quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

A véspera de Reis

Há dias no ano em que o povo precisa fazer-se criança. Contrariar esta lei é torná-lo triste, desgraçado [...] A véspera de Reis na Bahia é um corolário da noite de Natal. São irmãs quanto à origem, diferindo na vida de relação. Para os homens que estudam, o interesse de diferenciação entre as festas do Natal no Brasil e suas congêneres no estrangeiro é enorme. Na Europa há um único fator, que é o elemento nacional; entre nós há três: o elemento branco ou português, o africano e o resultante de ambos – o mestiço.

Do modo que eles contribuíram e se consubstanciaram; do caldeamento estático que dá o colorido local a costumes que se foram modificando desde a colônia, ressalta o encantamento etnológico, a feição nacional. Da noite de Natal, que se passa nos templos e nos domicílios; dos bailes pastoris – a poesia popular erudita – e dos salões soberbos, descemos às praças e ruas, e observamos o povo que se diverte em ranchos nômades, presenciamos as cheganças ao ar livre, e o singular espetáculo do Bumba-meu-boi, auto inculto, que se representa mais vulgarmente nas humildes e francas habitações dos arrabaldes.

Na Bahia os presepes, os bailes de pastoras e os descantes de Reis prolongam-se até o carnaval. – É o tempo das mangas, das músicas e das mulatas! Dessa noite em diante, os cantadores de Reis percorrem a cidade cantando versos de memória e de longa data. Esses ranchos compõem-se de moças e rapazes de distinção; de negros e pardos que extremam, às vezes, e se confundem comumente.

Os trajes são simples e iguais calça, paletó e colete branco, chapéu de palha ornado de fitas estreitas e compridas, muitas flores em torno, etc.; precedendo-se na excursão habilíssimos tocadores de serenatas. Levando-lhe talvez vantagens pelas ondulações do andar, pelo arredondado das formas lascivas, pelos dentes de pérolas em bocas de ônix, ou orvalhos matinais nas rosas do amanhecer, as crioulas e mulatas acompanham os seus pares, tremendo-lhes os seios por baixo de um nevoeiro de rendas finíssimas, estalando a chinelinha preta e lustrosa, atirando com negligência o pano da Costa, matizado e caríssimo.

Mulheres e homens, meninos e meninas, batem, ao compasso da música, leves pandeiros, ou tocam, nas mãos entreabertas e suspensas, castanholas que atroam [...] Os ranchos, ao fogo dos archotes, ao som das flautas e violões, das cantorias e castanholas, dirigem-se: ao presepe da Lapinha, às casas conhecidas em que se festeja o Natal, ou tiram Reis à aventura do acaso [...] Nestas, as cantigas de Reis correm à porfia e sempre sonoras (por Melo Morais Filho, in: Festas e tradições populares do Brasil, 1901 – recolhido por Luís da Câmara Cascudo).

Imagem: Santos Reis, por Elza Rossato

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