segunda-feira, 30 de março de 2009

Salvador: a cidade das desigualdades

No último dia 29 de março, ontem, portanto, Salvador completou 460 anos de fundação. Trata-se de um momento para celebrar nossa história, nossa cultura, nosso jeito de ser e viver, nossa luta. Eu diria que nascer em uma terra como essa, cercada de tantas belezas e tão iluminada, é sim um privilégio. Isso, porém, não nos faz melhores do que ninguém e tampouco é motivo para nos fingirmos de cegos frente as nossas mazelas políticas e sociais. Por essa razão reproduzo essa semana um texto do sociólogo Gey Espinheira originalmente publicado no Cadernos do CEAS (n.184 – nov/dez de 1999), revista do Centro de Estudos e Ação Social, por ocasião dos 450 anos da cidade. De lá para cá se passaram dez anos. Mas creio que as análises do texto abaixo reproduzido continuam pertinentes. Nessa semana o Salvador na sola do pé não só propõe uma reflexão sobre a nossa realidade soteropolitana, como aproveita a ocasião para homenagear o Gey Espinheira, falecido no início deste mês. Boa leitura (por Sílvio Benevides).
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INTRODUÇÃO
Uma comemoração é sempre um bom pretexto para se fazer uma reflexão sobre o que se comemora ou do sentido da comemoração. 450 anos são um marco na existência de uma cidade, um número cheio. Quando Salvador completou 437 anos, escrevi um ensaio intitulado “Salvador: província e metrópole”; àquela época o país começava a desfazer-se do autoritarismo militar que o havia dominado por pouco mais de 20 anos, desde, portanto, o fatídico 1964 até 1986. O particular da abertura política, que possibilitaria a construção contínua da democracia, era o sentimento de que a cidade poderia ser devolvida aos seus habitantes, se é que alguma vez na história ela realmente os pertenceu. Aquele era um momento em que parcelas significativas da população manifestavam-se no sentido de seus interesses mais específicos, mas também cuidavam de reivindicar objetivos mais gerais, mais universais.

Aos 450 anos Salvador se constitui em uma metrópole moderna, nestes últimos anos, superando certas dificuldades que lhe eram tão comuns, a exemplo de sua própria manutenção básica: limpeza pública, saneamento. Iluminação, pavimentação de ruas, manutenção de praças e jardins, preservação do patrimônio público etc., em suma mantê-la como um condomínio bem administrado, provendo a seus habitantes os serviços urbanos básicos; em outros termos, fazendo a coisa mínima que deveria ser feita.

Salvador, provinciana não era apenas a cidade de intimidades de habitantes com seus lugares, a vivência particular desses lugares e pessoas que se conheciam pela proximidade da vizinhança, do bairrismo, o que levava à solidariedade e à intriga. O provincianismo estava, sobretudo, na legitimação institucionalizada da apropriação do público pelo privado, na dominação do campo político como negócio de família e de compadrio político; do exercer a vontade gerencial a partir de interesses particulares, tal como costumavam ser as formas de proceder de políticos em todas as esferas e instâncias do poder público, desde o rapa, na perseguição de ambulantes, aos vereadores, prefeitos, deputados e aos próprios governadores, nos acordos de interesses pessoais, grupais e partidários.

O poder, exercido em nome de uma “autoridade natural” derivada da posição funcional que, por exemplo, dava ao policial, civil ou militar, a garantia de impunidade quando violava os mais elementares direitos humanos dos cidadãos em agressões fúteis, mas também conferia a mesma legitimidade à impunidade em relação a violações contra interesses públicos de parte dos políticos, ou melhor, dos mandatários de cada momento.

O provincianismo se definia no privilégio do interesse particular sobre o universal, no pleno domínio da elite em relação à população como um todo. Este estado de coisas, de longa história, fez Salvador ser como é em sua forma urbana, mas não a moldou do mesmo jeito em sua forma cultural. São estes dois campos de reflexão que serão abordados neste ensaio sobre a Cidade de 450 anos.

