segunda-feira, 23 de maio de 2011

A questão das drogas no Brasil

As drogas, especialmente as ilícitas, ainda são um tema tabu. Devido a constante associação entre drogas e criminalidade, costuma-se evitar a discussão sobre a função que estas substâncias sempre desempenharam e desempenham na história da humanidade, como se essa atitude pudesse resolver os problemas decorrentes do uso e abuso de drogas. Quando a discussão ocorre, comumente ela vem destituída de argumentos técnico-científicos pouco consistentes ou, o que é pior, vem impregnada de falsos moralismos. Seja como for, trata-se de um tema que não pode ser ignorado, mas, sim, debatido e enfrentado por meio de políticas públicas realmente eficazes e não com terrorismo publicitário. O uso de drogas ilícitas ou não tem um impacto na sociedade. Em relação às ilícitas, por exemplo, é preciso discutir o fortalecimento do narcotráfico decorrente do seu uso. Em relação às lícitas, como álcool, é preciso avaliar o seu impacto na sociedade. Não se trata aqui de defender a proibição ou legalização desta ou daquela substância. Trata-se, apenas, de levantar uma importante discussão.

O que não pode ocorrer de maneira alguma é tratar a questão das drogas com dois pesos e duas medidas, de acordo com os interesses do mercado, como vem ocorrendo. Eu não entendo, por exemplo, porque o álcool, uma droga que pode causar dependência tanto quanto outras drogas e que costuma estar associada aos inúmeros casos de violência doméstica, contra mulheres, crianças e adolescentes, violência no trânsito urbano e nos vários casos de acidentes e mortes nas estradas brasileiras, além, é claro, da violência em grandes festas, a exemplo do carnaval, tem o seu comércio e propaganda liberados e outras com um potencial destrutivo infinitamente menor, ao menos no que tange às relações sociais, são consideradas verdadeiras obras do demônio e, por isso, proibidas. O tabaco, por exemplo, tem sofrido constantes ataques que denunciam o mal que ele faz à saúde. As campanhas publicitárias sofrem diversos tipos de controle, várias leis municipais e estaduais restringem o seu uso, especialmente em locais fechados. Entretanto, não me consta que existam casos de maridos que bateram nas suas esposas e/ou filhos após passar a noite toda fumando tabaco, nem de gente que iniciou uma violenta briga no carnaval após ter fumado um maço de cigarros. Por que tanta campanha contra o cigarro e pouca contra o álcool? Não entendo. Será que é porque os fabricantes de bebidas alcoólicas são grandes patrocinados de astros e estrelas das artes, principalmente da música, são grandes patrocinadores de festas, shows e eventos esportivos? Talvez (por Sílvio Benevides).

São muitos os questionamentos e as dúvidas. Por essa razão o Salvador na sola do pé decidiu reproduzir abaixo a entrevista do professor e pesquisador Antônio Nery, realizada pela jornalista Tatiana Mendonça para a revista Muito. Leia, reflita, opine.

CRACK: É CADEIA OU CAIXÃO – UMA PROPOSIÇÃO INDECENTE - O crack ganhou ruelas e outdoors. O do governo dizia que a substância é responsável por 80% dos homicídios no Estado. O de grupos de comunicação, que é cadeia ou caixão. O professor e pesquisador Antonio Nery Filho, 66, não acredita em nada disso. Dê ouvidos ao que ele diz, porque passou 30 anos, quase metade da vida, estudando drogas. Mas Nery não concordaria com essa afirmação. Diria que estuda pessoas. “As pessoas são mais importantes porque é o homem que pensa. As drogas não pensam”. Formado em medicina pela Ufba e doutor em ciências sociais pela Universidade de Lyon, na França, criou há 25 anos o Cetad – Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas, vinculado à Universidade Federal da Bahia. Ele também é consultor da Secretaria da Saúde de Salvador para Álcool e Outras Drogas.

COMO AS CAMPANHAS CONTRA O CRACK REPERCUTEM NOS USUÁRIOS?

