Como se sabe, a história é constituída de processos contínuos, alguns longos outros nem tanto. Contudo, alguns acontecimentos conseguem se impor como verdadeiros marcos/símbolos de um processo histórico. Um desses marcos, que nesse ano completa duas décadas, é a queda do Muro de Berlim.
O Muro de Berlim, fruto da insensatez humana, é/foi o principal símbolo da chamada Guerra Fria, conflito não declarado entra as maiores potências pós-Segunda Guerra Mundial, União Soviética e Estados Unidos. Idealizado por Walter Ulbricht, o chefe de Estado da República Democrática Alemã (RDA), o muro foi erguido em 1961 e dividiu mais do que um país ou uma cidade. Ele dividiu histórias de vida, famílias, amigos, amores, sonhos e alegrias. Muitas foram as tentativas de fuga de alemães do lado oriental para o ocidental. A primeira vítima fatal foi o jovem Peter Fechter, em 17 de agosto de 1962. Alvejado por soldados da guarda de fronteiras da RDA, Fechter agonizou durante 50 minutos na chamada “terra de ninguém”, falecendo pouco depois de ser recolhido pela polícia alemã oriental.
As vítimas, porém, não se reduziram aos mortos. Uma berlinense que à época da construção do muro tinha 16 anos me revelou que da noite para o dia ela ficou sem amigos, colegas, escola e sem família. Ela morava com sua mãe e seu pai no lado ocidental da cidade. Seus amigos, colegas de escola e demais parentes, no lado oriental. O muro os impediu de se verem por 28 anos. Durante esse tempo, seu pai adoeceu gravemente e faleceu. Nenhum parente ou amigo recebeu autorização do regime comunista para cruzar as fronteiras, ou seja, o muro, a fim de acompanhar as cerimônias fúnebres. A Berlim desse período, segundo ela, era uma cidade lúgubre e deprimente.
Mas o tempo passou e os ventos da mudança começaram a soprar. A década de 1980 trouxe transformações significativas. Do ponto de vista político, representou a derrocada do socialismo como doutrina política e utopia humana, tanto para o chamado socialismo real da União Soviética e dos países comunistas da Europa Oriental, como para as esquerdas ocidentais, principalmente. A queda do Muro de Berlim em 1989 foi o ápice dessa virada política e de uma crise das grandes narrativas históricas, as quais privilegiavam tão somente um ator social como agente de transformação da ordem estabelecida, ou seja, a classe operária.
Esses acontecimentos possibilitaram a emergência de novas práticas sociais e um estilo de organização da ação coletiva distinto das práticas adotadas pelos movimentos sociais tradicionais. Na verdade, as organizações surgidas nesse contexto, ou herdeiras diretas dele, reivindicavam um distanciamento tanto em relação ao Estado autoritário, quanto em relação às práticas populistas e clientelistas (e pelegas) que, historicamente, caracterizam as relações políticas mais gerais, sobretudo em sociedades como a brasileira. Os novos movimentos buscavam, então, novos caminhos para a mobilização da sociedade civil e um outro padrão de relacionamento com as instituições públicas.
Mas caiu um muro e outros foram erguidos. A Berlim de hoje, embora efervescente e bela, ainda possui as marcas da separação. Refiro-me não àquelas que podem ser vistas no asfalto das ruas e avenidas para lembrar a todos que ali havia o muro que dividiu a cidade por mais de duas décadas. Essas marcas viraram história e atração turística. Outras marcas persistem. São os muros invisíveis que separam os outrora alemães ocidentais dos orientais e os alemães dos turcos. A Alemanha, assim como a Europa, foi invadida por uma onda de intolerância contra imigrantes. Tudo de ruim que lá acontece, culpam-se os imigrantes, sejam eles árabes, africanos ou latinos.
O tempo passa, mas os muros insistem e persistem. Berlim. Israel–Cisjordânia. Estados Unidos–México. Coréia do Norte–Coréia do Sul. Chipre grega–Chipre turca. Espanha–Marrocos. Arábia Saudita–Iêmen. Índia–Paquistão. Tailândia–Malásia. Botswana–Zimbabwe. Belfast. Bagdá. Hoek van Holland. Pádua. Alguns muros são famosos, outros nem tanto. Uns são grandes, outros pequenos. Construídos, na sua maioria, por tijolos, arame farpado, corrente elétrica, blocos de cimento e sensores infra-vermelhos, são, na verdade, ligados por um único cimento: o da desconfiança, do egoísmo, do medo, do ódio e da intolerância, que separa e segrega os homens pela cor da pele, pela religião, pela cultura, pela riqueza (ou falta dela), pelo grau de instrução, pela aparência, pelas potencialidades físico-motoras, pela orientação sexual, etc. Que muros nos dividem? Muros invisíveis tão duros quanto qualquer muro de pedra, argamassa e tijolo. Não adianta falar de democracia e direitos humanos se a cada dia muros invisíveis ou não são erguidos. Que as comemorações pela queda do Muro de Berlim nos façam lembrar sobre a importância em derrubarmos todo e qualquer muro seja em Berlim ou Salvador (por Sílvio Benevides).
