quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Há coisas tão absurdas que não devemos esquecer jamais

A disputa pelo poder econômico e político sempre gerou, ao longo da história humana, episódios de intolerância. O Salvador na sola do pé faz uma breve retrospectiva dos últimos mil anos da história da humanidade, esperando que tais episódios jamais voltem a se repetir. Como é impossível resumir mil anos de história, foram selecionados apenas alguns fatos marcantes. Entretanto, sabemos que muitos outros poderiam figurar nesse breve relato, pois a humanidade é muito ampla e sua história impossível de ser abarcada na sua totalidade.

1095 - 1270
Com o pretexto de defender a fé cristã, sucessivas CRUZADAS partiram da Europa para o Oriente a fim de combater os inimigos da cristandade, isto é, mulçumanos e também judeus. As cruzadas foram expedições militares organizadas com o objetivo de combater os chamados "infiéis" que dominavam os lugares santos do cristianismo. Por essa razão, a alta cúpula da Igreja Católica as legitimou, outorgando aos seus participantes privilégios espirituais e materiais, a exemplo da moratória concedida aos “soldados de Cristo”. Na verdade, as cruzadas foram uma grande guerra entre cristãos e mulçumanos, guerra esta puramente geopolítica. Os judeus também foram envolvidos e perseguidos pois os cristãos os consideravam tão "infiéis" quanto os mulçumanos. O resultado de tanta intolerância foi o extermínio de inúmeros cristãos, mulçumanos e judeus os quais morreram em combate, de fome, de doenças ou foram vitimados por perseguições brutais.

1229
Surge na Europa a Inquisição que perseguiu e matou milhares de "hereges", ou seja, todos aqueles que não professavam a fé cristã ou ousavam desafiar os dogmas defendidos pela Igreja Católica Apostólica Romana. As origens da Inquisição remontam a fins do século XII, na França. Ordenando os bispos lombardos que entregassem à justiça os hereges que se recusassem a abraçar a fé cristã, o Concílio de Verona (1183) lançou as bases da Inquisição. Em 1233, Gregório IX organizou um tribunal especial com o intuito de deter o que ele chamava de avanços da heresia e o confiou aos Dominicanos. A ação deste tribunal pouco a pouco se estendeu ao resto da cristandade. Na Itália e na Espanha, onde tomou o nome de Santo Ofício, criou fortes raízes e se tornou uma instituição muito poderosa que deixou lúgubres recordações. A característica principal do modo de proceder da Inquisição era o segredo absoluto da instrução judiciária. Foi D. João III quem introduziu a Inquisição em Portugal no ano de 1536. O marquês de Pombal reduziu consideravelmente o poder do Santo Ofício, que foi definitivamente extinto em 1821. Durante os dois séculos do seu exercício em Portugal, a Inquisição queimou cerca de 1.500 pessoas; torturou e condenou a diversas penas mais de 25.000. Ignora-se o número daquelas que morreram em cárceres. Entre 1591 o Conselho Geral do Santo Ofício enviou a visitação ao Brasil, confiada a Heitor Furtado de Mendonça. Até 1595 o Santo Ofício visitou as capitanias da Bahia, Pernambuco, Paraíba e Itamaracá.

1347 - 1350
A peste bubônica alcança a Europa através de um navio genovês que retornara do Oriente. A epidemia rapidamente se espalhou pelo continente europeu matando cerca de 25 milhões de pessoas e causando, conseqüentemente, a escassez de mão-de-obra. Frente a essa realidade, os senhores feudais passaram a reprimir ainda mais seus servos com vistas a aumentar a rentabilidade. O resultado de tanta opressão foi uma revolta camponesa liderada por Estevão Marcel. Todavia, devido à falta de organização a revolta foi duramente reprimida e seu líder assassinado.

1453
Os turcos Otomanos conquistam Constantinopla, capital do Império Romano do Oriente, também conhecido como Império Bizantino. Esse episódio, segundo os historiadores, marca o fim da Idade Média e o início da Idade Moderna.