DUAS CIDADES: BRASILEIRA E LUSITANA
Podemos fazer um corte – arbitrário, é verdade – na história dessa Cidade, também chamada de Bahia – que, como disse o historiador João José Reis (Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989), “tem a personalidade de um país” – tomando três momentos em sua longa duração: antes de Tomé de Souza, a cidade lusitana e a Salvador de hoje no contraponto província e metrópole.

São, como dissemos, cortes arbitrários, mas nele acreditamos encontrar alguns elementos fundamentais da baianidade, estado de espírito que faz de Salvador uma cidade sui generis, como uma nação, vista pelos de fora como um lugar hedônico, império da sensualidade, do lúdico e da preguiça: mão de todos os vícios e de todas as virtudes.

Salvador foi, desde a sua fundação, um lugar no mundo, um ponto de apoio para a globalização da modernidade. “Nós não nascemos em função do Brasil, nascemos para ser base, uma sustentação, um apoio, uma guarda, um reabastecimento, um estaleiro de todo o processo mercantilista internacional” (Cid Teixeira, entrevista 1996). Esse cosmopolitismo é, portanto, de origem, mas, antes da cidade ser fundada, a civilização pré-urbana iniciada por Caramuru já desempenhava, ainda que de modo menos estruturado, esses contatos mercantis com navegantes aventureiros, corsários, piratas, contrabandistas, como se tornaram conhecidos pelos historiadores que tiveram como referência a ilegalidade desse comércio. Era essa época da luxúria, do encontro cultural do branco com o índio, da transposição da linha do Equador como fronteira entre o pecado e o mundo livre, onde tudo era recomeço ou reencontro com o paraíso perdido.

Nesses 48 anos de povoamento do sítio indígena na entrada da barra da baía de Todos os Santos, depois de ter passado algum tempo com os indígenas do Rio Vermelho, frente ao mar aberto, Diogo Álvares Correa, o Caramuru, se estabeleceu com os índios, constituiu família desposando uma índia e amancebou-se com outras, organizou as relações comerciais com negociantes de todas as nacionalidades que se interessavam por produtos da terra. Dessa relação comercial, sexual e social começa a gente brasileira a crescer em número, aculturada aos padrões indígenas, mas sem perder os elementos da cultura européia agora descontextualizada, convertida ao imediato da realidade local.

Na entrada da barra da baía, hoje bairro da Barra, foi erguida a Vila do Pereira, começo dessa nova civilização, anterior, portanto, à civilização lusitana transladada para a nova cidade, planejada para a defesa do patrimônio colonial português: as terras brasílicas e tudo que nela havia é o resultante da atividade econômica promissora que iria fazer do Recôncavo o maior produtor de açúcar por alguns séculos; contudo, antes disso. Outras mercadorias já rendiam frutos com a exploração das matas: madeira, bichos e gentes para exportação ao longo de todo litoral, até Porto Seguro, no Extremo Sul da Bahia.

A lógica da defesa e do porto levou à escolha do sítio em que a cidade planejada foi erguida, desde as portas de São Bentos às do Carmo, no alto do promontório, diante da baía de Todos os Santos. Fortaleza inexpugnável, em tese, mas que foi invadida duas vezes pelos holandeses, apesar de seus fortes localizados em pontos estratégicos.

Defesa, comércio e devoção eram os princípios dessa cidade, capital do Atlântico Sul, como a considera o historiador Cid Teixeira. Defesa e comércio são relacionados aos objetivos econômicos da exploração colonial; devoção, por seu lado, às condições de vida de um povo exilado de sua própria terra natal, voluntária e involuntariamente, para servir à causa da metrópole. Era um tempo de medo e de necessidade de salvação; uma época em que a morte caminhava entre os homens, abatia-os sem cessar em guerras, emboscadas, mas também com doenças individualizadas ou coletivas, pois era uma gente descuidada em higiene e alimentação e sem o resguardo de uma medicina que tivesse eficácia. Sífilis, escorbuto, sarampo, tifo, varíola, cólera morbus e tantas outras doenças menos atrozes que matavam adultos e crianças. Reza e água benta, temor e devoção, eram os remédios à disposição e no fundo, bem além, estava o inferno povoado por seres demoníacos à espera dos pecadores para o sofrimento eterno.

