Com essa questão o antropólogo brasileiro Roberto da Matta deu início à sua conferência realizada no dia 23/10/2008 no auditório Zélia Gattai do Centro Universitário Jorge Amado (UNIJORGE). O evento integrou a programação do 3º Encontro Interdisciplinar de Cultura e Educação (Interculte), promovido anualmente pela instituição.
Quando iniciou seus estudos sobre a cultura nacional, em 1966, Roberto da Matta optou por falar a partir de temas que a academia brasileira da época costumava ignorar, a exemplo do carnaval, da praia e do futebol. Segundo ele, debruçar-se sobre o cotidiano do povo brasileiro nos faz perceber que esse é um país de muitas qualidades, ao contrário do que sustentava nossa herança intelectual, totalmente influenciada por teorias européias.
A intelectualidade brasileira costumava ver tudo errado no Brasil e em seu povo mestiço. Essa visão pessimista, da qual também compartilhou o Jorge Amado em sua fase comunista, a exemplo do que ocorre em seu primeiro livro, cujo desfecho conclui que o país do carnaval não tem solução, costumava nortear as análises sociológicas sobre a nação brasileira. Para Roberto da Matta, a Dona Flor, concebida na fase posterior ao rompimento do Jorge Amado com o Partido Comunista Brasileiro, é uma representação do Brasil, isto é, um símbolo de continuidade e ruptura com o nosso passado-presente personalista, tradicional e também pessimista.
Para o antropólogo, a Dona Flor não é uma vítima do destino, como foram a Capitu do Machado de Assis e a Heloísa do José de Alencar, ou, ainda, como a Madame Bovary do Gustave Flaubert e a Luiza do Eça de Queiroz. Dona Flor, de acordo com ele, rompe com a tradição literária ocidental na qual todas as mulheres que tiveram mais de um homem se ‘estreparam’ (sic). Ela faz o seu destino e foi bem sucedida na empreitada.
Mas a Dona Flor representa mais que isso. Representa também um universo intermediário que absorve universos opostos sem nenhum conflito existencial ou algo parecido. Ela consegue viver de maneira intensa dois amores sem contrariar os padrões morais da sua época, afinal, ambos, Vadinho e Teodoro, eram seus esposos legítimos. Da mesma maneira agem os brasileiros em geral, conforme Roberto da Matta.
O brasileiro costuma ter dificuldade em separar o mundo público (das relações puramente racionais e impessoais) do mundo privado (das relações marcadas pela afetividade), criando um dualismo entre esses dois universos da vida social. Roberto da Matta esquematiza esse dualismo públicoXprivado, na dicotomia casa e rua. A primeira representando o universo particular, enquanto a segunda, o universo coletivo. Todavia, da Matta vai dizer que para se entender a realidade brasileira, não é possível operar apenas nesse dualismo, pois se corre o risco de deixar de fora uma importante estrutura que caracteriza a nossa identidade, uma vez que o universo das interações sociais brasileiras é relacional. Trata-se do universo intermediário que matiza esse dualismo rígido.
Roberto da Matta propõe, então, que examinemos a relação do triângulo ritual e o espaço intermediário que ele cria nas nossas relações cotidianas. Para ele, não é suficiente analisar o Brasil apenas do ponto de vista dualístico, isto é, em termos de casa/rua, norte/sul, negros/brancos, senhores/escravos, oprimidos/opressores, litoral/interior, império/república, arcaico/moderno. É preciso considerar um terceiro elemento que perpassa esse dualismo. Por exemplo: negro/branco/mulato – negro/branco/índio – índio/branco/caboclo – sim/não/mais ou menos – ordem (rituais cívicos) / desordem (festas populares) / cerimoniais neutros (rituais/festas religiosas).
Assim é o brasileiro de acordo com o esquema teórico do Roberto da Matta. E a Dona Flor o representa bem, afinal, ela além de misturar o universo da casa (Teodoro) e da rua (Vadinho), escolheu não escolher. Quando não se escolhe, disse ele, permite-se ver os fatos a partir de diferentes ângulos: do perto e do longe, da luz e do escuro, etc. Dona Flor é essa relação substantiva, concreta que aparece no mundo das idéias e nas relações cotidianas dos brasileiros. Por isso ele afirmou que o dilema da Dona Flor é o dilema do Brasil, um país repleto de preconceitos velados. Ao mesmo tempo que condenamos certos comportamentos, atitudes e pessoas, não admitimos jamais que somos preconceituosos, pois nossa cordialidade não nos permite fazê-lo. “Não temos preconceito nenhum, desde que nossos filhos e filhas não namorem as pessoas “erradas”, não tenham amizades “erradas”; fora isso, não temos preconceito nenhum”. Ironizou. Para o antropólogo, os brasileiros não aprendem a conviver com o outro de forma igualitária porque costumamos privilegiar nossos relacionamentos. Disse também que os elementos da impessoalidade devem ser separados da pessoalidade porque "numa sociedade onde todos agem como bem querem, ninguém chega a lugar algum". Concluiu. Quando perguntado sobre quem ou o que personificaria a malandragem do Vadinho hoje no Brasil, ele respondeu: “Tá tudo na política”! (por Sílvio Benevides)
*Quando iniciou seus estudos sobre a cultura nacional, em 1966, Roberto da Matta optou por falar a partir de temas que a academia brasileira da época costumava ignorar, a exemplo do carnaval, da praia e do futebol. Segundo ele, debruçar-se sobre o cotidiano do povo brasileiro nos faz perceber que esse é um país de muitas qualidades, ao contrário do que sustentava nossa herança intelectual, totalmente influenciada por teorias européias.