1492
Navegando a serviço da Coroa Espanhola, o genovês Cristovão Colombo chega à América. A partir de então, inicia-se um processo de extermínio da chamada população ameríndia que persiste até os dias de hoje. Na Europa, os judeus não convertidos ao catolicismo são expulsos do reino de Castela e Aragão. Milhares migram para Portugal.

1497
D. Manuel I (1495-1521) determina a conversão forçada de todos os judeus de Portugal.

1500
Pedro Álvares Cabral desembarca em Porto Seguro, sul da Bahia, na escala para a Índia e toma posse da nova terra em nome de D. Manuel I, rei de Portugal, dando início à história do Brasil, marcada pela opressão e perseguição de índios, negros e das forças populares.

1543
Copérnico refuta o geocentrismo que a Igreja Católica adotava como doutrina oficial e prova que o sol e não a terra é o centro do sistema solar. Como resultado, é condenado por "heresia".

1600
Giordano Bruno que havia afirmado a possibilidade de existência de outros mundos como a terra, é queimado vivo na fogueira por determinação da Inquisição.

1632
Por haver reafirmado o heliocentrismo de Copérnico, Galileu Galilei foi condenado pela Inquisição. Para não ter o mesmo fim de Giordano Bruno, Galileu foi obrigado a se retratar publicamente.

1694
Macaco, capital do Quilombo dos Palmares, é destruída por tropas chefiadas pelo bandeirante Domingos Jorge Velho. O Quilombo dos Palmares, localizado na Serra da Barriga, atual Estado de Alagoas, era o local de resistência da confederação de escravos rebelados. Era uma sociedade multirracial e miscigenada e formada por negros, índios e brancos pobres que à base de muito trabalho e luta viveram em liberdade por cerca de um século. Mas como ocorre com todo movimento popular de grande vulto no Brasil, o Quilombo dos Palmares foi massacrado. No ano seguinte, 1695, Zumbi, o último líder de Palmares, foi assassinado numa emboscada.

1795
Tem início a escalada despótica do general Napoleão Bonaparte que só terminaria após a derrota em Waterloo - Bélgica no ano de 1815.

1835
Um grupo de escravos de origem africana resolve organizar um levante com o intuito de reverter a ordem escravocrata vigente, em prol da liberdade e da igualdade entre as raças. Os organizadores do levante eram chamados de "malês" porque assim eram conhecidos, na Bahia de antanho, os africanos mulçumanos. A rebelião é considerada por alguns historiadores como o levante mais sério de escravos urbanos já ocorrido no continente americano. Por ameaçar a hegemonia dos senhores de engenho da Bahia, a rebelião foi duramente reprimida. Cerca de 70 revoltosos morreram em confronto direto com as forças repressivas. Estima-se que mais de 500 foram punidos com pena de morte, prisão, açoites em praça pública e deportação.

1865 - 1870
A Guerra do Paraguai, ou Guerra da Tríplice Aliança, foi o conflito bélico de maior duração no continente latino-americano. Reuniu três países, Brasil, Argentina e Uruguai, contra o Paraguai. O conflito foi extremamente sangrento e ao final, o Paraguai estava totalmente arruinado. Sobreviveram cerca de 50% da sua população que teve de amargar uma enorme dívida de guerra. Depois desse episódio o Paraguai nunca mais conseguiu voltar a ser o que era antes do conflito: uma nação independente dos mercados internacionais tanto econômica quanto politicamente.

1884 - 1885
Na Conferência de Berlim, presidida por Bismarck, as potências européias fazem entre si a partilha da África, quebrando definitivamente a auto-suficiência dos povos nativos e coroando de miséria e fome o destino que corrói as vidas de milhares de homens, mulheres e crianças do continente africano até os dias atuais.