O Muro de Berlim, fruto da insensatez humana, é/foi o principal símbolo da chamada Guerra Fria, conflito não declarado entra as maiores potências pós-Segunda Guerra Mundial, União Soviética e Estados Unidos. Idealizado por Walter Ulbricht, o chefe de Estado da República Democrática Alemã (RDA), o muro foi erguido em 1961 e dividiu mais do que um país ou uma cidade. Ele dividiu histórias de vida, famílias, amigos, amores, sonhos e alegrias. Muitas foram as tentativas de fuga de alemães do lado oriental para o ocidental. A primeira vítima fatal foi o jovem Peter Fechter, em 17 de agosto de 1962. Alvejado por soldados da guarda de fronteiras da RDA, Fechter agonizou durante 50 minutos na chamada “terra de ninguém”, falecendo pouco depois de ser recolhido pela polícia alemã oriental.
As vítimas, porém, não se reduziram aos mortos. Uma berlinense que à época da construção do muro tinha 16 anos me revelou que da noite para o dia ela ficou sem amigos, colegas, escola e sem família. Ela morava com sua mãe e seu pai no lado ocidental da cidade. Seus amigos, colegas de escola e demais parentes, no lado oriental. O muro os impediu de se verem por 28 anos. Durante esse tempo, seu pai adoeceu gravemente e faleceu. Nenhum parente ou amigo recebeu autorização do regime comunista para cruzar as fronteiras, ou seja, o muro, a fim de acompanhar as cerimônias fúnebres. A Berlim desse período, segundo ela, era uma cidade lúgubre e deprimente.
Mas o tempo passou e os ventos da mudança começaram a soprar. A década de 1980 trouxe transformações significativas. Do ponto de vista político, representou a derrocada do socialismo como doutrina política e utopia humana, tanto para o chamado socialismo real da União Soviética e dos países comunistas da Europa Oriental, como para as esquerdas ocidentais, principalmente. A queda do Muro de Berlim em 1989 foi o ápice dessa virada política e de uma crise das grandes narrativas históricas, as quais privilegiavam tão somente um ator social como agente de transformação da ordem estabelecida, ou seja, a classe operária.
Esses acontecimentos possibilitaram a emergência de novas práticas sociais e um estilo de organização da ação coletiva distinto das práticas adotadas pelos movimentos sociais tradicionais. Na verdade, as organizações surgidas nesse contexto, ou herdeiras diretas dele, reivindicavam um distanciamento tanto em relação ao Estado autoritário, quanto em relação às práticas populistas e clientelistas (e pelegas) que, historicamente, caracterizam as relações políticas mais gerais, sobretudo em sociedades como a brasileira. Os novos movimentos buscavam, então, novos caminhos para a mobilização da sociedade civil e um outro padrão de relacionamento com as instituições públicas.
Mas caiu um muro e outros foram erguidos. A Berlim de hoje, embora efervescente e bela, ainda possui as marcas da separação. Refiro-me não àquelas que podem ser vistas no asfalto das ruas e avenidas para lembrar a todos que ali havia o muro que dividiu a cidade por mais de duas décadas. Essas marcas viraram história e atração turística. Outras marcas persistem. São os muros invisíveis que separam os outrora alemães ocidentais dos orientais e os alemães dos turcos. A Alemanha, assim como a Europa, foi invadida por uma onda de intolerância contra imigrantes. Tudo de ruim que lá acontece, culpam-se os imigrantes, sejam eles árabes, africanos ou latinos.
O tempo passa, mas os muros insistem e persistem. Berlim. Israel–Cisjordânia. Estados Unidos–México. Coréia do Norte–Coréia do Sul. Chipre grega–Chipre turca. Espanha–Marrocos. Arábia Saudita–Iêmen. Índia–Paquistão. Tailândia–Malásia. Botswana–Zimbabwe. Belfast. Bagdá. Hoek van Holland. Pádua. Alguns muros são famosos, outros nem tanto. Uns são grandes, outros pequenos. Construídos, na sua maioria, por tijolos, arame farpado, corrente elétrica, blocos de cimento e sensores infra-vermelhos, são, na verdade, ligados por um único cimento: o da desconfiança, do egoísmo, do medo, do ódio e da intolerância, que separa e segrega os homens pela cor da pele, pela religião, pela cultura, pela riqueza (ou falta dela), pelo grau de instrução, pela aparência, pelas potencialidades físico-motoras, pela orientação sexual, etc. Que muros nos dividem? Muros invisíveis tão duros quanto qualquer muro de pedra, argamassa e tijolo. Não adianta falar de democracia e direitos humanos se a cada dia muros invisíveis ou não são erguidos. Que as comemorações pela queda do Muro de Berlim nos façam lembrar sobre a importância em derrubarmos todo e qualquer muro seja em Berlim ou Salvador (por Sílvio Benevides).
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Imagem: Gregor Ter Heide (Elkawe). Berliner Mauer Anfang am 1990.
2 comentários:
As cicatrizes dos tempos de guerra fria até hoje permanecem em Berlim: o índicie de desempregados é maior do lado oriental, que tem profissionais menos capacitados (vi isso no Globo Reporter). Nessa mesma reportagem do Globo Reporter (depois copio para você em DVD) se comenta também sobre a reconstrução de Berlim, uma arquitetura que quer ser diferente do que Berlim foi dos dois lados (ou seja, uma busca pela modernidade), pois apenas fazendo uma arquitetura que não era de ninguém se pode fazer uma arquitura que seja de todos, sem prevalecer nenhum lado da história (sem edifícios que passem informação de que Berlim certo lugar pertencia antes da queda do muro).
Muros invisíveis são mais difíceis de derrubar: de repente, algo explícito provoca a indignação, e com ela a luta. Que nos revoltemos contra a opressão sem nos esquecermos do que a história nos passou, afinal, terão um futuro digno as sociedades que aprenderem com o passado e não mais cometer os mesmos erros.
Faço minhas as suas palavras.
Um abraço!
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