A despeito dos grandes pensadores brasileiros que atuam e atuaram nas diversas áreas do conhecimento e das artes nacionais, o Brasil ainda vive sob uma forte e persistente dependência intelectual. A academia brasileira, em geral, e a baiana, em particular, continua a repetir idéias e teorias francesas, inglesas, alemãs e estadunidenses como se os pensadores desses países fossem o único norte possível do pensamento humano (isso também ocorre com as artes, embora em menor grau). Alguns intelectuais brasileiros chegam até a sugerir para seus orientandos uma escala de hierarquização intelectual, na qual os autores mais importantes (sempre os franceses, ingleses, alemães e estadunidenses) devem ser o referencial teórico principal e, por isso mesmo, os obrigatoriamente citados. Agindo dessa maneira, acabam por transformar a academia não em um espaço onde se deve estimular o desenvolvimento de um pensamento crítico e autônomo, mas em um lugar onde papagaios são bem adestrados. O texto abaixo, de autoria do Mauro Santayana, é uma reflexão bastante lúcida sobre o Brasil e o seu papel no mundo contemporâneo. Para nos tornarmos “gigantes pela própria natureza”, como apregoa o nosso hino nacional, precisamos, antes de tudo, conquistar nossa independência mental e intelectual, “expressão maior da soberania de um povo”. Não podemos ficar ad infinitum reproduzindo esquemas teóricos que não refletem nossa realidade. Precisamos erigir uma teoria (ou teorias) genuinamente brasileira, que reflita o nosso jeito de ser e de entender o mundo, afinal, interpretar o mundo a partir do lugar que ocupamos é o que define a inteligência de uma gente. Estou farto de ouvir depreciações insanas ou ufanismos tolos sobre o Brasil. Se nós fomos capazes de conquistar nossa independência político-administrativa no século XIX, podemos perfeitamente conquistar nossa independência intelectual no século XXI. Como escreveu o Milton Nascimento “ficar de frente para o mar, de costas pro Brasil não vai fazer desse lugar um bom país”. Está mais do que na hora de nossas artistas, intelectuais e políticos perceberem isso. Abaixo a papagaiada! (por Sílvio Benevides).
Eis o texto do Mauro Santayana:
No ‘Ensaio para uma teoria do Brasil’, publicado em 1966 – e agora reproduzido em livro (Comunidade brasileira e outros ensaios, Editora da Fundação Alexandre de Gusmão, 2009), o filósofo Agostinho da Silva fez correção dialética à ideia de que o Brasil é o país do futuro. O pensador português, que aqui viveu muitos anos, mostra que a profecia antiga partia da suposição de que esse futuro seria atingir os módulos de civilização dos países ricos e centrais. Agostinho pensava o contrário. Já então, ele entendia que a civilização europeia, com sua projeção atlântica, entrara em decadência. O Brasil é, sim, o país do futuro, mas do futuro que a sua sociedade criará, com liberdade, tolerância e fraternidade.
“O que nos interessa, agora, é realmente o problema do Brasil e da sua capacidade de liderar o futuro humano, quando se desembaraçar de tudo quanto lhe foi inútil na educação europeia e exercer, com o esplendor e a vigorosa força de criação que pode demonstrar, as suas capacidades de simpatia humana, de imaginação artística, de sincretismo religioso, de calma aceitação do destino, da inteligência psicológica, de ironia, de apetência de viver, de sentido da contemplação e do tempo” – escreveu há 43 anos. Mesmo sob o látego do golpe militar, essas qualidades plurais do povo brasileiro eram evidentes. Esperava-se – e Agostinho também – que a arbitrariedade seria passageira, e o país retornaria logo à normalidade. Não poderia imaginar que, ao durar tanto, a ditadura deixaria sequelas terríveis na alma nacional.
Embora com todas as dificuldades que enfrentamos, o Brasil parece voltar a ser o país do futuro, não o futuro que então, e aqui, se imaginava. O texto de Agostinho é mais atual do que antes. Nós nos desviamos de nosso destino quando deixamos de inventá-lo. O culto à Europa e aos Estados Unidos, que teve o seu momento mais caricatural na passagem do século 19 para o 20, e se exacerbou grotescamente com o neoliberalismo, vem resistindo à lógica. Passamos a importar todos os modelos de fora, dos automóveis de luxo aos processos de administração pública, neles incluídas as leis, do sistema universitário às crises bancárias, da euforia dos cartões de crédito ao consumo de drogas.
Estamos diante da grande oportunidade de encontrar caminho próprio. O conceito do Brasil cresce no mundo, talvez porque seja, no imaginário da inteligência, o terreno – físico e espiritual – destinado a nova revolução histórica. É certo que, para isso, ele está sendo obrigado a fortalecer sua economia. Mas há, além do crafty power, com que a Newsweek o qualificou em matéria de capa, outras condições alentadoras. O Brasil, com sua biodiversidade, é o mais importante espaço para as pesquisas que contenham o aquecimento global e permitam também o usufruto da natureza sem lhe causar dano. Para isso, os transgênicos devem ser contidos a tempo. A Comissão Técnica de Bio-Segurança, ao permiti-los, está na contramão da lucidez.