1893
Estoura no interior da Bahia a Guerra de Canudos. A população sertaneja que vivia na região de Canudos além de não ter acesso à terra, trabalhava para os grandes latifundiários por salários extremamente baixos, como ocorre ainda hoje. Os grandes chefes políticos e os líderes religiosos locais não pareciam muito interessados no destino dessa parcela da população. Nesse cenário aparece a figura de Antônio Conselheiro (Antônio Vicente Mendes Maciel), um místico peregrino que tinha fama de fazer milagres. Antônio Conselheiro conseguiu reunir em torno de si milhares de seguidores que se fixaram numa velha fazenda às margens do rio Vaza-Barris e ali fundaram o Arraial de Canudos, que chegou a ter cerca de 25.000 habitantes. Em Canudos todos deveriam trabalhar e a terra era propriedade coletiva. Tudo que era produzido deveria ser dividido entre a comunidade. Em 1893 o povo do Arraial de Canudos se revoltou contra um imposto criado pelo poder público local. Isso serviu de pretexto para que as autoridades se opusessem às idéias igualitárias praticadas pelos seguidores de Conselheiro. Em outubro de 1897, após alguns anos de brava resistência, o Arraial de Canudos foi dizimado. Antônio Conselheiro foi encontrado morto e muitos dos seus seguidores, entre homens, mulheres e crianças, foram estupidamente degolados.

1914 - 1918
Em junho de 1914 é assassinado em Sarajevo, capital da Bósnia, o arquiduque Francisco Ferdinando, futuro governante do Império Austro-Húngaro. O estudante bósnio Gabriel Princip, que pertencia a uma sociedade secreta Sérvia denominada Mão Negra, é responsabilizado pelo crime. O incidente em Sarajevo agravou ainda mais a crise nos Balcãs. Um mês após o ocorrido a Áustria declarou guerra à Sérvia, que contou com o apoio da Rússia. Assim teve início a Primeira Guerra Mundial, que provocou a morte de aproximadamente nove milhões de pessoas entre civis e militares e inovou as formas de matar com a utilização de aviões, submarinos, metralhadoras e gases venenosos.

1922
Um golpe de Estado, arquitetado por Benito Mussolini, implanta o regime fascista na Itália. Mussolini assumiu o poder como Duce após as eleições parlamentares de 1924, concretizando o Estado fascista. A oposição sofreu violenta repressão. A imprensa foi fechada e por meio da polícia política fascista (OVRA), inúmeros socialistas e comunistas foram duramente perseguidos.

1929
Quebra a Bolsa de Valores de Nova Iorque, provocando uma onda generalizada de falência de empresas e bancos. A crise norte-americana rapidamente se agrava pelo mundo capitalista. A economia de vários países, que se mantinham graças à política de crédito do governo dos Estados Unidos, sofre um grande abalo. Tem início a chamada Grande Depressão. Nos primeiros anos da década de 30 o número de desempregados em todo o mundo gira em torno de 40 milhões. Esse episódio demonstra o quão nociva pode ser uma economia globalizada.

1933 - 1936
Hitler conquista o poder e instaura o regime nazista na Alemanha. Em conseqüência, inúmeros intelectuais, entre eles Sigmund Freud e os membros da Escola de Frankfurt são obrigados a partir para o exílio.

1939 - 1945
O mundo envolve-se num grande conflito bélico - a Segunda Guerra Mundial - considerado o maior e pior de toda a história da humanidade, devido ao número de participantes, às frentes de lutas que atingiram todos os mares e continentes, à diversidade ideológica que envolveu, às repercussões política, econômica e social e aos horrores que provocou. Cerca de 50 milhões de pessoas morreram na Segunda Guerra Mundial. O mundo conheceu a bestialidade dos campos de concentração e dos efeitos tenebrosos da energia nuclear. Pela primeira vez a bomba atômica foi utilizada pelos Estados Unidos, matando aproximadamente 100 mil japoneses em Hiroshima (06/08/45) e Nagasaki (09/08/45). Com a explosão de duas bombas atômicas chega ao fim o conflito.

1948
É institucionalizada na África do Sul a separação entre negros e brancos, conhecida como Apartheid. Esta foi a forma que a minoria branca, de origem inglesa, encontrou para perpetuar seu domínio. Os negros foram oficialmente declarados cidadãos de segunda categoria, não podendo habitar, freqüentar ou utilizar os mesmos bairros, transportes coletivos, praias ou outros lugares públicos que os brancos. Na década de 50 surge o Congresso Nacional Africano (CNA), uma organização negra que defendia a oposição pacífica ao regime de exclusão. Em 1960 uma manifestação do CNA contra a lei que limitava o direito de ir e vir dos negros foi violentamente reprimida. Cerca de 67 manifestantes foram assassinados. O CNA foi considerado ilegal e seu líder, Nelson Mandela, condenado à prisão perpétua. Essa aberração só terminaria nos anos 90.

