segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Avanço rumo ao retrocesso?

Li o artigo abaixo (A Idade Média pós-moderna), publicado no sítio Uol Notícias, e fiquei a pensar se o mundo contemporâneo resulta de uma série de avanços ou de retrocessos. Por um lado há indícios de que a humanidade avança rumo à construção de um mundo melhor para todos. Um exemplo? As guerras já não são mais tão necessárias como outrora foram. Outro exemplo? A escravidão hoje é uma prática criminosa e amoral. E como não considerar as inúmeras conquistas feministas como avanços salutares não apenas para as mulheres, mas para a humanidade como um todo? De fato, há muito chão a ser percorrido em direção a um mundo melhor para todos, mas passos importantes estão sendo dados. Por outro lado, porém, retrocessos caminham lado a lado dos avanços. Basta ler o texto abaixo de autoria do Parag Khanna, um indiano radicado nos EUA, que considera a Europa como a nau que conduzirá a humanidade rumo a um futuro brilhante. Brilhante para quem, ele não especifica, porque sua análise se baseia tão somente em projeções que poderão promover ainda mais o desenvolvimento do capitalismo.

Todos nós sabemos que o capitalismo não é inclusivo, muito pelo contrário. Quem tem muito não quer dividir o que tem com aqueles que pouco ou nada têm. Talvez seja por isso que movimentos xenófobos têm crescido consideravelmente em toda Europa. Seja na Alemanha, Holanda, França, Portugal ou Espanha, os culpados pelo aumento da miséria e da violência no continente europeu são sempre os imigrantes, venham eles da Ásia, da África, da América Latina ou mesmo do Leste europeu. O mercado capitalista e as políticas que o privilegiam estão sempre certas, já os imigrantes... Para estes as duras leis de imigração. Todos são culpados de terrorismo ou perturbação da ordem pública até que se prove o contrário. Nesse aspecto, estamos sim a viver num período de trevas, como normalmente os mais desinformados se referem à Idade Média, e não creio que será a Europa que trará o Renascimento. Também tenho dúvidas se a Europa pode servir de exemplo para a América Latina, África ou os povos orientais. Essa tal de Idade Média pós-moderna não passa de uma nova roupagem para o velho, tosco e soberbo etnocentrismo dos imbecis que se acham grande coisa. Leiam o texto do Parag Khanna e reflitam sobre o que acabo de escrever (por Sílvio Benevides).

A IDADE MÉDIA PÓS-MODERNA

No futuro, a globalização enfraquecerá ainda mais o Estado-nação. Um longo processo de transição em direção ao governo global será, como a Idade Média, uma época de grande insegurança. Mas a estrutura de governo da Europa irá prevalecer, mesmo nos Estados Unidos. Ela comprará seu caminho para a paz e seu modelo será copiado em todo o planeta.

A Europa inventou, nomeou e moldou todas as eras da história - e continuará a fazer isso no futuro. O mundo clássico é definido pelo florescimento da Grécia; a Idade Média seguiu-se à queda de Roma; o Renascimento europeu levou à formação dos Estados-nação que organizaram o mundo à sua imagem; e no século 21, a Europa está à frente do regionalismo pós-Estado-nação e governo pós-moderno correspondente que também está sendo adotado em todo o mundo.

Já podemos ver indicações de que o mundo está seguindo o caminho da Europa. Basta considerar a atual crise financeira global: cada vez mais observadores preveem que há uma necessidade de equilíbrio entre o capitalismo norte-americano e a intervenção exagerada e inflexível do Estado. A mistura certa é o capitalismo social-democrata ao estilo europeu.

Primeiro vamos dar um passo atrás para ver como a paisagem mundial já começou a lembrar um período crucial da história europeia, mais especificamente a Idade Média. Foi um período longo e incerto, e, portanto, uma metáfora ideal para os nossos tempos. Foi uma era de pragas e progresso, revoluções comerciais, expansão de impérios, cruzadas, cidades-Estado, mercadores e universidades. A nova Idade Média - sinônimo da nossa era de globalização pós-moderna - já começou.

Principalmente as cidades-Estado, a unidade política medieval mais importante, continuarão sua ressurreição. Hoje a lista de "cidades globais" - Nova York, Los Angeles, Miami, São Paulo, Londres, Dubai, Cingapura, Hong Kong, Xangai, Tóqui - também incluem Alexandria, Karachi, Istambul, entre outras. Naquela época, como hoje, as cidades-Estado eram centros comerciais quase que totalmente desconectadas de sua âncora nacional, lembrando que os atores corporativos serão extremamente influentes no futuro.