A cidade erguida imitava a metrópole. Os que aqui estavam eram mais realistas do que o rei. Salvador de Tomé de Souza não era, portanto, a da gente brasileira dos primeiros momentos, da periferia desse núcleo urbano oficial fechado em suas portas. A civilização soteropolitana é, assim, constituída de dois ramos: o brasileiro, formado pelo encontro dos primeiros bancos sediados e os índios e seus descendentes, ao longo desses longos 48 anos que antecedem à fundação da Cidade e, logo mais, pela interpretação social, sexual e cultural com os negros trazidos da África; o segundo ramo, o lusitano, a cidade oficial e seus ocupantes, funcionários, clérigos e militares no espaço da cidade-fortaleza.

È bom citar, novamente, o historiador em sua maneira de ver esta cidade implantada, que “nasce por uma imposição internacional” e que cumpre um papel bem definido e é este que a define: “a sua filosofia de implantação era tão moderna em 1549 para os interesses, para as exigências daquela época, quanto Brasília foi para os interesses e exigências de 1960” (Cid Teixeira, entrevista 1996).

Salvador nasce à margem dos acontecimentos civilizatórios que a antecedem e vai impor-se a eles, dando origem aos conflitos e acomodações que a farão, em definitivo, uma cidade das desigualdades, porém, de convergência. Era uma cidade voltada para o futuro, para a nova colônia, para o planejamento da expansão ocidental do Império Português na modernidade; era, pois, uma parte da história de Portugal no Novo Mundo, tal como era vista pelo pregador jesuíta padre Antônio Vieira:

Nenhuma cousa se pode prometer à natureza humana mais conforme ao seu apetite, nem mais superior a toda capacidade, que na notícia dos tempos e sucessos futuros; isto é que oferece Portugal à Europa e ao Mundo esta nova e nunca ouvida história. As outras histórias contam as cousas passadas; esta promete dizer as que estão por vir; as outras trazem à memória aqueles sucessos públicos que viu o Mundo; esta intenta manifestar ao Mundo aqueles segredos ocultos e escuríssimos a que não chega penetrar o entendimento... (Antônio Vieira)

Salvador era, de algum modo, o futuro de Portugal e, por isso, não podia deixar de ser essencialmente portuguesa e a fazer aqui nos Trópicos uma simulação da corte, da fidalguia, uma cópia da metrópole na arquitetura e nas pompas, nos ritos sociais e religiosos.


REBELDE E ESPERANÇOSA
A cidade do futuro é também a cidade presente, que se faz cotidiana com a matéria do passado: essa é a razão da densidade cultural que impregna Salvador e a faz significativa, mesmo quando esse significado não é decifrado e se transforma em mistério. Não se está em Salvador como em outro lugar, nela as pessoas estão sempre esperando que algo aconteça, e isto talvez seja a promessa de dizer “as cousas que estão por vir”. Um encontro inusitado, alguma coisa que dê uma reviravolta na vida, ou, em última instância, a salvação.

Salvador vai ser uma civilização “do reino” por séculos, embora não tão pura ou tão simulada como no século XVI, até o século XIX, na tumultuada década de 20, cujo marco foi a Independência comemorada em dois de julho de 1823, depois de uma longa e sangrenta guerra. Libertada politicamente de Portugal, a Bahia, o último reduto português, era dominada por portugueses no pequeno e grande comércio, na administração pública, nos principais negócios e empreendimentos. A Independência não mudou a vida do povo brasileiro e isso gerou descontentamento e revolta, levando hordas populares a caçarem e matarem “marotos”, apelido dado aos portugueses, por motivos os mais fúteis. Era a cidade desesperada, vetada à visão da promessa de futuro, estagnada socialmente numa realidade intolerável.

Salvador vai ser a cidade da esperança, não mais passivamente aguardando o acontecer, mas gerando revoltas como as do passado, desde a Conjuração dos Alfaiates, em 1798, em que prisioneiros foram enforcados e decapitados, em seguida expostas as partes amputadas de seus corpos nas ruas centrais da Cidade até o apodrecimento total de suas carnes na Praça da Piedade e ruas adjacentes, uma das quais se chama Rua da Forca. Veio a Rebelião dos Malês, em 1835; a tentativa de Independência de 1837, a Sabinada; conflitos e castigos. É a cidade à procura do futuro, querendo antecipá-lo e torná-lo contemporâneo dos desejos de seu povo.