1965 - 1975
Guerra do Vietnã, considerada um dos conflitos mais devastadores da história da humanidade devido ao elevado número de mortos e ao uso indiscriminado de armas químicas que poluíram rios, destruíram florestas e contaminaram a terra, deixando-a imprópria para o plantio. Cerca de 50 mil soldados norte-americanos morreram no conflito. Do lado vietnamita as perdas foram ainda maiores, mais de dois milhões de mortos. Os Estados Unidos utilizaram mais bombas sobre o Vietnã do que todos os países na Segunda Guerra. Ainda assim, foram profundamente feridos no seu orgulho militar e político.

1964
As Forças Armadas brasileiras, sob o pretexto de restabelecer a ordem social ameaçada por uma crise político-institucional, depõem o presidente João Goulart com o apoio de um leque bem complexo de forças sociais. Foram apoiados pelas classes dominantes nacionais, que compreendiam tanto setores rurais e urbanos, como também setores produtivos arcaicos e modernos, por grandes parcelas da classe média, pelas oligarquias políticas, sobretudo aqueles segmentos que não conseguiam chegar ao poder através do voto popular, e pelo governo norte-americano. Tem início um período de terror no Brasil marcado por torturas, perseguições e cerceamento da liberdade de expressão.

1973
Golpe militar no Chile, com a queda do governo socialista do presidente Salvador Allende e a ascensão ao poder do general Augusto Pinochet. Tem início uma das piores e mais sanguinárias ditaduras da América Latina.

1979
Assume a presidência do Iraque, após um golpe de Estado, o ditador Saddan Hussein. Com o apoio dos Estados Unidos, Grã Bretanha, França e União Soviética, o presidente iraquiano lançou seu país numa sangrenta guerra contra o Irã. O objetivo era deter a revolução islâmica liderada pelo aiatolá Khomeini. A revolução islâmica tornou-se uma ameaça aos interesses das potências ocidentais no Oriente Médio devido ao seu conhecido espírito anti-ocidental, especialmente raivoso em relação aos Estados Unidos. A guerra Irã-Iraque se estendeu de 1980 a 1988 e provocou a morte de 300 mil iraquianos e 400 mil iranianos.

1982
É identificada a Síndrome de Imunodeficiência Adquirida (AIDS), doença provocada pelo vírus HIV. No decorrer da década de 80 a doença se transforma em epidemia, espalhando pelo mundo inteiro e sendo utilizada pelos arautos da intolerância como pretexto para atacar e condenar o modo de vida dos homossexuais.

1991
Eclode a Guerra do Golfo. Saddam Hussein invade o Kwait, proclamando o direito milenar do Iraque sobre o seu vizinho. As potências capitalistas ocidentais, movidas pelo petróleo, se sentem ameaçadas frente a gana expansionista de Saddam no Oriente Médio. Sob o pretexto de defender a liberdade e a democracia os Estados Unidos formam uma coalizão de 29 países, entre eles Grã Bretanha e França, outrora aliados de Saddam, para bombardear o Iraque. Ao contrário do que a propaganda norte-americana afirmava, a população civil iraquiana foi duramente atingida pelos bombardeios.

1992
Tem início a guerra civil na ex-Iugoslávia. Sérvios e croatas disputam territórios e direitos num conflito marcado pela explosão bestial de antigos ódios e preconceitos nacionais e religiosos.

2001
Após os atentados de 11 de setembro ao World Trade Center em Nova Iorque (EUA) o governo estadunidense chefiado pelo George Bush (o filho) invade o já arruinado Afeganistão com o pretexto de livrar o mundo da ameaça terrorista. Até hoje o objetivo da guerra não foi atingido e o terrorismo no mundo só aumentou, desde o terrorismo praticado pelos governantes, sobretudo os das grandes potências, ao terrorismo praticado por grupos políticos revolucionários ou mercenários. Os mais atingidos nessa “cruzada contra o terror” são, como sempre, a população civil, principalmente mulheres e crianças. Acredita-se que 1 milhão e meio de afegãos passem fome e 7 milhões e meio sofram, direta ou indiretamente, com o resultado da grave situação política, econômica e social do país, resultante da combinação entre guerra civil, longas estiagens, a opressão talibã e a invasão liderada pelos EUA.

