Em que consiste a solidão? Seria ela lava que tudo cobre, conforme escreveu o Paulinho da Viola, ou seria a situação dos sábios cuja autonomia os leva a isolar-se em busca da perfeição? Ou seria, ainda, um fato patológico característico de diversas formas de loucura? Difícil responder. Talvez a solidão seja mesmo um tipo de loucura comum àqueles que têm as vidas norteadas pelas vozes da paixão. Assim percebo a trajetória de vida da heroína e santa francesa Joana d’Arc, magnificamente encenada na Sala do Coro do Teatro Castro Alves (TCA).
Vivida no palco por Jussilene Santana (melhor a cada trabalho que realiza), que já emprestou sua voz a outra heroína com características semelhantes (Maria Quitéria), Joana d’Arc foi uma figura emblemática da chamada Guerra dos Cem Anos, uma série de conflitos armados ocorridos ao longo dos séculos XIV e XV entre a França e a Inglaterra e os seus respectivos aliados. Filha de camponeses, iletrada e com um insuficiente conhecimento militar, Joana, orientada pelas vozes divinas de São Miguel Arcanjo, Santa Catarina e Santa Margarida, esteve à frente de importantes vitórias empreendidas pelas tropas francesas no ano de 1429, sendo a principal delas a Batalha de Orleáns, cujo desfecho favorável aos franceses modificou os rumos do conflito.
Em nome da sua paixão por Deus e por seus ideais de liberdade, Joana d’Arc transgrediu valores sobre os quais se apoiava a sociedade patriarcal da sua época. Como mulher, jamais poderia combater e muito menos comandar milhares de homens nos campos de batalha, ainda por cima vestida de homem e alegando seguir as orientações de vozes divinas, que, ao invés de se comunicarem com autoridades abalizadas, preferiram conversar com uma campesina humilde e iletrada. Meteu-se em assuntos restritos ao universo dos machos adultos e pagou um preço alto por não saber ou, talvez, recusar-se a ocupar o seu lugar. Ao ser capturada e, posteriormente, vendida aos ingleses, Joana conheceu a solidão que normalmente experimentam aqueles que ousam transgredir em nome daquilo em que crêem. Confinada nas masmorras de Ruão, até mesmo as divinas vozes que a acompanharam desde os seus 13 anos silenciaram. Tem início, então, um dos momentos mais tocantes do espetáculo. Joana brada sua dor, alegando suportar qualquer coisa, exceto aquele silêncio atordoante, aquela solidão sufocante, solidão esta estranhamente familiar, pois se trata da solidão humana perante seu destino inevitável.
“Os sinos negros repicam nas praias do Atlântico Norte: de certo na vida temos apenas a morte”. Assim falava o silêncio para Joana. Morrer é como cartão de crédito. Trata-se de uma experiência pessoal e intransferível, portanto, individual e totalmente solitária. Joana sabia que ia morrer. Ninguém a reclamou, ninguém tentou resgatá-la. Ela fora abandonada por todos, até mesmo pelas vozes. Sua morte social já havia iniciado. A morte física era apenas uma questão de tempo, pouco tempo. “Muitas pessoas morrem gradualmente [...] Isso é o mais difícil – o isolamento tácito dos velhos e [também] dos moribundos da comunidade dos vivos, o gradual esfriamento de suas relações com pessoas a que eram afeiçoados, a separação em relação aos seres humanos em geral, tudo que lhes dava sentido e segurança” (Norbert Elias, In: A solidão dos moribundos). Por isso o brado da Joana encarcerada ecoou feito um trovão pela Sala do Coro, despertando a Joana em mim, que também bradou e chorou.
