segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Não vou deixar a vida sem viver

Alguém, não me lembro quem, já disse que o homem é o único animal que morre. Isso ocorre, segundo esse alguém de quem não lembro o nome, porque o ser humano é o único animal que pensa e reflete sobre a morte. Sendo assim, é, também, o único animal que antecipa a sua morte, ou seja, é o único que morre de véspera. Li o texto abaixo, de autoria da Diana Corso, e resolvi reproduzi-lo aqui, sem a permissão dela (espero não ter problemas). Fiz isso por três motivos: primeiro, porque acho que o texto vale a pena ser lido nesses tempos em que a vida é constantemente negada em nome de uma “perfeição” que beira a morbidez paranóica. Segundo, porque o buldogue francês da Diana Corso me lembrou meu beagle Kadu, um cão cuja raça nunca amadurece, caracterizando-se pela eterna infância. Terceiro, porque após uma semana especial cujo fim foi totalmente dedicado a celebrar a vida e a alegria de viver e estar junto como e com quem realmente importa, otexto se tornou mais significativo para mim. São palavras que me recordam muito o trecho de uma velha canção gravada pela Gal Costa no seu primeiro trabalho, “Domingo”(1967). A canção se chama “Maria Joana”, do Sidney Miller, e um de seus versos diz assim: “eu vou procurar um jeito de não padecer, porque não vou deixar a vida sem viver”. É isso aí. A morte não nos deixa nenhuma escolha, mas a vida nos oferece inúmeras. Sendo assim, porque não usufruir daquelas que estiverem ao nosso alcance? Façamos, então, como o refrão de um samba de roda cachoeirano que nos diz sabiamente “hei de morrer cantando, porque chorando eu nasci”. Boa leitura (por Silvio Benevides).
MORRER DE VÉSPERA – Bilbo tem 13 anos. Para humanos é o fim da infância, na sua trajetória canina é o fim da vida. Mas isso não é novidade para ele, nem para nós. Já faz cinco anos que dois veterinários diferentes lhe deram pouco tempo de vida. Alegavam, o que deve ser verdade, pois apareceu nos exames da época, que ele tinha o coração quase do tamanho da caixa torácica e 30% da função renal. A não ser que um milagre tenha acontecido, isso só podeter piorado. Na ocasião lhe receitaram remédios, ração especial, uma vida develho. Ele detestou. É próprio da sua raça a infância eterna. Nenhum buldogue francês amadurece, eles só ficam mais lentos. Os tratamentos o tornaram magro e deprimido, ficava de mau humor cada vez que lhe dávamos uma pastilha. Por isso decidimos deixa-lo em paz: que durasse pouco, mas fosse feliz! Cortamos os remédios, a ração insossa. Livre da existência terminal, voltou a brincar e correr. Hoje, se fosse gente, teria uns 80 anos.
Se fosse humano talvez já estivesse morto, de tristeza pela condenação que uma doença grave significa. Às vezes morremos de desesperança, achamos que a vida, se não for infinita, não adianta que dure. A religião tampouco consola, pois a suposta eternidade da alma já não conforta tanto. Mesmo com saúde é só olhar em volta e acabamos fazendo os cálculos de quantas décadas nos restam. Aliás o envelhecimento é exorcizado principalmente porque informa do tempo que já gastamos. Velhice é folha corrida. A fantasia de ser eterno e intacto, como os belos vampiros contemporâneos, faz a vida parecer fonte de infinitas possibilidades. A consciênciada morte obriga a objetivar as escolhas: não teremos tempo de ser e ter tudo. Mas entre a ignorância do animal e o pensamento negativista dos homens há outras atitudes bem mais inspiradoras.
Convivi com amigos que em vez de morrer de véspera fizeram de uma má notícia fonte de sabedoria. Há duas décadas o diagnóstico da contaminação pelo HIV era um prenúncio de morte. Felizmente, não foi assim para todos, mesmo antes da descoberta do coquetel. Em alguns casos, a ameaça da morte os livrou das dúvidas pueris, da adolescência eterna. Agarraram-se à vida com vontade, viabilizaram escolhas profissionais, relacionamentos estáveis. Pressionados, efetivaram-se no emprego da existência. A medicação que lhes devolveu a imunidade, já os encontrou de bem com a vida. Woody Allen dizia que a palavra mais bela que já tinha ouvido era: “benigno”. Sua hipocondria cômica sempre nos lembra que a consciência da morte pode ajudar a repactuar coma vida. Mesmo que o fim seja certo, por que não seguir alegremente? Como meu velho cão (por Diana Corso).
Imagem: Kadu, por Suzy Benevides.

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