quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

O Mercado Cultural pede ...Passagem...

O mundo é pequeno pra caramba, tem alemão, italiano, italiana. O mundo filé milanesa, tem coreano, japonês, japonesa. O mundo é uma salada russa, tem nego da Pérsia, tem nego da Prússia. O mundo é uma esfiha de carne, tem nego do Zâmbia, tem nego do Zaire”. Essa música do André Azambuja pode muito bem definir o espírito do Mercado Cultural, um evento que a cada ano nos surpreende ao trazer para a cidade artistas magníficos dos mais diferentes lugares do planeta, que, com suas performances admiráveis, transformam Salvador em uma grande salada multicultural de sabor ímpar.

Não há dúvida de que o Mercado Cultural é o maior e melhor evento de difusão da cultura dos povos da Bahia, do Brasil e de tantos outros espalhados pelo imenso palneta Terra. É um espaço, de fato, onde as misturas ocorrem. Não uma mistura superficial e enganosa, uma misturaê, promovida por quem nada entende de cultura para tantos outros cuja bagagem nada tem, além de ressaca. No Mercado Cultural é diferente, pois suas misturas nos fazem viajar além das nossas fronteiras por meio de apresentações espetaculares nos palcos das cidades por onde passa, debates, conferências e workshops com artistas locais e de outros locais daqui e do resto do mundo. Por tudo isso as misturas promovidas pelo Mercado Cultural se perpetuam muito além das nossas lembranças.

Na sua IX edição o Mercado Cultural trouxe para Salvador uma diversidade inesquecível de sons e ritmos. A viagem teve início na noite do dia 03/12 com a apresentação do Boi de Dona Laurinha (Dário Meira-BA) e do Terno dos Ferreira (Boa Nova-BA). Os grupos, formados por pessoas de diferentes gerações, proporcionaram aos espectadores uma viagem pelas tradições natalinas do nosso povo, que há muito reverencia o nascimento de Jesus, a encarnação do Verbo, com muita música, dança e alegria. Festa para encher os olhos e relembrar os tempos da infância. A noite terminou com a apresentação do grupo paulista A Barca, uma “expedição musical rumo ao maravilhoso”, como eles mesmos se definem, cujo trabalho vai além da criação artística. O grupo faz pesquisas sobre a cultura popular brasileira, sua fonte de inspiração, e realiza trabalhos de criação, documentação, arte-educação, produção cultural e reflexão sobre o ofício do artista e sua responsabilidade sócio-cultural. Magnífico desde a origem ao produto final. Destaque para as vozes sublimes das duas tripulantes Juçara Marçal e Sandra Ximenez. Lindas!

A viagem cultural continuou na noite seguinte, 04/12. Desta vez foram percorridas as paragens históricas da França dos tempos da Joana D’Arc, espetáculo teatral magnificamente escrito por Cleise Mendes, brilhantemente dirigido por Elisa Mendes e extraordinariamente interpretado por Jussilene Santana e companhia (Carlos Betão, Caio Rodrigo, Jefferson Oliveira, Hamilton Lima, Antônio Fábio e Widoto Áquila), em cartaz na Sala do Coro do Teatro Castro Alves (TCA). Simplesmente imperdível! Depois, foi a vez de trilhar as sendas culturais da Galícia e Guiné-Bissau, com a dupla Aló Irmão, formada pelos músicos Narf e Manecas Costa, cujo som toca nossos corações, pois nos fazem relembrar nossa ancestralidade ibero-africana. Por essa razão, o Aló Irmão nos soa tão familiar. Em seguida, chegou o momento de andar por veredas sul coreanas através do som forte e poderosíssimo do Sonagi Project, criado por Jang Jae Hyo, vocalista e percussionista do grupo. Herdeiro da cultura xamã da Coréia, a importância do Sonagi Project, segundo Nicolas Ribalet, produtor cultural, consiste no fato de o grupo ter resistido aos apelos da releitura, tão comum nesses tempos pós-modernos. “O fato é que eles não estão misturando a sua música com jazz ou rock, e que não estão tentando adaptar a tradição aos sons de hoje. Trata-se de cinco jovens que decidiram usar apenas os seus tambores para nos levarem ao seu mundo. Um mundo bem moderno, por sinal. Para nos contar algo novo, algo pessoal e único. Os seus instrumentos são meios modernos, feitos para a expressão, à livre expressão. Técnicas podem variar na criação dos sons necessários para falar e contar histórias. Para cantar ou para chorar. Para percurtir ou para pintar. Através de suas baquetas de bambu, eles traçam a caligrafia musical, direta e instintiva. São poucos caracteres sobre o papel, mas o seu significado é tão amplo quanto o mundo. Esse significado que é tão nosso quanto deles”.

