente negada. Segundo, porque serve para calar a boca dos imbecis que de maneira aviltante tentam de toda forma desqualificar aqueles que deram o sangue para que o Brasil se tornasse a democracia vigorosa que é hoje.
Além do documentário MARIGHELLA, outras três produções me entusiasmaram deveras, por conta do debate político que se pode estabelecer a partir das reflexões que suscitam. Refiro-me aos curtas ACERCADACANA (2010), do Felipe Peres Calheiros, que retrata a resistência destemida da trabalhadora rural Maria Francisca frente a arrogância autoritária de uma grande empresa produtora de etanol, localizada na zona da mata pernambucana; ENTRE VÃOS (2010), de Luisa Caetano, um registro etnográfico da comunidade remanescente quilombola Kalunga, que vive nas proximidades do município de Cavalcante, localizado na Chapada dos Viadeiros, Goiás; e o média-metragem BICICLETAS DE NHANDERU (2011), de Ariel Ortega e Patrícia Ferreira, que nos mostra o cotidiano dos indígenas Mbya-Guarani da aldeia Koenju, localizada em São Miguel das Missões, no Rio Grande do Sul. O que mais me entusiasmou nestes três trabalhos foi o fato de todos darem voz a minorias sociais oprimidas ou pelo poder econômico ou pelos preconceitos construídos e constituídos ao longo da formação histórica do Brasil e demais países latino-americanos. São trabalhos que também me fizeram pensar que refletir sobre a realidade que nos cerca, denunciar situações que diminuem grupos sociais vulneráveis ou ferem os direitos humanos, além de resgatar a memória histórica de um povo ou nação, é a função primordial de obras financiadas com recursos públicos. Ao menos essa é a minha convicção e, talvez, por isso esses foram os melhores trabalhos exibidos no festival. Mas não foram os únicos que gostei.
Com propostas semelhantes aos trabalhos acima referidos, os curtas BABÁS (2010), da Consuelo Lins, que levanta a discussão sobre até que ponto o Brasil superou, de fato, o seu passado escravocrata; e SALA DE MILAGRES (2011), de Cláudio Marques e Marília Hughes, um registro inusitado e surpreendente da romaria de Bom Jesus da Lapa, Bahia, embalado pela voz marcante do Edgard Navarro, também cumprem a função social e política de trabalhos apoiados pelo dinheiro público.
Claro que a função do cinema não é apenas divertir, denunciar, provocar o debate político ou resgatar a memória, mas, também, experimentar. E experimentações não faltaram no II CachoeiraDoc. Algumas muito interessantes, a exemplo de SÃO PAULO, SINFONIA E CACOFONIA (1994), do Jean-Claude Bernardet, colagem de cenas oriundas de inúmeros filmes que tem a capital paulista como centro ou pano de fundo da trama. Outras, no entanto, demasiado chatas, vazias de qualquer proposta e confusas o que nos leva a pensar que assim como a vida, a arte também não é feita só de acertos e alegrias.
Merece destaque, também, a homenagem que o CachoeiraDoc fez à obra da cineasta francesa Agnès Varda, uma artista inquieta e disposta a discutir as questões postas pelo seu tempo, uma mulher deslocada e que, sem dúvida, provoca inúmeros deslocamentos. Não conhecia o trabalho da Agnès Varda e foi uma satisfação conhecer, especialmente por conta da sua estética arrebatadora. Como se pode perceber, deslocar-se é preciso, pois são os deslocamentos que nos fazem ver mais longe. Por isso o CachoeiraDoc merece ser aplaudido de pé e que aconteçam muitos outros nos anos vindouros (por Silvio Benevides).
Documentários não costumam ser atraentes para produtores e exibidores ávidos por lucro. Tampouco costumam atrair um público acostumado com padrões estéticos estáticos. Se considerássemos tão somente estes dois aspectos o CachoeiraDoc já se justificaria como fundamental, pois possibilita que produções de valor encontrem um público com o qual possa dialogar e, por outro lado, um público disposto a ampliar seus horizontes estéticos. Mas os deslocamentos de rotas tradicionais propostos pela equipe organizadora do festival perpassaram, também, o tempo, o espaço e o político. Este último, em especial, foi o que mais me entusiasmou.
