De
acordo com o dicionário Houaiss da língua portuguesa, história é um substantivo
feminino que diz respeito ao conjunto de conhecimentos relativos ao passado da
humanidade, segundo o lugar, a época e o ponto de vista escolhido. Também significa,
entre outras acepções, a ciência que estuda eventos passados com referência a
um povo, país, período ou indivíduo específico, ou, ainda, a evolução da
humanidade ao longo de seu passado e presente, assim como a sequência de
acontecimentos e fatos a ela correlatos. Por extensão, a história também pode
ser entendida como o julgamento da posteridade; a memória dos homens. Mas como
se constrói essa memória?
A
construção da memória histórica sempre ocorre a partir do olhar de quem conta a
história, ou seja, o olhar do narrador. Esse narrador, por sua vez, ocupa um lugar
na estrutura social, isto é, ele pertence a uma determinada classe social, faz
parte deste ou daquele gênero, tem esta ou aquela idade ou orientação sexual,
traz na pela e na cara as marcas que caracterizam esta ou aquela raça ou etnia,
é parte integrante de uma nação, defende ideias, valores, crenças, além de
possuir um código moral mais ou menos rígido e assim por diante. E o que isso
significa? Significa que, sendo sempre construído a partir de um ponto de vista
específico, este conjunto de conhecimento é sempre relativo e deve ser a todo
instante submetido à análise criteriosa do contexto no qual e a partir do qual ele
foi erigido.
No
contexto atual, caracterizado pelo que o pensador espanhol Manuel Castells
denominou de informacionalismo, grandes empresas de comunicação se converteram
em grandes narradores históricos. Elas dominam grande parte da produção da
informação, assim como, a distribuição em larga escala daquilo que produzem,
muitas vezes de alcance global. Nesse processo, orientado por interesses ideológicos
comprometidos com a reprodução do capital e de tudo o mais que lhe dá
sustentação, alguns acontecimentos históricos se convertem em fatos da maior
importância para humanidade, enquanto outros, de igual ou de maior importância,
são diminuídos, negligenciados ou ainda totalmente ignorados. O mesmo ocorre
com as personalidades que os protagonizaram. Um exemplo disso são as mortes do
presidente dos Estados Unidos, John Kennedy e do presidente do Chile, Salvador
Allende.
Hoje,
22 de novembro, o assassinato do presidente Kennedy completa cinquenta anos. As
manchetes sensacionalistas dos noticiários impressos e televisivos trataram o
acontecimento como um dos mais marcantes fatos históricos do século XX ou,
ainda, “o atentado que chocou o mundo”. Mas a qual mundo esses noticiários se
referem? Concordo que o atentado que pôs fim à vida de John Kennedy foi um fato
chocante, mas muito mais por ter sido filmado “em tempo real” do que por sua
importância histórica propriamente dita ou qualquer outra coisa. Esse atentado,
porém, não foi mais chocante do que o atentado que matou o presidente chileno
Salvador Allende e que no último dia 11 de setembro completou quarenta anos. Disposto
a resistir ao golpe de Estado perpetrado por setores militares e civis da
sociedade chilena, que contaram o apoio financeiro, logístico e bélico-militar
do governo dos Estados Unidos, Allende se manteve no La Moneda, sede do
governo. A força aérea chilena bombardeou o palácio, matando o presidente cujas
ações promoveram grandes mudanças que beneficiaram amplos setores da sociedade,
especialmente os mais populares. Contudo, quase nada (para ser otimista) foi
dito e/ou divulgado na grande imprensa sobre esse acontecimento. Tampouco o
evento foi tratado como um acontecimento marcante para a história da humanidade
e do século XX. Por que não? Porque como nos informa o dicionário, a história diz
respeito ao conjunto de conhecimentos relativos ao passado da humanidade,
segundo o lugar, a época e o ponto de vista escolhido. E o ponto de vista
escolhido, desde quando a história passou a ser narrada, é o de quem sempre
esteve no poder e não quer, de modo algum, largar o osso. Na presente era talvez
as coisas estejam mudando com a emergência de múltiplas narrativas. Isso,
porém, é uma outra história (por Silvio
Benevides).
Imagem:
Ampulheta Borboleta por Jim Tsinganos
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