Ao completar 450 anos, a cidade do Salvador se mostra a uma grande parte de seus habitantes como um lugar difícil, feio e até mesmo cruel. Uma outra face, entretanto, a que se olha no espelho, é simplesmente narcísica, ou, de modo mais apropriado, "é de Oxum", com toda a vaidade do orixá.

Essa cidade de múltiplas identidades se projeta nacional e internacionalmente, como a “terra da felicidade”, estereótipo criado a partir de uma música de Ary Barroso, mas também como da sensualidade, da faceirice, “da morena mais frajola da Bahia” etc., de tantas outras letras de música. Uma Salvador mesquinha, feia e dura em relação a como vive uma parcela muito grande de sua população, ocupando assentamentos urbanos arranjados pelo esforço coletivo de ocupar terras ociosas e nelas erguerem bairros inteiros, em pouquíssimo tempo, antes que a repressão institucional se desse. Essas inva­sões são, inclusive, as novas denominações da urbanização da pobreza que antes eram chamadas de favela, Agora, a pobreza é vista como algo que contraria os aspectos legais da ocupação da terra e é, assim, primeiramente qualificada por este aspecto.

Se fazemos a pergunta, tal como fez Philip Johnson (A humanização do meio ambiente. São Paulo: Cultrix, 1972), “porque mantemos feias e desumanas as nossas cidades”?, a resposta certamente não estará em nenhum desvio comportamental nem numa tendência à perversão, mas tão somente no modo de produção capitalista, particularmente na sua expressão brasileira e baiana de fazer a cidade no seu dia a dia.

A bela cidade do Salvador, uma das cidades mais carismáticas do país, é também uma das mais cruéis, pelo menos para um grande número de moradores que sofrem as mais duras privações e que se submetem a terríveis situações cotidianas. Não se trata aqui de procurar desmascarar a cidade bonita e feiticeira, exótica para os turistas e, de certa forma, até mesmo para os que aqui moram, dada a sua diversidade social e cultural, mas de fazer uma reflexão sobre o modo de ser de um povo que está em Salvador ou que a escolheu como o seu lugar de moradia para aqui realizar a sua vida, as coisas que animam a existência.

Para levar a efeito essa reflexão tomamos a sociabilidade soteropolitana com vistas a compreender como vive, cotidianamente, o povo da cidade, usando aí o conceito de povo muito próximo daquele Michelet, assim como a observação dos que vivem numa cidade, tal como ele recomenda:

Examinai bem essas turbas espirituosas e corrompidas de nossas grandes cidades, que tanto ocupam o observador, escutai o seu linguajar, seus gracejos não raro felizes, e descobrireis uma coisa que ninguém ainda notou, isto é, que essas pessoas, às vezes analfabetas, não dei­xam de ser, a sua maneira, espíritos bastante cultivados. As pessoas que vivem juntas, tocando-se sempre, desenvolvem-se ne­cessariamente ao simples contato, como que pelo efeito do calor na­tural. Elas se propiciam uma educação, má, se se quiser, mas educa­ção. Só a visão de uma grande cidade, onde sem nada querer apren­der alguém se instrui a todo instante, onde para se conhecer mil coisas novas basta caminhar na rua de olhos bem abertos, essa visão, essa cidade, sabei, é uma escola. Os que nela vivem não vivem de forma alguma uma existência instintiva e natural; são homens cultos, que bem ou mal observam e bem ou mal refletem. Acho-os frequente­mente muito sutis, e de uma sutileza perversa. Os efeitos de uma cultura refinada são neles bem visíveis (Jules Michelet. O povo. São Paulo: Martins Fontes, 1988)

