terça-feira, 10 de agosto de 2010

Da série na sola do pé: CANUDOS

Lembro-me bem daquele 28 de abril. Cheguei a Canudos por volta das quatro da manhã, como de costume. Ao descer do ônibus, segui pelas ruas cobertas por paralelepípedos empoeirados para o Hotel Brasil. Somente o cantar dos galos quebrava todo o silêncio que encobria a cidade, como a lua que a iluminava. No hotel, o recepcionista acordou um tanto atordoado pelo sono. Pegou a chave e me conduziu ao quarto 03. A julgar pelo aparelho de TV com tela plana, pelo ar condicionado e pelo chuveiro elétrico, o quarto 03 do Hotel Brasil é um dos melhores, senão o melhor, no qual já fiquei desde o início das minhas atividades docentes em Canudos.

Liguei o ar para resfriar o quarto. Troquei de roupa e deitei para descansar da viagem de seis horas e meia. Acordei por volta das 11:30. Degustei um pequeno almoço, como diriam nossos patrícios portugueses, preparado por mim mesmo com ingredientes que eu mesmo levei na bagagem. Tudo muito básico como pede a bagagem típica de um andarilho. Enquanto degustava meu pequeno almoço, assisti TV. Ao terminar, troquei de roupa e me lancei à rua. Segui para o restaurante da Tia Léia, sempre tão simpática e com um maravilhoso tempero. Almocei na companhia de uma colega e em seguida retornei para o hotel. Antes, porém, passei no Mercado Ribeiro Jr. para comprar água, biscoitos e alguns doces, pois ninguém é de ferro. E foi no mercado que descobri que aquela quarta-feira seria diferente das anteriores.

Enquanto escolhia o que levar, ouvi duas moças conversando sobre o Cine Fest Brasil Canudos, um festival de cinema brasileiro patrocinado pelo BNDES, pela Vale do Rio Doce, pela prefeitura da cidade e idealizado/organizado pela produtora Inffinito, por meio do Circuito Inffinito de Festivais. Canudos é a única cidade brasileira inserida na programação oficial do Circuito, cujas apresentações das películas ocorrem na praça de eventos do município. Uma festa!

Voltei para o hotel, tomei um banho para aliviar o calor, troquei de roupa mais uma vez, escovei os dentes e segui para a faculdade onde leciono, localizada defronte ao Memorial Antônio Conselheiro. A aula com a turma da tarde correu como de costume. A turma da noite, entretanto, me pediu que a liberasse para que todos pudessem ir ao cinema. Cinema ao ar livre, iluminado pela lua cheia e pelas estrelas que, naquele dia, estavam especialmente deslumbrantes. Liberei todos porque, primeiro, como eles mesmos disseram, não é sempre que o cinema chega a Canudos e, ainda por cima, gratuito; segundo, porque eu também estava com muita vontade de assistir ao filme que seria exibido naquela noite, Besouro, de João Daniel Tikhomirof.

Gostei muito do filme, embora alguns diálogos tenham sido mal escritos, mal elaborados. Mas a produção é boa e as atuações satisfatórias, especialmente a do Ailton Carmo, o Besouro, belo, forte e senhor de uma emblemática nobreza. O melhor de tudo é ver um filme brasileiro que retrata a vida de um herói negro legendário com bastante dignidade. Melhor ainda é ir a um cinema onde o limite é o céu estrelado iluminado por uma imensa lua branca.

Foi a primeira vez que participei de uma sessão de cinema ao ar livre, em praça pública, cercado por quase toda a população da cidade. Velhos, crianças, adolescentes, adultos jovens, outros não tão jovens assim, bebês, comerciantes, professores, varredores de rua, políticos locais, enfim, estavam todos lá, confraternizando-se em torno do cinema como fazem os compadres em torno das fogueiras durante os festejos juninos. Para mim, essa foi uma experiência inesquecível que ficará para sempre retida nas minhas retinas e impregnada nos meus neurônios. As ruas repletas de gente, o colorido das roupas, as luzes da cidade, os pequenos bares, a sorveteria, a alegria estampada nos rostos das pessoas, o churrasquinho de carne de bode, regado por Guaraná Antártica (delícia!), os cachorros a pedir com os olhos um pedacinho do churrasco, enfim, todo o encanto de uma vida esfuziantemente pacata e besta, como a vida em Itabira.

Tudo em Canudos tem sido para mim surpreendentemente inesquecível. A história de bravura de uma gente que tombou sem jamais se render, seu povo hospitaleiro e gentil, sua beleza discreta feito um mandacaru em flor, seu luar selvagem, indomável e lindo (por Sílvio Benevides).
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Imagem: Memorial Antônio Conselheiro, Canudos/BA, por Sílvio Benevides.

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