quinta-feira, 2 de julho de 2009

O quadro completo da independência

O artigo abaixo, de autoria do historiador Cid Teixeira, discorre sobre o Sete de Setembro que, segundo a historiografia oficial, é o marco da Independência do Brasil. Entretanto, o historiador baiano nos lembra que para se compreender o processo de desligamento do Brasil de Portugal é preciso analisar o quadro completo da independência “que somente se torna lógico se visto em seu conjunto”. E esse conjunto somente se completa com o Dois de Julho, interpretado por muitos como a independência da Bahia, mas, na verdade, a independência do Brasil na Bahia, pois foi aqui nas campinas baianas que a independência se consolidou, ou seja, se tornou um fato concreto que possibilitou surgimento, e posterior fortalecimento, do Brasil como um Estado autônomo. Na próxima postagem voltaremos ao tema Dois de Julho. Boa leitura! (por Sílvio Benevides)
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Sete de Setembro de 1822, margem do Rio Ipiranga, São Paulo, Brasil. As colônias americanas da grande aventura ultramarina da Europa dos séculos XV e XVI obtinham, a duras penas, sua libertação. Sempre, à custa de lideranças locais, sempre sofrendo todas as dores no nascimento enquanto estados nacionais, sempre lutando a valer sangue, a valer morte, a valer sofrimento. Nos Estados Unidos da América do Norte, como nos países de herança espanhola, lideranças locais, algumas inclusive, imaturas e desajeitadas, tomaram o governo dos seus povos a partir das ideologias que defenderam de armas nas mãos e esperanças nas almas.

No Brasil, tudo por quanto se sonhou, sofreu, e conspirou em termos de independência política, foi de conteúdo popular, a partir de segmentos da população menos bafejados da fortuna e do relevo social e, sempre, de conteúdo doutrinário republicano. Foi assim com Joaquim José da Silva Xavier, foi assim com os homens da Conspiração Baiana de 1798/1799 simbolizados nos quatro mortos na forca e esquartejados diante do povo.

E a independência nos chega outorgada por um príncipe que era a continuação dinástica da mesma monarquia absoluta e opressora que condenara à morte aqueles líderes, condenando, por implícito, não somente todos os outros que com eles comungavam, como tentando condenar à morte as próprias idéias que os inspiravam. A independência nos chega com a permanência no poder dos mesmos segmentos e das mesmas pessoas que o detinham antes. O próprio imperador que nos deu a ruptura colonial em belo gesto do seu “pinache” de jovem de vinte e dois anos, o próprio príncipe D.Pedro não renunciou aos seus direitos dinásticos na pátria colonizadora. A idéia da reunião do aquém e do além mar em um império transmarino do futuro não está, em nenhum momento, ausente das especulações nem dele próprio nem do seu pai e Rei de Portugal, D.João VI. Tínhamos, no Brasil, lideranças populares àquele tempo?

Certamente. Será esta a resposta sem vacilar. Afinal, somente vinte e dois anos separavam o Grito do Ipiranga do grito sufocado de Manoel Faustino dos Santos Lira, de Lucas Dantas do Amorim Torres, de João de Deus do Nascimento e de Luiz Gonzaga das Virgens [mártires da Revoltas dos Búzios ou Conjuração Baiana de 1798], quando o carrasco lhes passou a corda ao pescoço, ali no Largo da Piedade, nesta cidade do Salvador. É esta uma importante parcela de uma das mais intricadas e fascinantes equações do processo histórico brasileiro: independência que, por sua própria natureza, é a mais alta conquista de um povo, trazendo em si mesma o travo da frustração ideológica desse mesmo povo. O Brasil não sofreu amarguras imediatas para obter o seu desligamento político de Portugal. Foram arranjos políticos, cartas trocadas, arrufos e pazes familiares, poderosos resguardando privilégios. Assim foi, menos na Bahia. Por isso mesmo, ao lado das justas comemorações do dia da Pátria, aqui, especificamente aqui cabem algumas meditações sobre matéria que complete o nosso orgulho cívico. Orgulho cívico, repita-se. Para que assim ganhe ele a dimensão que merece. Seja feita uma simples conta: no dia Sete de Setembro de 1822 um príncipe português proclamava, em São Paulo, a Independência do Brasil. Das margens plácidas do Ipiranga, o príncipe voltou ao Rio de Janeiro e começou a implantar o Estado que fundara. Dois meses depois, neste mesmo Brasil, aqui na Bahia, ali em Pirajá, ainda se brigava, ainda se matava, ainda se morria por essa mesma Independência que tinha sido proclamada. E Madeira de Melo, resistindo à ruptura dos vínculos coloniais, não procedia por sua conta. Antes, em estrita obediência a ordens que vinham do mesmo Portugal de ralos ou nenhum protesto à independência proclamada.

Aqui o povo brigou, aqui o povo ganhou. Aqui não foram tranças diplomáticas nem açodamentos. Aqui foi luta, sangue, disputa, consciência libertária. E, de novembro, quando ocorreu a batalha decisiva, aquela mesma que “a Glória desgrenhada, acalentava o cadáver sangrento dos heróis”, até o Dois de Julho, escaramuças, encontros diversos, tentativas de reverter a situação pontuam o tempo até a rendição final.

Se, como de regra sucede na relação entre os homens, composições foram feitas pela regência do poder resultante da luta, ainda assim o povo nunca esteve ausente. Na verdade, bem estudadas as comemorações populares (nas quais até hoje o poder público participa de forma adjetiva) se constituem, a cada ano, em uma renovação, em uma espécie leiga de crisma daquele momento de consciência libertária.

Justo por estes argumentos que muito poderão ser desdobrados é que são de toda pertinência estas lembranças para a complementação de um quadro que somente se torna lógico se visto em seu conjunto
(por Cid Teixeira).
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Nota: Artigo originalmente publicado no semanário Tribuna da Bahia em 06/06/1997.
Imagem: Sílvio Benevides

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