Essa perspectiva de Michelet implica também numa metodologia muito es­pecial de percepção da cultura do povo ou, se quisermos, da cultura popular, o que leva a outro tipo de dificuldade conceitual. No entanto, a direção é essa, ver e ouvir o povo em sua faina cotidiana, numa diversidade e multi­plicidade de interações sociais, em que cortes verticais se sucedem, mas que são cada vez menos intensos, pois as relações entre diferentes estratos dimi­nuem aceleradamente na medida em que as "classes sociais" tornam-se mais fechadas em seus compartimentos, que já não se interdependem tanto, a exemplo de quando se precisava do trabalhador do povo como criado domés­tico, como lavadeira, jardineiro, motorista etc, e até mesmo a figura do agregado pobre, o literalmente "criado" pela família rica.

Os distanciamentos sociais aumentam, em que pese o fato de um maior compartilhamento de espaços públicos (ruas, praças, avenidas e mercados), mas, mesmo assim, pode-se observar o quanto eles propiciam espaços pró­prios para evitar contatos mais estreitos e constrangedores. Os shoppings centers são estratificados em seus diversos lugares, de modo a selecionar o público a partir de interesses bem definidos, No pavimento térreo, por exem­plo, estão as grandes lojas de departamento, agências de bancos e alguns serviços indistintos de que se utilizam todos. São estes espaços populares num conjunto que oferecem uma qualidade de recepção elevada e que se apresenta para um povo com um padrão de conforto que esse povo jamais poderia desfrutar por seus próprios meios; contudo, os pavimentos superiores, constituídos de lojas e boutiques de artigos sofisticados, cinemas e praças de alimentação, vão filtrando gente, separando o povão dos estratos médios e deixando esses lugares para os efetivamente bem aquinhoados na vida. Parece ser uma separação natural, que a própria pessoa faz ou sente ao medir quais são as suas possibilidades de ultrapassar as sutis barreiras dos espaços, dos preços, dos estilos, do modo de ser de cada lugar.

Cada vez mais os lugares são socialmente marcados para caber a diversidade dos tipos sociais, mesmo quando eles adquirem a característica de consumi­dores. Aí, mais do que nunca, estão divididos os bem sucedidos e os falhos, para usar aqui um conceito de Bauman, ao considerar o ideal de pureza social, que se expressa na pureza da raça e na pureza de classe:

No mundo pós-moderno de estilos e padrões de vida livremente con­correntes, há ainda um severo teste de pureza que se requer seja transposto por todo aquele que solicite ser ali admitido: tem de mos­trar-se capaz de ser seduzido pela infinita possibilidade e constante renovação promovida pelo mercado consumidor, de se regozijar com a sorte de vestir e despir identidades, de passar a vida na caça inter­minável de cada vez mais intensas sensações e cada vez mais inebriante experiência. Nem todos podem passar nessa prova. Aqueles que não podem são a "sujeira" da pureza pós-moderna (Zygmunt Bauman. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998).

Essa separação social do “joio do trigo” é feita por uma série de mecanismos e processos que alimentam o racismo e outras formas de discriminação, desde as tradicionais e emblemáticas separações de elevadores sociais e de serviços, pelos quais a distinção já se faz entre moradores, visitantes e serviçais de variada natureza, até os estilos excludentes que personalizam luga­res e que requerem, com isso, identidades que nem todos podem portar ou assumir.

Assim, a cidade de todos é ao mesmo tempo a cidade de cada um, e isso dentro das possibilidades mais concretas de consumo. Mesmo no Carnaval, muito equivocadamente considerado como espaço e momento democráticos, a visibilidade dos divisores sociais é tão nítida que só um espírito conturbado pela festa deixa de enxergar essas diferenças e os mecanismos e processos de discriminação e até mesmo de exclusão extrema, como no caso das cordas que cercam e protegem os blocos organizados do contato mais direto com o entorno social.

A cidade da separação é também a cidade dos cercos próprios, dos limites impostos pelos conflitos e tensões, especialmente no que concerne à segurança pessoal. A cidade de protetores eletrônicos, de seguranças e grades, e estas até mesmo para impedir que pessoas ao relento possam proteger-se nos recuos de prédios e marquises que oferecem anteparo contra a chuva e contra o frio. Grades descem à noite nos prédios comerciais do centro para fechar estes espaços e a imagem que se tem é a da agressiva cidade gradeada.

