segunda-feira, 24 de novembro de 2008

"Não façamos a tolice de destruir o planeta"

Segue abaixo a entrevista do oceanógrafo francês Jacques Cousteau (1910-1997) ao jornalista Nathan Gardels, editor da Summing Up the Century, publicada no Brasil pelo jornal O Estado de São Paulo na sua edição do dia 22 de setembro de 1996 e reproduzida no livro do Delson Ferreira, Manual de Sociologia: dos clássicos à sociedade da informação (São Paulo: Atlas, 2001. p. 192-197).

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Nathan Gardels – Aos 85 anos, o senhor viveu boa parte deste século. Durante a maior parte do tempo o senhor esteve preocupado em explorar o mar e compreender o meio ambiente. Sob esse ponto de vista, quais foram as maiores descobertas do século XX?
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Jacques Cousteau – A espécie humana provavelmente prejudicou a Terra no século XX mais do que em qualquer época anterior da história humana. Os danos foram gerados por duas fontes – a explosão demográfica combinada com o abuso da economia. Hoje, há 5,6 bilhões de pessoas na Terra. Em meados de 60 anos – em 2050 – haverá 10 bilhões. Esse é o principal problema dos nossos tempos. O aumento radical do consumo que deverá acompanhar esse crescimento provocará uma sobrecarga quase fatal nas fontes do planeta. Apesar de a taxa de natalidade estar começando a cair em alguns lugares muito populosos, como a Indonésia, isso apenas traz esperanças para a segunda metade do século XXI. Nada mudará antes de 2050, pois 60% da população não-européia do mundo atual tem menos de 16 anos. Quando essas pessoas tiverem filhos, dobrarão seu número. Durante 60 anos, vivemos uma luta entre o consumismo e o capitalismo. Quando o comunismo entrou em colapso, o motivo era óbvio: um sistema planejado e centralizado não tinha vez no mercado. No Ocidente, esse fato provocou satisfação. É um grande erro. Uma economia liberal é boa, mas há uma grande diferença entre uma economia liberal – ou empresa livre que atende às leis da oferta e da demanda – e um sistema de mercado. O sistema de mercado, como estamos vivendo atualmente, está trazendo mais danos ao planeta do que qualquer outra coisa, pois tudo tem um preço, mas nada tem valor. Como o longo prazo não tem valor no mercado de hoje o destino das gerações futuras não é considerado na equação econômica. Por causa dessa formidável confusão entre preço e valor, há uma irrealidade fundamental acerca da atual vida econômica; ela se tornou uma abstração. O sistema de mercado está mais preocupado com coisas que não existem do que com as coisas que existem. As “derivadas” financeiras – principalmente a especulação da especulação - são um bom exemplo da distância que existe entre o mercado e a realidade. O valor real é derrotado no jogo. A realidade não é mais considerada. Assim, não só estamos destruindo a diversidade de espécies nas florestas tropicais ou no oceano, que levou um milênio para se formar, mas também estamos vendendo o futuro em nome do lucro imediato. A calota de gelo polar, por exemplo, está derretendo como conseqüência do aquecimento global. Isso resulta da queima de combustíveis fósseis a um preço que não inclui o valor da calota polar em manter uma temperatura estável e o nível do mar, o que permite que a vida ao longo das costas deste planeta de água – onde está concentrada a maioria das pessoas – seja viável. A lista de devastação do planeta a curto prazo é bastante longa: lixo radioativo, proliferação nuclear e mercado clandestino de material fóssil, edifícios em áreas inundadas, alteração dos ritmos das estações como conseqüência de projetos como Assuan, as catástrofes químicas de Bhopal e Seveso. A erosão do solo e a poluição dos oceanos são formas muito mais perniciosas de degradação ambiental. O dinheiro é uma poderosa ferramenta de troca, mas é um perigo terrível para o planeta. O que o mercado produz hoje é sanidade no varejo e loucura no atacado.
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Nathan Gardels – A destruição ecológica surge não só como parte de um grande plano demoníaco, mas como resultado das práticas banais do dia-a-dia, desde dirigir um carro até usar sacolas plásticas no supermercado, cortar árvores e colocar o gado para pastar. Essa é a parte de sanidade do varejo. Esses hábitos cotidianos podem ser alterados por meio de uma revolucionária mudança de mentalidade que encare a autolimitação como um princípio religioso?
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Jacques Cousteau – Como um indivíduo pode se controlar quando ele é forçado de manhã à noite a comprar coisas que não precisa? Eu tenho uma experiência própria. Um dia, em Paris, no inverno, saí às 7 horas da manhã e cheguei às 7 horas da noite. Eu tinha comigo um contador. Toda vez que eu recebia qualquer tipo de propaganda de coisas que não precisava, clicava o contador. No final do dia o aparelho havia registrado 183 cliques. Com você pode se controlar quando a cada instante é abordado pela mensagem: “Compre e todas as mulheres cairão nos seus braços”? Eu perdôo o pobre rapaz que compra aquele produto de que não precisa. Como ele pode resistir? É um trabalho da sociedade – e não do indivíduo – controlar esse consumismo destrutivo. Não sou a favor de uma espécie de estadismo ecológico. Não. Mas quando você está dirigindo nas ruas e vê o farol vermelho, você pára. Você não acha que o farol vermelho é uma tentativa de refrear a sua liberdade. Pelo contrário, você sabe que ele está ali para protegê-lo. Por que não fazer o mesmo com a economia? Não fazemos. A culpa está nas instituições da sociedade e não nas virtudes do indivíduo.