A intelectualidade brasileira costumava ver tudo errado no Brasil e em seu povo mestiço. Essa visão pessimista, da qual também compartilhou o Jorge Amado em sua fase comunista, a exemplo do que ocorre em seu primeiro livro, cujo desfecho conclui que o país do carnaval não tem solução, costumava nortear as análises sociológicas sobre a nação brasileira. Para Roberto da Matta, a Dona Flor, concebida na fase posterior ao rompimento do Jorge Amado com o Partido Comunista Brasileiro, é uma representação do Brasil, isto é, um símbolo de continuidade e ruptura com o nosso passado-presente personalista, tradicional e também pessimista.
Para o antropólogo, a Dona Flor não é uma vítima do destino, como foram a Capitu do Machado de Assis e a Heloísa do José de Alencar, ou, ainda, como a Madame Bovary do Gustave Flaubert e a Luiza do Eça de Queiroz. Dona Flor, de acordo com ele, rompe com a tradição literária ocidental na qual todas as mulheres que tiveram mais de um homem se ‘estreparam’ (sic). Ela faz o seu destino e foi bem sucedida na empreitada.
Mas a Dona Flor representa mais que isso. Representa também um universo intermediário que absorve universos opostos sem nenhum conflito existencial ou algo parecido. Ela consegue viver de maneira intensa dois amores sem contrariar os padrões morais da sua época, afinal, ambos, Vadinho e Teodoro, eram seus esposos legítimos. Da mesma maneira agem os brasileiros em geral, conforme Roberto da Matta.
O brasileiro costuma ter dificuldade em separar o mundo público (das relações puramente racionais e impessoais) do mundo privado (das relações marcadas pela afetividade), criando um dualismo entre esses dois universos da vida social. Roberto da Matta esquematiza esse dualismo públicoXprivado, na dicotomia casa e rua. A primeira representando o universo particular, enquanto a segunda, o universo coletivo. Todavia, da Matta vai dizer que para se entender a realidade brasileira, não é possível operar apenas nesse dualismo, pois se corre o risco de deixar de fora uma importante estrutura que caracteriza a nossa identidade, uma vez que o universo das interações sociais brasileiras é relacional. Trata-se do universo intermediário que matiza esse dualismo rígido.
Roberto da Matta propõe, então, que examinemos a relação do triângulo ritual e o espaço intermediário que ele cria nas nossas relações cotidianas. Para ele, não é suficiente analisar o Brasil apenas do ponto de vista dualístico, isto é, em termos de casa/rua, norte/sul, negros/brancos, senhores/escravos, oprimidos/opressores, litoral/interior, império/república, arcaico/moderno. É preciso considerar um terceiro elemento que perpassa esse dualismo. Por exemplo: negro/branco/mulato – negro/branco/índio – índio/branco/caboclo – sim/não/mais ou menos – ordem (rituais cívicos) / desordem (festas populares) / cerimoniais neutros (rituais/festas religiosas).
Assim é o brasileiro de acordo com o esquema teórico do Roberto da Matta. E a Dona Flor o representa bem, afinal, ela além de misturar o universo da casa (Teodoro) e da rua (Vadinho), escolheu não escolher. Quando não se escolhe, disse ele, permite-se ver os fatos a partir de diferentes ângulos: do perto e do longe, da luz e do escuro, etc. Dona Flor é essa relação substantiva, concreta que aparece no mundo das idéias e nas relações cotidianas dos brasileiros. Por isso ele afirmou que o dilema da Dona Flor é o dilema do Brasil, um país repleto de preconceitos velados. Ao mesmo tempo que condenamos certos comportamentos, atitudes e pessoas, não admitimos jamais que somos preconceituosos, pois nossa cordialidade não nos permite fazê-lo. “Não temos preconceito nenhum, desde que nossos filhos e filhas não namorem as pessoas “erradas”, não tenham amizades “erradas”; fora isso, não temos preconceito nenhum”. Ironizou. Para o antropólogo, os brasileiros não aprendem a conviver com o outro de forma igualitária porque costumamos privilegiar nossos relacionamentos. Disse também que os elementos da impessoalidade devem ser separados da pessoalidade porque "numa sociedade onde todos agem como bem querem, ninguém chega a lugar algum". Concluiu. Quando perguntado sobre quem ou o que personificaria a malandragem do Vadinho hoje no Brasil, ele respondeu: “Tá tudo na política”! (por Sílvio Benevides)
(Foto: Roberto da Matta por Sílvio Benevides)
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