Reconhecer em mim uma Joana que eu sequer imaginei existir é um mérito do texto escrito pela Cleise Furtado Mendes. Joana d’Arc possui uma característica comum aos textos produzidos pelos grandes poetas. Ele dialoga diretamente com nossa alma como se parte dela fizesse desde sempre. Só mesmo grandes escritores são capazes disso. Como se não bastasse um texto poderoso, a direção e a iluminação não menos poderosas da Elisa Mendes, os belos cenário e figurinos do Zuarte Júnior e, claro, as interpretações brilhantes e marcantes de Jussilene Santana (Joana d’Arc), Antônio Fábio (La Hire), Caio Rodrigo (Duque d’Alençon e Guarda), Carlos Betão (Promotor), Hamilton Lima, estupendo como o Conselheiro do Rei e o Bispo, Jefferson Oliveira (Jovem Soldado, Guarda e São Miguel Arcanjo, cujo vôo com a Joana d'Arc nos braços é outro momeno emocionante do espetáculo) e Widoto Áquila (Warwick), fazem da montagem Joana d’Arc uma experiência que, sem dúvida, vale a pena ser vivenciada. Imperdível! (por Sílvio Benevides)
Vivida no palco por Jussilene Santana (melhor a cada trabalho que realiza), que já emprestou sua voz a outra heroína com características semelhantes (Maria Quitéria), Joana d’Arc foi uma figura emblemática da chamada Guerra dos Cem Anos, uma série de conflitos armados ocorridos ao longo dos séculos XIV e XV entre a França e a Inglaterra e os seus respectivos aliados. Filha de camponeses, iletrada e com um insuficiente conhecimento militar, Joana, orientada pelas vozes divinas de São Miguel Arcanjo, Santa Catarina e Santa Margarida, esteve à frente de importantes vitórias empreendidas pelas tropas francesas no ano de 1429, sendo a principal delas a Batalha de Orleáns, cujo desfecho favorável aos franceses modificou os rumos do conflito.
Em nome da sua paixão por Deus e por seus ideais de liberdade, Joana d’Arc transgrediu valores sobre os quais se apoiava a sociedade patriarcal da sua época. Como mulher, jamais poderia combater e muito menos comandar milhares de homens nos campos de batalha, ainda por cima vestida de homem e alegando seguir as orientações de vozes divinas, que, ao invés de se comunicarem com autoridades abalizadas, preferiram conversar com uma campesina humilde e iletrada. Meteu-se em assuntos restritos ao universo dos machos adultos e pagou um preço alto por não saber ou, talvez, recusar-se a ocupar o seu lugar. Ao ser capturada e, posteriormente, vendida aos ingleses, Joana conheceu a solidão que normalmente experimentam aqueles que ousam transgredir em nome daquilo em que crêem. Confinada nas masmorras de Ruão, até mesmo as divinas vozes que a acompanharam desde os seus 13 anos silenciaram. Tem início, então, um dos momentos mais tocantes do espetáculo. Joana brada sua dor, alegando suportar qualquer coisa, exceto aquele silêncio atordoante, aquela solidão sufocante, solidão esta estranhamente familiar, pois se trata da solidão humana perante seu destino inevitável.
“Os sinos negros repicam nas praias do Atlântico Norte: de certo na vida temos apenas a morte”. Assim falava o silêncio para Joana. Morrer é como cartão de crédito. Trata-se de uma experiência pessoal e intransferível, portanto, individual e totalmente solitária. Joana sabia que ia morrer. Ninguém a reclamou, ninguém tentou resgatá-la. Ela fora abandonada por todos, até mesmo pelas vozes. Sua morte social já havia iniciado. A morte física era apenas uma questão de tempo, pouco tempo. “Muitas pessoas morrem gradualmente [...] Isso é o mais difícil – o isolamento tácito dos velhos e [também] dos moribundos da comunidade dos vivos, o gradual esfriamento de suas relações com pessoas a que eram afeiçoados, a separação em relação aos seres humanos em geral, tudo que lhes dava sentido e segurança” (Norbert Elias, In: A solidão dos moribundos). Por isso o brado da Joana encarcerada ecoou feito um trovão pela Sala do Coro, despertando a Joana em mim, que também bradou e chorou.
Reconhecer em mim uma Joana que eu sequer imaginei existir é um mérito do texto escrito pela Cleise Furtado Mendes. Joana d’Arc possui uma característica comum aos textos produzidos pelos grandes poetas. Ele dialoga diretamente com nossa alma como se parte dela fizesse desde sempre. Só mesmo grandes escritores são capazes disso. Como se não bastasse um texto poderoso, a direção e a iluminação não menos poderosas da Elisa Mendes, os belos cenário e figurinos do Zuarte Júnior e, claro, as interpretações brilhantes e marcantes de Jussilene Santana (Joana d’Arc), Antônio Fábio (La Hire), Caio Rodrigo (Duque d’Alençon e Guarda), Carlos Betão (Promotor), Hamilton Lima, estupendo como o Conselheiro do Rei e o Bispo, Jefferson Oliveira (Jovem Soldado, Guarda e São Miguel Arcanjo, cujo vôo com a Joana d'Arc nos braços é outro momeno emocionante do espetáculo) e Widoto Áquila (Warwick), fazem da montagem Joana d’Arc uma experiência que, sem dúvida, vale a pena ser vivenciada. Imperdível! (por Sílvio Benevides)
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Imagem: Cartaz do espetáculo Joana d'Arc, projeto gráfico Carlos Vilmar.
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