2003
Ocorre a Invasão do Iraque por uma aliança bélico-militar entre os Estados Unidos, Reino Unido, entre outras nações, numa aliança conhecida como a Coalizão. O pretexto da ocupação, inicialmente, foi achar armas de destruição em massa que, supostamente, o governo iraquiano teria em estoque e que, segundo George Bush (o filho), representavam um risco ao seu país e ao mundo. As supostas armas de destruição em massa, no entanto, jamais foram encontradas pelas forças de ocupação. Também as alegadas ligações de Saddam Hussein com grupos terroristas islâmicos nunca foram comprovadas. Na verdade, tais grupos opunham-se a Saddam, pois eram xiitas em sua maioria, enquanto o líder iraquiano era sunita e ao contrário do que se imaginava, Iraque era um dos países mais laicos da região. O resultado dessa invasão, como sempre, é o extermínio de várias vidas preciosas.

2008 – 2009
O governo israelense inicia uma ofensiva bélico-militar contra a Faixa de Gaza como resposta aos ataques do grupo Hamas. Os efeitos da ofensiva foram severos para a população civil. De acordo com a ONU, 6.600 foi o número de mortos e feridos na Faixa de Gaza durante os 22 dias que durou a operação militar israelense contra o movimento radical islâmico Hamas no território palestino. Do lado palestino o número de mortos foi de 1.314 (416 crianças e 106 mulheres). Os feridos somaram 5.320 (1.855 crianças e 725 mulheres). Ademais, 55.000 palestinos tiveram que se deslocar de suas casas por causa do conflito. Do lado israelense, houve quatro mortos e 84 feridos.

Nosso breve passeio pela história chega ao fim. Porém, não sabemos se nesse terceiro milênio a humanidade amadureceu o suficiente para superar definitivamente as chagas abertas pela intolerância de todo tipo. Oxalá tenhamos amadurecido (por Sílvio Benevides)!
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Imagem: Luc Viatour a partir de desenho de Leonardo da Vinci.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Muito além dos estereótipos

Após ter visto um certo show em cartaz em um certo bar-restaurante-pizzaria do Rio Vermelho, reduto boêmio de Salvador, decidi escrever sobre o que considero uma ode à intolerância disfarçada de humor chulo e grotesco. Mas resolvi não fazê-lo. Não quero que este espaço seja veículo da estupidez insossa de quem acredita que todo gay pensa apenas em sair pelo mundo a fora só para dar o cu, que os parisienses são frescos, os bascos terroristas, os freqüentadores dos bailes funks cariocas bandidos, os portugueses, nossos colonizadores, um bando de depravados corruptos que arruinaram o Brasil desde os tempos em que “Caramuru comeu o cu da Paraguassú”, os baianos um povo indolente e atrasado, und so weiter. Não! Não quero discorrer sobre a estupidez dos insensatos! Tal qual o José Régio, português do mais alto valor, eu também “amo o Longe e a Miragem, amo os abismos, as torrentes e os desertos...” Por essa razão, prefiro percorrer outras paragens.

No último dia 17/09 foi encerrada no Instituto Cultural Brasil-Alemanha (ICBA), o Goethe-Institut de Salvador, a exposição “Canudos: a guerra de Os sertões”, do artista plástico baiano Trípoli Gaudenzi. A mostra, que já esteve em São Paulo, Paris, Havana, Colônia e Berlim, integrou a programação oficial da 36ª Jornada Internacional de Cinema da Bahia, cujo tema central deste ano foi o centenário da morte do Euclides da Cunha.