Os fundos de riqueza soberana de hoje, fundidos ao conhecimento das cidades-Estado, serão a Liga Hanseática de amanhã, formando redes de capital que irradiam as mais novas tecnologias para os que estão próximos. Hamburgo e Dubai acabaram de assinar um acordo para incentivar o comércio bilateral e a cooperação técnica. As cidades-Estado pagarão por sua proteção à medida que a segurança global se privatiza ainda mais nas mãos de corporações, os cavaleiros, mercenários e condottieri do século 21.

A Idade Média testemunhou inovações desde o canhão até a bússola, todos projetados para melhorar a exploração global. Da mesma forma, a aceleração da comunicação e do transporte nos aproxima cada vez mais da simultaneidade. À medida que o número de bilionários aumenta para além de Gates, Branson e Ambani, os megafilantropos se tornarão os Médicis pós-modernos, financiando explorações no espaço e nas profundezas do oceano, governando territórios e produção, como príncipes medievais.

A nova Idade Média será tanto multipolar com os impérios em expansão no território eurasiano, quanto apolar, sem um único líder global. Os esforços de Carlos Magno de reavivar o Sagrado Império Romano foram sucedidos mais de um milênio depois pelas armadas múltiplas de eurocratas de Bruxels colonizando paulatinamente o Báltico, os Bálcãs e eventualmente a Anatólia e o Cáucaso. Seu livro não é a Bíblia, mas o “acquis communautaire”, os 35 capítulos da Lex Europea que reconstroem os Estados membros da União Europeia do avesso.

Não só a Ucrânia e a Turquia, mas com um pouco de sorte até a Rússia sem população e irritadiça será membro da UE em 2030. Depois de se tornar uma das principais artérias de energia da Europa, a Turquia também assumirá o papel de principal corredor de comércio e investimentos para a Ásia Central e o Oriente próximo. As redes de estradas que ligam Anatólia ao mar Cáspio foram estendidas para o sul em direção à Síria, Irã e Iraque, fornecendo acesso direto à energia do Oriente Médio e rotas de exportação para produtos europeus de alta qualidade.

O Oriente Médio será fundamental para a esfera de influência expandida da Europa em 2030. Apesar de que o mundo árabe será mais populoso que a Europa, seu suprimento de energia estará diminuindo e suas relações de comércio estarão cada vez mais atadas ao investimento europeu para a produção em larga escala de bens manufaturados, de automóveis a células solares.

O Islã continuará sendo uma fé fraturada, amplamente praticada, mas também subjugada pelo ímpeto do desenvolvimento econômico. Da mesma forma que a Europa comprou o comunismo, comprará a reforma do Islã em direção a uma democracia social construtiva e próspera. Os Estados do norte da África estarão ainda mais ligados à Europa através dos gasodutos de gás natural, produção em pequena escala terceirizada e agricultura. A visão atual de Sarkozy, de uma União Mediterrânea, de fato terá florescido numa ressurreição do Império Romano - com Bruxelas como sua capital.

Mas essa Europa de 2030 não irá apenas integrar seus vizinhos externamente, mas os misturará internamente também. As robustas populações ucranianas e turcas serão cada vez mais uma parte do tecido econômico e social europeu, mantendo o estatus do império como uma grande força manufatureira. Os migrantes árabes continuarão sendo uma característica das sociedades da Europa ocidental, mas assim como os turcos do final do século 20, tornar-se-ão diásporas construtivas, avançando modelos sociais e microeconômicos progressistas através de um fluxo livre de capital e ideias com o Ocidente.

O caminho da Rússia

O caminho da Rússia será de fato similar ao da Turquia. A repressão e a relutância iniciais, combinadas com um forte desejo de liberdade na política estrangeira, seguidas por uma aceitação gradual dos méritos da influência e coordenação compartilhadas, e por um apetite insaciável por investimentos europeus de alta qualidade e subsídios generosos. A Rússia trocará seu controle inseguro sobre o suprimento e os preços do petróleo e do gás pela estabilidade e a segurança dos consumidores europeus confiáveis. Ela aceitará a compensação justa, e aprenderá como gastar de forma mais sábia com a assistência de Bruxelas, Frankfurt e Londres.

