segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Tradicionalmente pós-moderna

A religiosidade é uma das principais características da cultura baiano-soteropolitana. Religiosidade sincrética, que reinterpreta e combina em um único universo, diferentes tradições míticas, seja de origem européia, ameríndia ou africana. A mistura está na essência da devoção dos baianos, mesmo entre os mais conservadores. Tal qual a Dona Flor do Jorge Amado (vide postagem do dia 28 de outubro de 2008), o povo baiano também escolheu não escolher ao se relacionar com o divino. Tomemos como exemplo o culto a Nossa Senhora da Conceição, padroeira de Salvador, cuja celebração ocorre em 08 de dezembro.

Por ocasião da chegada às terras brasileiras do fidalgo português Tomé de Sousa, fundador de Salvador e primeiro Governador-Geral do Brasil, uma capela em louvor a Nossa Senhora Imaculada Conceição foi erguida à beira da praia. Um dos primeiros registros sobre a existência do pequeno templo (hoje uma suntuosa basílica no bairro do Comércio, na Cidade Baixa) é o de Gabriel Soares de Sousa: “no principal desembocadouro está uma fraca ermita de Nossa Senhora da Conceição, que foi a primeira casa de oração e obra em que Tomé de Sousa se ocupou” (Notícias do Brasil. Lisboa: Alfa, 1989).

O culto a Nossa Senhora da Conceição rapidamente se espalhou e com a chegada dos africanos ele foi re-significado. Nossa Senhora da Conceição, que, de acordo com a tradição católica, é mãe da humanidade, encontrou-se com Iemanjá, que na tradição yorubá é a mãe de todos os orixás. A partir do elemento da maternidade, comum a ambas as divindades, duas tradições religiosas tão diferentes entre si, combinaram-se em um único e harmonioso sentimento religioso por meio da devoção dos fiéis. As razões desta combinação estão ligadas ao sincretismo, que uniu em um mesmo universo alguns santos católicos “com certos deuses trazidos da África pelos escravos quando de sua imigração forçada ao Brasil” (VERGER, Pierre. Notícias da Bahia. Salvador: Corrupio, 1999).

Mas o sincretismo só pode ser entendido na relação entre os devotos e as divindades e não entre as divindades sincretizadas. Isso ocorre porque o sincretismo resulta dos “sentimentos de uma população que através da sua cultura aprendeu, desde cedo, a criar e recriar símbolos, preencher brechas e abrir outras, apontando caminhos e perspectivas” (CAETANO, Vilson. Orixás, santos e festas. Salvador: Editora UNEB, 2003). É exatamente nessa capacidade de criar e recriar símbolos e de apontar caminhos para o porvir que reside toda a grandeza da cultura baiano-soteropolitana, que já nasceu tradicionalmente pós-moderna. Mas eu desconfio que poucos se deram conta do quão precioso é esse nosso açúcar excelente. A maioria permanece de olhos esbugalhados apenas para as drogas inúteis (por Sílvio Benevides).
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Foto: Nossa Senhora da Conceição por Sílvio Benevides

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