terça-feira, 14 de julho de 2009

Cântico Negro – por José Régio

Dedico o poema abaixo, de autoria do escritor modernista português José Régio (pseudônimo de José Maria dos Reis Pereira), àqueles que, como já disse o Gregório de Matos, “nos quer governar cabana e vinha; Não sabem governar sua cozinha, E [pensam que] podem governar o mundo inteiro”. Para vocês, digo apenas que a vida não é um cárcere ou um experimento de laboratório! A vida é um maravilhoso devaneio, selvagem e indomável! Não cabe em fórmulas, conceitos, teorias ou receitas de bolo. A vida de cada um é exclusiva. Cada existência é única! As experiências e histórias de vida, por mais parecidas que sejam, jamais se repetem ou se repetirão! Portanto, cuidem de suas insossas e angustiantes vidas que da minha cuido eu! Estou farto de lirismos comedidos e, também, de vozes tolas bem intencionadas! (por Sílvio Benevides)

“Vem por aqui” - dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: “vem por aqui”!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade.
Com que rasguei o ventre e a minha mãe.

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Por que me repetis: “vem por aqui”?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis machados, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes e os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe.
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: “vem por aqui”!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se aninhou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
- Só sei que não vou por aí!
*
Imagem retirada de sites de busca (autoria não encontrada).

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