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Nathan Gardels – A democracia, o mercado e a sociedade de consumo oferecem às pessoas o que elas quiserem, no momento que desejarem – ou seja, agora. Assim, o futuro não terá um corpo político em tal sistema e, portanto, não terá voz ativa. O fim do comunismo nos deixou descrentes acerca do futuro. Mas agora que a democracia e o mercado estão triunfantes precisamos encontrar um meio de lembrar o futuro. Como podemos fazer isso?
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Jacques Cousteau – Com o fim da Guerra Fria, precisamos de um outro tipo de revolução, uma revolução cultural, uma mudança fundamental no modo de pensar. É por isso que nossa esperança está na juventude – e na educação. A sobrevivência deste planeta depende da descoberta de um modo de incorporar a perspectiva a longo prazo – as conseqüências para as futuras gerações – às decisões atuais daqueles que virão ao poder no governo ou nos negócios. Hoje, ninguém parece se preocupar com o futuro. Por quê? As pessoas precisam de informações objetivas. Os governos estão sujeitos às preocupações eleitorais a curto prazo. As empresas estão ocupadas com balanços trimestrais para verificar suas condições financeiras. As Nações Unidas, que deveriam cuidar do futuro, podem apenas dar conselhos, não podem dar decisões efetivas. E, infelizmente, as universidades, refletindo o espírito do mercado, não estão produzindo cidadãos melhores, mas incitando-os a uma espécie de competição feroz visando apenas ao sucesso e ao dinheiro. Os jovens hoje em dia estão caindo na armadilha social da mentalidade a curto prazo. Divulgar essa fraqueza da nossa sociedade contemporânea parece ser, para mim, a maior prioridade. Para essa finalidade, a Cousteau Society juntou-se à Unesco para criar uma rede mundial de programas em universidades – da Bélgica ao Brasil, da Índia à China e aos Estados Unidos – que adotará o que chamamos de “aproximação ecotécnica”. O principal objetivo é promover a aproximação interdisciplinar do gerenciamento ambiental, de forma que suas preocupações sejam refletidas no treinamento para todos os cursos, de administração de empresas e economia a engenharia e ciências naturais. Essa longa marcha pelas instituições para mudar a mentalidade das gerações futuras é a idéia principal. É importante também atingir a geração mais jovem, que é bastante influenciada pela mídia. Como muitas outras entidades, a Cousteau Society publica livros e vídeos para crianças, para que o fato de pensar nas gerações futuras seja parte de sua visão cotidiana de mundo. Por exemplo, publicamos uma revista ilustrada chamada Cousteau Junior, em francês. A história em quadrinhos de Ted Turner tem o Capitão Planeta e outros personagens. O único raio de esperança que temos é a imaginação dos jovens e a consciência dos problemas que este planeta enfrentará como conseqüência da explosão demográfica nos próximos 50 anos.
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Nathan Gardels – Devido às tendências do nosso sistema de consumo democrático em se preocupar com fatos a curto prazo, interesses imediatos, o ex-presidente francês François Mitterrand criou o “conselho de anciãos” como uma forma de chamar a atenção para o longo prazo. Esse tipo de aproximação é útil em uma escala global?
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Jacques Cousteau – Mitterrand criou uma comissão, em 1993, para “defender os direitos das futuras gerações”, da qual eu era presidente. Abandonei o posto em 1995, quando o presidente Jacques Chirac anunciou a realização de testes nucleares. Minha visão era de que a defesa do futuro dos nossos descendentes só poderia acontecer em clima de tolerância, o que é incompatível com a ameaça nuclear. Manter um potencial nuclear no período pós-Guerra Fria, quando não há inimigo, não é nada mais que uma competição de arrogância. Tão útil quanto essa idéia de um corpo sensato – uma espécie de corte suprema que fica acima do mercado – seria um “conselho de jovens”, em vez de um conselho de anciãos. A idéia de um grupo de anciãos vem do fato de que, nas civilizações passadas, eles uniram mundos; o outro mundo também estava presente neste. Há também o argumento de que os velhos têm “experiência”. O problema é que a experiência ensina a temer mudanças. A experiência destrói a imaginação. A experiência torna as pessoas conservadoras. O que vamos enfrentar amanhã requer força da imaginação, não o testemunho do passado.
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Nathan Gardels – Então, o que o senhor está tentando fazer em seus esforços educacionais é criar uma contracultura para o mercado, na qual os valores duradouros superem os preços a curto prazo e na qual os direitos das futuras gerações estejam integrados nas decisões atuais?