O episódio de Canudos foi e é um dos maiores massacres da história do Brasil. Mas nas mãos de um Artista de fato, isto é, um Artista de verdade, como é o caso do Trípoli Gaudenzi, o grotesco vira arte questionadora, ou seja, uma arte que faz refletir, que denuncia e educa, contribuindo, desta maneira, para o engrandecimento da cultura de todos nós. Por meio de uma beleza épica ímpar, Trípoli Gaudenzi narra a saga e o drama do povo liderado pelo Antônio Conselheiro, vítima da intolerância e da violência da sociedade brasileira, que, em 1897, colocou todo seu aparato bélico-militar a serviço do extermínio do que se julgava ser atraso, incivilidade, vergonha, indolência e inadmissível insubordinação. Tanto horror e iniqüidade nos saltam aos olhos com uma ferocidade por vezes inquietante, por vezes piedosamente cortante. Há momentos que é possível ouvir as dores e úlceras daquela gente a arder em meio ao fogo do inferno de Dante. Produzidas em acrílico, guache, bico-de-pena, óleo, pastel e técnicas mistas, as telas da mostra “Canudos: a guerra de Os sertões” são a mais pura expressão de um barroco tipicamente pós-moderno.

E já que se falou na Jornada Internacional de Cinema da Bahia, o grande vencedor da mostra (por unanimidade) foi o filme paraguaio Karai Norte, do diretor Marcelo Martinesse. O curta, patrocinado pela Petrobrás, além de ser laureado com o prêmio Glauber Rocha de melhor filme da 36ª Jornada Internacional de Cinema da Bahia, ganhou mais cinco troféus: melhor ficção, melhor atriz (Lídia de Cueva), melhor direção, melhor roteiro (adaptado de um conto do escritor paraguaio Carlos Villagra Marsal) e melhor som. Falado em guarani, Karai Norte narra a história de uma velha índia que vive num casebre miserável perdido em meio às veredas do grande sertão paraguaio. Enquanto prepara seu “de comer”, ela recebe a visita de um desconhecido rude e mal encarado. Ele pede comida. Ela, a princípio nega, mas após ameaçadora insistência, a velha senhora oferece o pouco alimento que tinha, afinal, ela nada poderia fazer caso ele resolvesse partir para a ignorância. Refestelado, o forasteiro pergunta como pode retribuir aquele carinho. Diz a ela para pedir-lhe o que quiser que ele tratará de conseguir. A velha índia responde que seu desejo era reaver seu machado, lampião e suas poucas roupas que lhes foram roubadas por uns homens vindos do norte. O desfecho é rude, tão rude como o sertão que os circunda. Como bem lembrou Malu Fontes, uma das juradas da Jornada, ao entregar o prêmio ao representante da produção paraguaia, o filme de Martinesse é uma bela homenagem à estética do cinema novo, embora não fosse essa a intenção do diretor. Prêmio mais que merecido. Meu amigo Renato Nascimento certamente aplaudiria de pé. Só mesmo a Jornada Internacional de Cinema da Bahia para nos colocar em contato com o que há de melhor na produção cinematográfica latino-americana. Como se pode perceber, a Bahia é muito mais do que reles estereótipos. Somente os insensatos não são capazes de perceber tamanha grandeza, pois a estupidez não os deixa ver (por Sílvio Benevides).
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Imagem: Canudos: a guerra de Os Sertões, Trípoli Gaudenzi; Foto: Sílvio Benevides.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

A era Obama

No último dia 10/09/2009 o cientista político e historiador baiano, especialista em política exterior e relações internacionais, Luiz Alberto de Vianna Moniz Bandeira, proferiu palestra na Escola de Administração da UFBA, evento promovido pelo Laboratório de Análise Política Mundial (LABMUNDO), sobre “A Política Externa dos EUA no Governo Obama”.