Outras regiões exibirão hierarquias semelhantes ao estilo europeu. A China terá completado a restauração de seu antigo estatus de “Reino do Meio”, presidindo sobre metade da população mundial através de seu massivo volume de exportações, infraestrutura energética e redes de diáspora chinesa. O terceiro centro de gravidade do mundo continuará sendo os Estados Unidos, demograficamente estável mas também mais misturado à América Latina. Um século depois da "Aliança pelo Progresso" de Kennedy, os Estados Unidos terão redescoberto seus colegas do sul, especialmente o Brasil, como parceiros industriais para aumentar a competitividade do hemisfério em relação à Ásia e a independência da energia do Oriente Médio.

O modelo de governança regional que a União Europeia representa em sua forma mais sofisticada será copiado não somente na América do Norte e no leste da Ásia, mas gradualmente na América do Sul e na África. O Brasil já fala da União Sul Americana de integração econômica e diplomática, sob sua liderança benigna. A União Africana, apesar de estar atrasada em relação a outros blocos regionais, terá desenvolvido uma força de pacificação extremamente necessária para estabilizar seus muitos conflitos, enquanto as barreiras de comércio terão caído, permitindo que muitos países africanos presos no continente possam levar seus produtos aos mercados regionais e mundiais.

A Europa como intermediária

O modelo europeu para os Estados Unidos se aplica então nos níveis do capitalismo social-democrático e mecanismos de governança para instituições e mercados regionais - mas também em termos de política externa. A Europa terá liberalizado e modernizado sua periferia usando a mão estável da reforma governamental e do investimento estrangeiro, estratégias que os EUA deveriam ver como a chave para estabilizar o México e a América Central. As relações dos EUA com a China serão possivelmente influenciadas por essa psicologia, transformadas para o foco na responsabilidade com características chinesas em vez de uma democracia ao estilo norte-americano.

A Europa esta bem posicionada para ser esse intermediário ideológico e cultural entre o Ociente e o Oriente. Artistas indianos e chineses já estão prosperando na cena europeia, enquanto asiáticos ricos (e árabes) se tornam os principais compradores de artistas impressionistas e modernistas europeus. Da mesma forma, no campo da educação, mas chineses já estão estudando em universidades europeias do que nas norte-americanas, aprendendo o novo ethos social-democrático do século 21, da mesma forma que eles aprenderam o marxismo e o comunismo na Europa dos séculos 19 e 20.

Mesmo enquanto os militares de Europa se consolidam numa formidável força convencional, esse poder continuará sendo mais útil para fiscalizar e fazer intervenções pontuais do que guerras ou ocupações de longo prazo. Mas uma força policial pan-europeia como essa será necessária para as incertezas da nova Idade Média. De fato, não havia nada muito certo na Idade Média, e um número semelhante de fatores de risco existe nas próximas décadas. O que dizer da Aids, malária, Sars e outras doenças que poderiam se tornar pragas como a Peste Negra do século 14? E que impacto as horas de migrantes terão, potencialmente perturbadas por guerras e desastres ambientais? Quem serão as próximas hordas mongóis, pequenas e concentradas que violentamente estabelecerão a paz, a lei e a ordem? Estabelecer uma nova governança mundial levará séculos, vide a liderança incerta e a paisagem complexa dos meados do século 21. O próximo Renascimento ainda está muito longe (por Parag Khanna).
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Imagem: bandeira da União Europeia

Um comentário:

Lucas Franco disse...

"A Idade Média testemunhou inovações desde o canhão até a bússola", será que esse indiano sabia que esses dois elementos nasceram justamente em seu continente? Pois acho que ele omitiu muitos fatos sobre a Índia, e quando afirma que "mais chineses já estão estudando em universidades europeias do que nas norte-americanas, aprendendo o novo ethos social-democrático do século 21, da mesma forma que eles aprenderam o marxismo e o comunismo na Europa dos séculos 19 e 20", esqueceu de informar que o número de ocidentais que estão aprendendo mandarim aumentou na mesma proporção ou mais do que o número de chineses que buscam aprender artifícios ocidentais. Fora o fato que a China de Mao tinha um novo desenho político, não é a toa que rompeu com a União Soviética pouco depois da consolidação do poder do líder comunista.

"Quem serão as próximas hordas mongóis, pequenas e concentradas que violentamente estabelecerão a paz, a lei e a ordem?", não sabemos a resposta, mas certamente, enquanto houver desigualdade, haverá guerra.