As campanhas transversais, de curta duração, nunca produziram grandes efeitos positivos. Elas causam efeitos negativos, à medida que as mudanças positivas demoram muito. Do ponto de vista da natureza humana, não é fácil a adoção de um comportamento que venha quase contra um certo instinto natural, que é o da desordem e da destruição. A organização humana se faz pela via da violência, não da paz. Agora, na medida em que a violência se instala, os humanos começam a fazer leis para controlar aquilo que é “natural”. Lembro que, no final dos anos 1970, o LSD era uma substância muito temida. As pessoas achavam que ela ia ganhar o mundo e nós dizíamos que não, porque o ácido lisérgico não é capaz de produzir dependência química ou física e, por outro lado, produz muita doença. As pessoas não procuravam doença. Então, não era uma boa substância de mercado. Com o crack, é a mesma coisa.

POR QUE?

Porque é uma substância que produz doença e morte muito fácil. Crack é cloridrato de cocaína, é a mesma cocaína associada a outros produtos. Quando alguém usa cocaína via pulmonar, a quantidade de princípio ativo que ocupa o organismo e, particularmente, o sistema nervoso central é tão grande que produz gravíssimos danos. Os usuários se desorganizam muito rápido, psiquicamente, fisicamente e socialmente. Isso quer dizer que um dependente de crack não é bom para o comércio porque ele não é, do ponto de vista social, acessível; do ponto de vista psíquico, enlouquece rapidamente; e, do ponto de vista físico, corre o risco de morrer muito rapidamente. Logo, é um mau cliente. E os traficantes sabem disso. Então, apoiado nisto e em estudos epidemiológicos, tenho dito que o consumo de crack não tem futuro. Primeiro, pela pouca viabilidade comercial e, segundo, pelo fato de que os usuários têm se restringido quase que exclusivamente aos excluídos dentre os excluídos. Mas esse público que o senhor diz que morre rapidamente também se renova. Essa é uma questão. Se considerarmos que temos uma grande população periférica abandonada, é evidente que haverá uma circulação do crack durante um certo tempo entre essa população. O problema é que se fala do crack como se ele estivesse sendo acessado por todas as camadas sociais e de modo epidêmico. Penso que isso não é verdade. Li que a novela Passione tem um personagem que era um ciclista, bonito, rico, que começa a usar anfetamina para ter bons resultados e que da anfetamina passa para o crack. Acho que a intenção de chamar atenção para o produto produzirá mais danos que benefícios. As pessoas não passam da anfetamina para o crack, porque quem usa anfetamina necessita de uma substância para o desempenho. Para mostrar isso, a novela precisaria evidenciar o quanto este personagem era doente do ponto de vista social ou psíquico.

ENTÃO O SENHOR NÃO ACREDITA QUE O CRACK VÁ SE EXPANDIR PARA A CLASSE MÉDIA.

Vem-se falando muito disso, como se falava do ácido, ou que a maconha tomaria o Brasil e nossos filhos seriam todos usuários. E nós continuamos tendo no álcool e no tabaco danos sociais muito maiores. Uma recente pesquisa da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad) com universitários mostrou que 0,2% entre 14 mil interrogados tiveram algum contato com o crack. Por quê? Porque eles sabem que usar crack é saltar de paraquedas sem paraquedas. As pessoas usam droga pelo prazer ou para uma suprir uma necessidade subjetiva. E o crack é uma droga monstruosa que supre necessidades monstruosas. Quem disse que a classe média tem faltas monstruosas a serem suprimidas? Depois, não gosto desta dicotomia do ‘crack é cadeia ou caixão’. Parece que não há alternativa para o usuário. Ninguém se trata, ninguém muda? O que nenhum político tem falado é da violência. Hoje, o usuário, para comprar drogas, tem que entrar em contato com o tráfico, que é regido por uma imensa violência. E do outro lado estão os problemas de saúde relacionados ao consumo. Se eu retirasse a violência do tráfico e cuidasse apenas dos problemas de saúde, não seria mais interessante? Quando um adolescente vai comprar maconha, ele encontra no mesmo lugar cocaína e crack. Se o contato com o comerciante generalista fosse evitado, isso não reduziria a possibilidade de ele fazer experiências com drogas mais graves?