Para Moniz Bandeira o governo estadunidense não possui uma única política externa, mas, sim, diversas políticas externas, porque os EUA são um país heterogêneo e pluralista. Estas políticas na maioria das vezes coincidem. Entretanto, há momentos em que elas se contrapõem, como ocorreu, por exemplo, no período posterior à Revolução Cubana de 1959. Nessa época, o Departamento de Estado dos EUA tinha como diretriz não reconhecer governos formados a partir de processos revolucionários ou de golpes de estado. Essa, porém, não era a diretriz da Central Intelligenge Agency (CIA) e do Pentágono, que, temendo o avanço da ideologia socialista na América Latina, estimularam diversos golpes de estado no continente e o reconhecimento imediato dos governos resultantes dessas ações. No atual contexto não é diferente. Contudo, as demandas de hoje exigem que o presidente Obama elabore uma agenda política, principalmente no que diz respeito à política externa, menos bélica e mais diplomática, pois o que caracteriza o imperialismo contemporâneo não é mais a exportação de capital. “A situação dos EUA é muito precária. A própria eleição do Obama já indica um declínio do império americano representado pela elite branca de olhos azuis. Por isso Obama precisa perpetrar mudanças”, enfatizou Bandeira. Ele lembrou que um dos principais indicadores dessa decadência imperialista estadunidense é o déficit orçamentário do país, que gira em torno de US$ 7 trilhões. “O século XXI não será o século americano. A tendência é a multipolaridade”, ressaltou.

Em relação às políticas voltadas para a América Latina, as mudanças também se fazem necessárias. De acordo com Bandeira, o golpe de estado em Honduras foi deflagrado para desafiar Obama, que, da mesma maneira, não está conseguindo implementar no continente latino toda a sua agenda política, devido, também, à pluralidade social dos EUA. Mas, afinal, qual é mesmo a agenda política do governo Obama? Essa questão nem o Moniz Bandeira soube responder. Mais uma evidência do declínio do todo-poderoso EUA? “O mundo está em constante transformação e é difícil prever os rumos dessa transformação”, ponderou.

No que tange a América do Sul, Moniz Bandeira não acredita que haja intenção por parte do governo estadunidense em promover ações armadas na região que ofereçam riscos à segurança continental, apesar de firmar acordos com o governo da Colômbia para instalar bases militares nesse país. Segundo ele, tais bases são uma tentativa de impedir que o Brasil se consolide como uma forte liderança no continente sul americano e, por conseguinte, em toda a América Latina. Por essa razão ele defende a compra pelo governo brasileiro de equipamentos bélicos para as Forças Armadas nacionais. “O cenário internacional é um cenário muito selvagem. Uma política só é respeitada ou considerada se quem a propõe tiver poder de fogo”, concluiu (por Sílvio Benevides).
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Imagem: Luis Leal Filho

domingo, 6 de setembro de 2009

Poema Falado: Filosofia do Gesto ou Pernambucobucolismo

Lembro-me bem do que escreveu Fernando Pessoa no seu Palavras do Pórtico. Escreveu ele: Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:Navegar é preciso; viver não é preciso*. Quero para mim o espírito [d]esta frase, transformada a forma para a casar como eu sou: Viver não é necessário; o que é necessário é criar. Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso. Só quero torná-la grande, ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a (minha alma) a lenha desse fogo. Só quero torná-la de toda a humanidade; ainda que para isso tenha de a perder como minha. Cada vez mais assim penso. Cada vez mais ponho da essência anímica do meu sangue o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir para a evolução da humanidade. É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça. Quero para mim o espírito dessas palavras a fim de transformá-las em minhas e, desta forma, poder dizer: DESCOLAR-SE É PRECISO!

O Poema Falado deste mês discorre sobre o bucólico ato de descolar-se. Reúne quatro poemas: Filosofia do Gesto, de Mel de Carvalho, falado por Sílvio Benevides; Poema para Amsterdam, de Sérgio LDS; Lisboa, de Coimbra de Resende; Vielas de Alfama, belíssimo fado de Maximiano de Sousa e Arthur Ribeiro; e, por fim, Pernambucobucolismo, canção viandante composta por Marisa Monte e Rodrigo Campelo, interpretada pela própria Marisa Monte. Boa Leitura!
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*NOTA: “Navigare necesse; vivere non est necesse”, frase atribuída a Pompeu (106-48 aC.), general romano, dita aos marinheiros que, amedrontados, recusavam viajar durante a guerra.
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Imagem: Parque Costa Azul - Salvador-BA (Sílvio Benevides).