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Jacques Cousteau – O mercado é uma contracultura! Estamos falando de criar uma cultura em que nada esteja sujeito ao abuso da economia.
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Nathan Gardels – A maioria das pessoas do G-7, o grupo dos sete países mais industrializados do mundo tem carros e refrigeradores. O que acontecerá ao mundo quando um bilhão de chineses se tornarem consumidores como nós – se simplesmente adotarem dietas à base de carne e peixes?
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Jacques Cousteau – Se a dieta dos chineses melhorar a ponto de todos eles comerem peixe regularmente, o oceano não conseguirá alimentá-los. Nos últimos anos, simplesmente esvaziamos os oceanos. Quando comecei a mergulhar, todo alimento marinho – moluscos e peixes de água doce e salgada – representava um décimo do consumo de proteínas do mundo. E havia, naquela época, apenas 1,7 bilhão de pessoas. Hoje, a indústria pesqueira tornou-se bastante sofisticada e eficiente. Os cardumes de peixes podem ser rastreados eletronicamente; sabemos as épocas de desova. Mas agora há mais de 5 bilhões de pessoas para alimentar. O resultado é que a porcentagem de toda a pesca do mundo corresponde a apenas 3% do consumo de proteínas da espécie humana. E esse número deverá passar para 2% e depois para 1%, até desaparecer completamente quando chegarmos à marca de 10 bilhões de pessoas. Teremos esgotado a capacidade de produção do oceano. No momento, virtualmente todos os peixes são capturados pelo Ocidente. O peixe que costumava alimentar os povos primitivos ao longo das costas foi tirado de seu mercado e vendido para os ricos consumidores urbanos do Ocidente. Isso é uma cultura ou uma contracultura? Essa é a verdade sobre a pesca. Então, não há meio de os chineses sobreviverem graças ao oceano. Nenhum meio. E, aproveitando o seu exemplo, não há meio de os gases atmosféricos do planeta permanecerem estáveis se metade dos chineses resolverem dirigir carros ou usar refrigeradores que funcionam com CFC’s. Falamos da China porque é um dos locais onde o crescimento populacional estará mais concentrado. A principal questão é: em um mundo de 10 bilhões de pessoas, terão todos as mesmas chances? Haverá grande escassez em alguns lugares, mas realmente acredito que a vida no planeta poderá ser suportável se acabarmos com as desigualdades. Não me refiro à “igualdade”. As pessoas não são iguais. Algumas podem saltar mais alto do que outras, mas não 20 vezes mais alto. Em uma sociedade, as pessoas poderão compreender uma diferença de 10 para 1, mas não de 2000 para 1. Elas não tolerarão mais uma situação, como vemos atualmente, em que apenas 60 seres humanos possuem mais riquezas do que a África inteira e boa parte da Ásia juntas. Mas e os grandes animais, as girafas e os elefantes? Serão os primeiros a desaparecer, pois não haverá espaço para eles, para correr, comer, viver. Haverá pessoas demais competindo no mesmo habitat. A única alternativa viável para os animais será uma espécie de resgate, ao estilo da Arca de Noé, colocando casais de cada espécie em um grande zoológico. Acho que isso oferece uma imagem do tipo de mundo que as futuras gerações da espécie humana devem encontrar.
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Nathan Gardels – Tirando o triunfo da cultura sobre a contracultura, sua visão do destino da espécie humana então parece com o que aconteceu com o povo da Ilha da Páscoa, tema de seus filmes?
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Jacques Cousteau – Sim. A Ilha da Páscoa é a metáfora do planeta Terra, a não ser que mudemos o rumo. A lição da Ilha da Páscoa foi a de que a escassez de recursos leva ao genocídio e, então, a um colapso social. Não há mistério nisso. Cerca de 50 pessoas chegaram à Ilha da Páscoa no século 7 e proliferaram para mais de 70 mil no século 17. durante esses dez século, eles derrubaram todas as árvores, as chuvas desgastaram o solo e elas não puderam mais se alimentar. A sociedade era dividida em sacerdotes, escultores daqueles grandes ídolos diante do mar e camponeses. Como resultado da escassez nessa pequena ilha, a ordem social foi derrubada e iniciou-se uma guerra total contra os privilégios dos sacerdotes e escultores. Refugiados em uma fortaleza em uma extremidade da ilha, eles foram finalmente vencidos pelos camponeses. Inúmeras pessoas foram mortas – e comidas, porque havia pouco alimento. Depois disso, o índice populacional caiu e surgiu uma segunda cultura, que não se desenvolveu. Eles entenderam o que acontecera como um aviso de Deus: a superpopulação destruiu o meio ambiente e a cultura, e resultou em um genocídio. Também poderíamos ver a experiência da Ilha da Páscoa como um aviso de Deus para não cometermos a mesma tolice em todo o planeta.
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(Foto: retrato de Jacques Cousteau retirado do site Dusty Moth Music)

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