segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Pólvora e Poesia

Ressoa em minhas entranhas, feito o eco na imensidão, uma sonora e silenciosa canção. “Que venha, que venha a hora da paixão”. Mas do que estou a falar? Falo do desejo, essa fome insana que jamais cessa. Apetite voraz, que nos impele à ação. Apetite sensível, que agrada aos sentidos, tato, audição, paladar, olfato, visão. Desejo que atormenta quando o furor não se derrama em deleite. Desejo que alimenta o corpo e o espírito quando bocas, línguas, mãos, pernas e braços se entrelaçam sem medo, sem razão. Ó agitação de minha alma, a ti meu tesouro foi entregue! Nada mais posso fazer. Só me resta fugir para o inferno, o paraíso do meu ser.

Em filosofia, o desejo é uma tensão em direção a um fim considerado pela pessoa que deseja como uma fonte de satisfação. É uma tendência algumas vezes consciente, outras vezes inconsciente ou reprimida. Quando consciente, o desejo é uma atitude mental que acompanha a representação do fim esperado, o qual é o conteúdo mental relativo a tal atitude. Enquanto elemento apetitivo, o desejo se distingue da necessidade fisiológica ou psicológica que o acompanha por ser o elemento afetivo do respectivo estado fisiológico ou psicológico. Tradicionalmente, o desejo pressupõe carência, indigência. Um ser que não caressesse de nada não desejaria nada, seria um ser perfeito, um deus. Por isso Platão e os filósofos cristãos tomam o desejo como uma característica de seres finitos e imperfeitos. Sejamos, pois imperfeitos! E demos vivas a imperfeição! Assim viveu Arthur Rimbaud. Assim se perdeu e se achou Paul Verlaine. Ambos poetas, ambos franceses, ambos escravos do desejo e da paixão. E é precisamente sobre o desejo e a paixão que uniram Rimbaud e Verlaine que discorre o espetáculo Pólvora e Poesia, dirigido pelo sempre excelente Fernando Guerreiro e interpretado pelos magníficos Talis Castro (Arthur Rimbaud) e Caio Rodrigo (Paul Verlaine), em cartaz até o dia 20 de fevereiro no Espaço Cultural da Barroquinha.

Provocante, ousado e intenso, como provocante, ousada e intensa foi a relação amorosa de Rimbaud e Verlaine, o espetáculo suscita diversas emoções e algumas reflexões. De acordo com uma atenta espectadora, “Pólvora e Poesia é um incrível e muito forte espetáculo. Eu não tinha conhecimento da biografia de Paul Verlaine e Arthur Rimbaud além das poucas citações feitas dos seus nomes como poetas na minha época de aluna de francês. Fiquei surpresa com o que descobri e aprendi muito sobre eles com essa peça. Nunca tinha visto um espetáculo tratar uma relação amorosa homossexual de maneira tão pura e intensa, como foi mostrado. Diria que esse foi um espetáculo de muita emoção e feito com a alma! Saí satisfeita com as ótimas interpretações dos atores e admirada com o fantástico trabalho de corpo por eles apresentados. Estão de parabéns! Ótima movimentação de palco! Impressionante como eles conseguem aproveitar aquela mesa e resignificá-la! Apesar de ser um texto denso, o público fica a todo tempo atendo. São cenas surpreendentes de deixar o queixo caído e fazer com que as pessoas pensem nos seus conceitos e preconceitos. Mesmo sabendo que o momento histórico ali apresentado era outro, sabemos que os preconceitos ainda são os mesmos".
Ser reflexivo, ao menos para mim, é a principal característica de grandes espetáculos teatrais, de grandes livros e filmes. A primeira das reflexões que me ocorreram enquanto assistia ao espetáculo diz respeito, como não poderia deixar de ser, ao próprio desejo, essa força que não pode ser detida ou contida, por mais que se tente. Cedo ou tarde ele aflora e quando isso acontece, não há razão ou amarra forjada pelos códigos da tão referenciada e reverenciada civilidade que possa detê-lo. O melhor a se fazer é aprender a lidar com essa força, antes que ela vire um tormento ou uma doença, como é o caso da homofobia, por exemplo. Outra reflexão que o espetáculo suscita e a que, particularmente, me chamou mais atenção foi a questão do medo.

Verlaine era um homem bem situado na sociedade francesa do século XIX. Gozava de grande prestígio entre seus pares e, como convinha aos homens bem situados, e a todos que pretendiam ser, ele, também, era casado e pai de um filho. Tudo transcorria conforme os ditames da chamada “boa civilização” até que apareceu na vida do nobre poeta francês um furacão que atendia pelo nome de Rimbaud. Belo, jovem, audacioso, avesso às convenções e profundo admirador das poesias de Verlaine, Rimbaud o convidou a viverem juntos uma longa temporada no inferno do desejo. O estabelecido Verlaine rapidamente se converteu num outsider. Sua vida transmutou-se num furioso mar de alegria, tristeza e medo. Alegria por viver um amor intenso e libertador, que poucos têm a sorte de viver. Tristeza e medo por repudiar as consequências não desejadas que todos aqueles que ousam transgredir as regras enfrentam, isto é, desprezo, escárnio, ódio, entre outras emoções devastadoras. Ao contrário de Rimbaud, Verlaine foi um homem dividido. Não devemos julgá-lo por isso, afinal, quantos de nós evitam viver certas emoções, calam ou sufocam certos desejos e sentimentos por puro medo de ser mal entendido, mal interpretado, rejeitado ou, simplesmente, ignorado?

Como escreveu Coccinelle: “Desde crianças ouvimos conselhos que nos ensinam a ter cuidado. Cuidado com o nosso corpo, nossa alimentação, com as nossas palavras, nossos pensamentos, nossos sentimentos e desejos. Passamos a vida a ter cuidado. Mas tanto cuidado acaba abrindo caminho para o medo. Medo de doenças, da velhice, de insetos nojentos, medo do escuro, de nossas palavras, pensamentos, sentimentos, desejos, do diferente, da vida, enfim. São tantos os medos aprendidos e apreendidos ao longo de nossa existência que, por vezes, esquecemos de viver”. Esse não foi o caso de Rimbaud e Verlaine, já que eles viveram intensamente os versos de amor que escreveram juntos. Mas é o caso de muitos leitores dessas linhas, de tantos outros que, porventura, venha a ler esse texto e, de certo, daqueles que o escreveram (por Coccinelle e Sílvio Benevides com a colaboração de Gina Carla Reis).

O Salvador na sola do pé aproveita a ocasião para homenagear mais uma vez a poesia e o amor por meio dos versos O mundo é grande, do Carlos Drummond de Andrade, e Canção da torre mais alta, do Arthur Rimbaud. Trata-se do mesmo Poema Falado publicado em junho do ano passado. Boa áudio-leitura!



PÓLVORA E POESIA – Texto: Alcides Nogueira. Direção: Fernando Guerreiro. Elenco: Caio Rodrigo e Talis Castro. Assistência de direção e preparação de elenco: Hilda Nascimento. Assessoria coreográfica: Lucas Tanajura. Direção musical e guitar man: Juracy do Amor. Iluminação: Irma Vidal. Cenografia: Rodrigo Frota. Figurino: Hamilton Lima. Cabelo e maquiagem: Deo Carvalho. Produção executiva: Xanda Fontes. Espaço Cultural da Barroquinha até 20 de fevereiro.
Imagem: Maira Lins

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