No terceiro dia (05/12), a viagem cultural teve início com o espetáculo de dança da artista Maureen Fleming, cuja performance é tão suave como uma brisa primaveril e vigorosa como as apresentações de uma ginasta olímpica. Acompanhada pelas belas notas do pianista Bruce Bubaker, a dança de Maureen Fleming assemelhava-se, em alguns momentos, aos traços vibrantes do Pieter Pauwel Rubens, especialmente aos que podem ser vistos na sua tela O Juízo Final, na qual corpos caem do firmamento feito plumas que se desprendem dos pássaros em vôo de arribação. Incrível a capacidade do ser humano em criar coisas belas! No momento seguinte da viagem, nos deparamos com as paisagens mexicanas oriundas dos acordes dissonantes de Juan Pablo Villa e das imagens efêmeras do Arturo Lopez. Autoral e experimental, o espetáculo nos faz lembrar dos muros que ainda separam e dilaceram a humanidade. Nada melhor que a arte e a cultura para pulverizá-los como fazia o Arturo Lopez com suas criações fugazes de água, tinta e areia. Nessa viagem cultural também havia espaço para a reflexão sobre os destinos de todos nós em um mundo cada vez mais segregacionista. A noite terminou com o estupendo e vibrante show do Idan Raichel Project. Idealizado por Idan Raichel, o grupo musical surgido em Israel em 2002 mistura sons, ritmos, tradições e almas da África, da América Latina, do Leste Europeu e do Oriente Médio. O resultado é uma miscelânea de talento ímpar, sensualidade e vigor musical contagiante que nos faz pensar que um mundo melhor é, sim, possível, mas somente quando as fronteiras deixarem de existir e os muros (invisíveis ou não) forem derrubados. Na arte isso já ocorre e o Idan Raichel Project é o melhor exemplo. É preciso levar essas misturas adiante, isto é, ao mundo cotidiano e, principalmente, ao mundo da política. Sim, os políticos e embaixadores desse planeta precisam aprender com a arte e os artistas, sobretudo com aqueles que se propõem a derrubar os muros invisíveis que nos separam, como faz de maneira brilhante o israelense Idan Raichel com o seu projeto musical. Projeto esse que chama atenção não apenas pela música, mas, também, pela beleza dos seus integrantes, especialmente os/as vocalistas que, certamente, agrada a árabes, judeus, gregos e troianos. E também aos soteropolitanos das mais variadas tendências! Do México para Israel em um breve espaço de respirar. Só mesmo no Mercado Cultural assim se pode viajar.

A jornada cultural promovida pelo Mercado finalizou no dia 06/12 com um encontro deveras inusitado. A noite começou com a apresentação do Samba de Dona Dete, oriundo da zona rural de Dário Meira (BA). De acordo com a organização do Mercado Cultural, “a influência do candomblé é marcante nos toques dos atabaques, nos cantos e nas danças – todos decorrentes de cerimônias religiosas que elaboram [e liquefazem] os problemas e celebram as alegrias do dia-a-dia da comunidade”. Guardiães de uma tradição secular, a apresentação do Samba de Dona Dete no palco do TCA foi como apreciar um belo pássaro preso em uma gaiola. Belo, mas incompleto, pois aprisionado. Em seguida aterrissa no centro daquela grande arena teatral um cometa arrasador vindo dos paramos de Pernambuco. Era o grupo Bongar, composto por seis primos, herdeiros culturais do Terreiro de Xambá, do Quilombo do Portão do Gelo, região de Olinda. O som forte e pulsante do Bongar mistura a musicalidade do Coco da Xambá, uma vertente do Coco, típico do Nordeste do Brasil, com ciranda, maracatu, candomblé, entre outros ritmos da cultura brasileira. Para Guitinho, o vocalista do grupo, o melhor de participar do Mercado Cultural foi descobrir que na Bahia se faz música de verdade e que a cultura daqui não é só o que a TV mostra. Seria bom que muito mais gente tivesse ouvido essa observação. Depois do samba e do coco entrou em cena a diva coreana (ao menos era o que parecia ser) Chae Soo-Jung e sua Korean Traditional Music Performance Company. Segundo o material de divulgação do Mercado Cultural, a companhia musical coreana “participa do esforço em buscar o que é novo na música, ela almeja fazê-lo mantendo-se fiel à essência da música tradicional coreana. A Companhia está comprometida em preservar e levar as qualidades tradicionais da música coreana aos públicos contemporâneos”. Um espetáculo encantador, sobretudo, para nós que temos pouco ou nenhum contato/acesso à cultura oriental, em especial da Coréia. Agora responda: onde mais se pode ouvir samba, coco e música tradicional coreana? Coisa assim só se vê no Mercado Cultural.

E essa viagem multicultural chegou ao fim. O mais estranho de tudo foi constatar que um evento de tamanha magnitude, responsável por conectar Salvador ao que há de melhor e mais criativo na produção artístico-cultural do Brasil e do resto do mundo costuma ser ignorado pela imprensa local. Um evento como esse deveria ser exaustivamente divulgado nos veículos de comunicação porque não é todo dia que os soteropolitanos têm a oportunidade de interagir com uma produção artística de alto nível e comprometida mais com a preservação e difusão de valores culturais e estéticos do que com o lucro, único propósito da produção de massa, para a qual não falta espaço de divulgação. Esse comportamento dos nossos veículos de comunicação é estranho e lastimável. Mas esse fato é um fato menor. O importante é que nada diminui a beleza e magnitude do Mercado Cultural cujo encerramento, este ano, em Salvador, deixou muita saudade. O bom é saber que o Mercado continuará até 12/12 com sua caravana que passará por Ibirataia (08/12), Ipiaú (09/12), Dário Meira (10/12) e Boa Nova (11 e 12/12) com o Festival de Reisados, feira de artes e apresentações de artistas que estiveram no palco do TCA, como o Sonagi Project e o grupo Bongar. Quanto a Salvador, em 2010 teremos mais. Vida longa para o Mercado Cultural! (por Sílvio Benevides)
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Imagens: Patrícia Carmo (cartaz Joana D'Arc); Rose Vemelho (cartaz Mercado Cultural); Sílvio Benevides.

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