A expressão maior da soberania de um povo é a independência mental. Não podemos, a pretexto de que já se inventou a roda, deixar de buscar outros meios de deslocamento. Somos chamados a ousar, se queremos aproveitar a oportunidade histórica. Ousar na reinvenção do Estado, nas pesquisas científicas e na criação de novos modos de convivência social, que sejam solidários e dinâmicos. Chegou o momento de romper com esse modelo de civilização que já se esgotou na História. Os países que sofreram a opressão do sistema, se souberem unir-se, poderão mudar o mundo. Nossa diplomacia, ao respeitar a autodeterminação dos outros, conquista amigos e não causa ressentimentos. A Espanha, orgulhosa de seu passado, tem sido muito arrogante, tratando com desprezo não só os viajantes da América Latina como os governantes hispano-americanos, como foi o caso de Duhalde, da Argentina, e Chávez, da Venezuela. Hoje, se esfalfa, buscando o apoio de nosso continente para ter assento no G-20, embora sem credenciais econômicas para tanto.
Eis o texto do Mauro Santayana:
No ‘Ensaio para uma teoria do Brasil’, publicado em 1966 – e agora reproduzido em livro (Comunidade brasileira e outros ensaios, Editora da Fundação Alexandre de Gusmão, 2009), o filósofo Agostinho da Silva fez correção dialética à ideia de que o Brasil é o país do futuro. O pensador português, que aqui viveu muitos anos, mostra que a profecia antiga partia da suposição de que esse futuro seria atingir os módulos de civilização dos países ricos e centrais. Agostinho pensava o contrário. Já então, ele entendia que a civilização europeia, com sua projeção atlântica, entrara em decadência. O Brasil é, sim, o país do futuro, mas do futuro que a sua sociedade criará, com liberdade, tolerância e fraternidade.
“O que nos interessa, agora, é realmente o problema do Brasil e da sua capacidade de liderar o futuro humano, quando se desembaraçar de tudo quanto lhe foi inútil na educação europeia e exercer, com o esplendor e a vigorosa força de criação que pode demonstrar, as suas capacidades de simpatia humana, de imaginação artística, de sincretismo religioso, de calma aceitação do destino, da inteligência psicológica, de ironia, de apetência de viver, de sentido da contemplação e do tempo” – escreveu há 43 anos. Mesmo sob o látego do golpe militar, essas qualidades plurais do povo brasileiro eram evidentes. Esperava-se – e Agostinho também – que a arbitrariedade seria passageira, e o país retornaria logo à normalidade. Não poderia imaginar que, ao durar tanto, a ditadura deixaria sequelas terríveis na alma nacional.
Embora com todas as dificuldades que enfrentamos, o Brasil parece voltar a ser o país do futuro, não o futuro que então, e aqui, se imaginava. O texto de Agostinho é mais atual do que antes. Nós nos desviamos de nosso destino quando deixamos de inventá-lo. O culto à Europa e aos Estados Unidos, que teve o seu momento mais caricatural na passagem do século 19 para o 20, e se exacerbou grotescamente com o neoliberalismo, vem resistindo à lógica. Passamos a importar todos os modelos de fora, dos automóveis de luxo aos processos de administração pública, neles incluídas as leis, do sistema universitário às crises bancárias, da euforia dos cartões de crédito ao consumo de drogas.
Estamos diante da grande oportunidade de encontrar caminho próprio. O conceito do Brasil cresce no mundo, talvez porque seja, no imaginário da inteligência, o terreno – físico e espiritual – destinado a nova revolução histórica. É certo que, para isso, ele está sendo obrigado a fortalecer sua economia. Mas há, além do crafty power, com que a Newsweek o qualificou em matéria de capa, outras condições alentadoras. O Brasil, com sua biodiversidade, é o mais importante espaço para as pesquisas que contenham o aquecimento global e permitam também o usufruto da natureza sem lhe causar dano. Para isso, os transgênicos devem ser contidos a tempo. A Comissão Técnica de Bio-Segurança, ao permiti-los, está na contramão da lucidez.
A expressão maior da soberania de um povo é a independência mental. Não podemos, a pretexto de que já se inventou a roda, deixar de buscar outros meios de deslocamento. Somos chamados a ousar, se queremos aproveitar a oportunidade histórica. Ousar na reinvenção do Estado, nas pesquisas científicas e na criação de novos modos de convivência social, que sejam solidários e dinâmicos. Chegou o momento de romper com esse modelo de civilização que já se esgotou na História. Os países que sofreram a opressão do sistema, se souberem unir-se, poderão mudar o mundo. Nossa diplomacia, ao respeitar a autodeterminação dos outros, conquista amigos e não causa ressentimentos. A Espanha, orgulhosa de seu passado, tem sido muito arrogante, tratando com desprezo não só os viajantes da América Latina como os governantes hispano-americanos, como foi o caso de Duhalde, da Argentina, e Chávez, da Venezuela. Hoje, se esfalfa, buscando o apoio de nosso continente para ter assento no G-20, embora sem credenciais econômicas para tanto.
O passado é uma referência, mas não pode ser fardo a ser arrastado na escalada do tempo. Apesar do negativismo de alguns, o Brasil está em seu grande momento, e não pode perdê-lo. Daí a importância da reflexão de Agostinho da Silva: para fazer o futuro, devemos inventá-lo, com a alegria, o espírito universal de solidariedade, a inteligência criadora e a necessária consciência de que todos os brasileiros têm direito aos mesmos benefícios da civilização (por Mauro Santayana).
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Imagem: Mapa do Brasil
2 comentários:
Fico extremamente feliz por ter encontrado seu Blog (e paradoxalmente triste por não tê-lo feito antes!).
Como Guia de Turismo, saber Salvador é, além de uma paixão, uma obrigação profissional.
Parabéns pelos textos muito bem elaborados.
Aconselho que procure pelo portal de Blogs Baianos (blogsba.com.br) para que outras pessoas possam conhecer o Salvador na sola do pé.
Parabéns
Caro Roberto, muito obrigado pelas observações e pelo incentivo. Fico feliz em saber que o Salvador na sola do pé lhe foi útil de alguma maneira. Um abraço.
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