Quem quiser saber quem foi Francisco Pereira Coutinho, leia os livros da Índia, e sabe-lo-á; e verão seu grande valor e heróicos feitos, dignos de diferente descanso do que teve na conquista do Brasil, onde lhe coube por sorte a capitania da Bahia de Todos os Santos, de que lhe foz mercê el-rei D. João III, de gloriosa memória, pela primeira vez, da terra que há da ponta do Padrão até o rio de São Francisco, ao longo do mar; e, para o sertão, de toda a terra que couber na demarcação deste Estado, e lhe fez mercê da terra da Bahia com seus recôncavos. E como este esforçado capitão tinha ânimo incansável, não receou de ir povoar a sua capitania em pessoa, e fez-se prestes com muitos moradores casados e outros solteiros, que embarcou em uma armada, que fez à sua custa, com a qual partiu do porto de Lisboa. E com bom vento fez a sua viagem até entrar na Bahia e desembarcou na ponta do Padrão dela para dentro, e fortificou-se, onde agora chamam a Vila Velha, no qual sítio fez uma povoação e fortaleza sobre o mar, onde esteve de paz com o gentio os primeiros anos, no qual tempo os moradores fizeram suas roças e lavouras. Desta povoação para dentro fizeram uns homens poderosos, que com ele foram, dois engenhos de açúcar, que depois foram queimados pelo gentio, que se alevantou, e destruiu todas as roças e fazendas, pelas quais mataram muitos homens, e nos engenhos, quando deram neles. Pôs este alevantamento a Francisco Pereira em grande aperto; porque lhe cercaram a vila e fortaleza, tomando-lhe a água e mais mantimentos, os quais neste tempo lhe vinham por mar da capitania dos Ilhéus, os quais iam buscar da vila as embarcações, com grande risco dos cercados, que estiveram nestes trabalhos, ora cercados, ora com tréguas, sete ou oito anos, nos quais passaram grandes fomes, doenças e mil infortúnios, a quem este gentio tupinambá matava gente cada dia, com o que se ia apouquentando muito; onde mataram um seu filho bastardo e alguns parentes e outros homens de nome, com o que a gente, que estava com Francisco Pereira, desesperadas de poder resistir tantos anos a tamanha e tão apertada guerra, se determinou com ele apertando-o que ordenasse de os pôr em salvo, antes que se acabasse de consumir em poder de inimigos tão cruéis, que ainda não acabavam de matar um homem, quando o espedaçavam e comiam. E vendo este capitão sua gente, que já era mui pouca, tão determinada, ordenou de a pôr em salvo e passou-se por mar com ela nuns caravelões que tinha, para a capitania dos Ilhéus; do que se espantou o gentio muito, e arrependido da ruim vizinhança que lhe tinha feito, movido também de seu interesse, vendo que como se foram os portugueses, lhe ia faltando os resgates que êles lhes davam a troco de mantimentos, ordenaram de mandar chamar Francisco Pereira, mandando-lhes prometer toda a paz e boa amizade, o qual recado foi dele festejado, e embarcou-se logo com alguma gente em um caravelão que tinha, e outro em que vinha Diogo Álvares, de alcunha “o Caramuru”, grande língua do gentio, e partiu-se para a Bahia, e querendo entrar pela barra adentro, lhe sobreveio muito vento e tormentoso, que o lançou sobre os baixos da ilha de Taparica, onde deu à costa; salvou-se a gente tôda deste naufrágio, mas não das mãos dos tupinambás, que viviam nesta ilha, os quais se ajuntaram, e à traição mataram a Francisco Pereira e à gente do seu caravelão, do que escapou Diogo Álvares com os seus com boa linguagem. Desta maneira acabou às mãos dos tupinambás o esforçado cavaleiro Francisco Pereira Coutinho, cujo esforço não puderam render os rumes e malabares da Índia, e foi rendido destes bárbaros, o qual não somente gastou a vida nesta pretensão, mas quanto em muitos anos ganhou na índia com tantas lançadas e espingardadas, e o que tinha em Portugal, com o que deixou sua mulher e filhos postos no hospital (por Gabriel Soares de Sousa, 1587).
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