HÁ UMA IDEIA MUITO DIFUNDIDA DE QUE O DEPENDENTE DE CRACK E OUTRAS SUBSTÂNCIAS MAIS AGRESSIVAS É ALGUÉM “POSSUÍDO” PELA DROGA. QUANTO DISSO É REAL?

Em 30 anos de trabalho, tenho defendido que nós podemos ter contato com coisas boas e ruins, transitoriamente, inclusive. Uma pessoa pode, num determinado momento, usar cocaína e, depois, não precisar mais. Por outro lado, nós sabemos que os seres humanos têm muitos outros recursos, além das drogas, para encarar suas dificuldades. Portanto, quando se diz que alguém virou um possuído, se esquece de dizer que esse é o estágio final do uso de drogas para estas pessoas.

ESPECIALISTAS DIZEM QUE O IDEAL É QUE O TRATAMENTO E EVENTUAL INTERNAÇÃO SEJAM VOLUNTÁRIOS. ISSO VALE APENAS PARA OS CASOS MAIS EXTREMOS?

Quando alguém se torna dependente, um dos comprometimentos da doença é a perda da vontade. Então nessa condição as pessoas não buscam tratamento. Mas os adolescentes que não estão doentes buscam; as pessoas que começam a beber um pouco mais buscam informação, algum tipo de cuidado, sem o comprometimento da sua vontade. Então é saber que oferta nós estamos fazendo na saúde. As pessoas têm muito medo de serem tratadas como loucas quando elas de fato não são. É preciso que nós possamos transmitir que orientação, informação, psicoterapia não significam que essa pessoa será considerada uma louca incurável que precise de internação. A pessoa deve ser internada quando não há mais alternativa de um tratamento ambulatorial ou quando ela está completamente doente do ponto de vista físico, psíquico e social.

COMO O SENHOR VÊ OS TRATAMENTOS QUE SÃO VINCULADOS À RELIGIÃO, COMO SE A “CURA” VIESSE DE DEUS?

As comunidades terapêuticas se tornaram uma alternativa à insuficiência de meios da saúde pública. Mas elas não fazem distinção de quem é quem e aceitam todas as pessoas: psicóticas, não-psicóticas, adolescentes... A porta de entrada é muito larga. É preciso separar as categorias de consumidores, para que um adolescente que use maconha não seja colocado junto a pessoas que estão em outras dimensões mais graves de uso. O segundo aspecto é que elas usam como pressuposto do acolhimento a fé. E a fé fica comprometida quando há uma doença mental ou uma relação com a droga.

EM QUE O CETAD MAIS CONTRIBUIU PARA MUDAR A VISÃO SOBRE DROGAS NA BAHIA?

Inauguramos um novo modo de pensar a partir da pessoa, ajudando a “desdemonizar” o consumo. As pessoas são mais importantes que as drogas porque é o homem quem pensa, as drogas não pensam. Isso é fundamental. Também inauguramos, em 1995, a prática da redução de danos, que significa reconhecer a liberdade da pessoa no contato com as coisas do mundo, ajudando-a a se prejudicar menos. Isso foi uma revolução. Em 1995, nós criamos o consultório de rua, para atender pessoas que, por impossibilidade social, nunca viriam até aqui. Há dois meses, o consultório foi reativado e funciona em Salvador e Lauro de Freitas, atendendo crianças e jovens que vivem nas ruas. Vamos implantar outro em Camaçari.

POR QUE O SENHOR ACEITOU O CONVITE PARA SER CONSULTOR DA PREFEITURA?

Porque envelheci (risos), porque acho que 30 anos de trabalho me permitiram acumular uma experiência grande e, terceiro, porque estamos vivendo um momento especial. Veja que o Cetad foi o único serviço de assistência aos usuários durante 20 anos. Hoje, temos dois, o Centro de Atenção Psicossocial – Álcool e Drogas de Pernambués e o Gey Espinheira. Esse é o mais importante, porque não havia na Bahia nenhuma possibilidade de internar crianças e adolescentes. E funciona também como ambulatório, atende a família... A ideia é implantar mais quatro Caps AD até 2011 (por Tatiana Mendonça para a Revista Muito, n. 131, 03/10/2010).

Imagem: Célio Costa

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