O festival teve início com a exibição na Praça D’Ajuda do documentário MARIGHELLA (2011), da Iza Grinspum Ferraz, a mesma diretora do magnífico O POVO BRASILEIRO (2000), baseado na obra do Darcy Ribeiro. Carlos Marighella, como se sabe (ou, pelo menos, se deveria saber), foi membro do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e considerado o inimigo número um do regime militar instituído em 1964 por conta, sobretudo, da sua atuação política na guerrilha urbana. Perseguido a vida toda por conta de suas convicções ideológicas, Marighella foi assassinado pela ditadura em novembro de 1969. Esse trabalho da Iza Grinspum é fundamental por dois motivos. Primeiro, porque a partir das suas lembranças infantis sobre o seu tio Marighella, ela resgata não apenas a memória da sua família, mas, também, a memória do Brasil, que neste caso específico, como em tantos outros, foi insistentemente negada. Segundo, porque serve para calar a boca dos imbecis que de maneira aviltante tentam de toda forma desqualificar aqueles que deram o sangue para que o Brasil se tornasse a democracia vigorosa que é hoje.
Além do documentário MARIGHELLA, outras três produções me entusiasmaram deveras, por conta do debate político que se pode estabelecer a partir das reflexões que suscitam. Refiro-me aos curtas ACERCADACANA (2010), do Felipe Peres Calheiros, que retrata a resistência destemida da trabalhadora rural Maria Francisca frente a arrogância autoritária de uma grande empresa produtora de etanol, localizada na zona da mata pernambucana; ENTRE VÃOS (2010), de Luisa Caetano, um registro etnográfico da comunidade remanescente quilombola Kalunga, que vive nas proximidades do município de Cavalcante, localizado na Chapada dos Viadeiros, Goiás; e o média-metragem BICICLETAS DE NHANDERU (2011), de Ariel Ortega e Patrícia Ferreira, que nos mostra o cotidiano dos indígenas Mbya-Guarani da aldeia Koenju, localizada em São Miguel das Missões, no Rio Grande do Sul. O que mais me entusiasmou nestes três trabalhos foi o fato de todos darem voz a minorias sociais oprimidas ou pelo poder econômico ou pelos preconceitos construídos e constituídos ao longo da formação histórica do Brasil e demais países latino-americanos. São trabalhos que também me fizeram pensar que refletir sobre a realidade que nos cerca, denunciar situações que diminuem grupos sociais vulneráveis ou ferem os direitos humanos, além de resgatar a memória histórica de um povo ou nação, é a função primordial de obras financiadas com recursos públicos. Ao menos essa é a minha convicção e, talvez, por isso esses foram os melhores trabalhos exibidos no festival. Mas não foram os únicos que gostei.
Com propostas semelhantes aos trabalhos acima referidos, os curtas BABÁS (2010), da Consuelo Lins, que levanta a discussão sobre até que ponto o Brasil superou, de fato, o seu passado escravocrata; e SALA DE MILAGRES (2011), de Cláudio Marques e Marília Hughes, um registro inusitado e surpreendente da romaria de Bom Jesus da Lapa, Bahia, embalado pela voz marcante do Edgard Navarro, também cumprem a função social e política de trabalhos apoiados pelo dinheiro público.
Claro que a função do cinema não é apenas divertir, denunciar, provocar o debate político ou resgatar a memória, mas, também, experimentar. E experimentações não faltaram no II CachoeiraDoc. Algumas muito interessantes, a exemplo de SÃO PAULO, SINFONIA E CACOFONIA (1994), do Jean-Claude Bernardet, colagem de cenas oriundas de inúmeros filmes que tem a capital paulista como centro ou pano de fundo da trama. Outras, no entanto, demasiado chatas, vazias de qualquer proposta e confusas o que nos leva a pensar que assim como a vida, a arte também não é feita só de acertos e alegrias.
Merece destaque, também, a homenagem que o CachoeiraDoc fez à obra da cineasta francesa Agnès Varda, uma artista inquieta e disposta a discutir as questões postas pelo seu tempo, uma mulher deslocada e que, sem dúvida, provoca inúmeros deslocamentos. Não conhecia o trabalho da Agnès Varda e foi uma satisfação conhecer, especialmente por conta da sua estética arrebatadora. Como se pode perceber, deslocar-se é preciso, pois são os deslocamentos que nos fazem ver mais longe. Por isso o CachoeiraDoc merece ser aplaudido de pé e que aconteçam muitos outros nos anos vindouros (por Silvio Benevides).
Imagem: Ulysse, por Agnès Varda
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