A cidade não só discrimina, mas exclui agressivamente, sacrificando, inclu­sive, a estética da arquitetura em nome dessa pureza que chega mesmo ao seu sentido mais banal de ver no outro o lixo humano em suas portas.

Salvador é, desde a sua origem, a cidade das desigualdades. “Triste Bahia! Ó quão dessemelhante ...” (Gregório de Matos. À cidade da Bahia) Hoje as desseme1hanças se expres­sam com grande nitidez nos pólos opostos da riqueza opulenta e da pobreza miserável; da cidade bonita e rica em espaços públicos bem equipados e da cidade feia, cuja urbanização se parece com a descrição feita por Fanon sobre a situação extrema da colonização, tal como o Brasil, e a Bahia em particular, foram no passado. O contraste entre o colonizador e o colonizado. Não é diferente a Salvador de hoje daquelas cidades africanas em que o confronto entre as desigualdades sociais constroem cidades também desiguais:

A cidade do colono é uma cidade saciada, indolente, cujo ventre está permanentemente repleto de boas coisas. A cidade do colono é uma cidade de brancos, de estrangeiros. A cidade do colonizado, ou pelo menos a cidade indígena, a cidade negra, a medina (cidade árabe ao lado da qual se erguem edificações para europeus), a reserva, é um lugar mal afamado, povoado de homens mal afamados. Aí se nasce não importa onde, não importa como. Morre-se não importa onde, não importa de que. .É um mundo sem intervalos, onde os homens estão uns sobre os outros, as casas umas sobre as outras. A cidade do colonizado é uma cidade faminta, faminta de pão, de carne, de sapa­tos, de carvão, de luz. A cidade do colonizado é uma cidade acoco­rada, uma cidade ajoelhada, uma cidade acuada. É uma cidade de negros, uma cidade de árabes (Frantz Fanon. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979).

A comparação é enfática, mas não é menos verdadeira. A Salvador do “miolo”, onde estão os conjuntos habitacionais que formam as Cajazeiras; a do Subúr­bio Ferroviário, onde estão desde pequenas comunidades tradicionais até as grandes invasões mais recentes (Bate Coração, Constituinte, Fazenda Coutos e tantas outras), mas também onde outrora milhares de pessoas viviam em palafitas sobre mangue e mar, num dos bairros mais famosos de Salvador, “Alagados”. Outros espaços que concentram milhares de pessoas: Liberdade, Mata Escura, Fazenda Grande, Sussuarana, Beiru (hoje Tancredo Neves), Malvinas (hoje Bairro da Paz) etc., são exemplos de lugares “colonizados” na cidade do Salvador.

URBANIZADA E DISCRIMINADORA
A sociedade contemporânea é pródiga em ler e traduzir as condições sociais através de números correlacionados em tabelas e gráficos, em indicadores de situações de vida. Este procedimento sintético camufla, e por vezes anula, a existência dos atores sociais em seus jogos cênicos, nos quais os destinos pessoais estão alinhados ao esforço cotidiano de toda uma coletividade, seja ela expressa no conjunto da cidade, seja na configuração de paisagens me­nores, bairros ou mesmo ruas.

As práticas sociais cotidianas passam despercebidas dessa leitura e dessa tradução que desconhecem os destinos pessoais, as subjetividades, e tomam como referenciais tão somente os dados que ligam essas pessoas ao conjunto organizado do que se poderia considerar como estrutura social. Assim, os níveis de renda, medidos pelo salário mínimo, diriam das condições de vida de uma população, ou o PIB a renda per capita, a riqueza de um país, Mas não estão presentes os sentimentos, os modos de ser, os gestos e as falas, a alma e o humor, as expressões da existência.

O urbanismo, por seu lado, pode ser visto como ideologia, ou seja, concep­ção de época em que a cidade é tratada a partir de determinados pressupos­tos. Há poucos anos, ainda na década de 1980, estávamos envolvidos na racionalidade funcional das cidades preparadas para receber os impactos da industrialização projetada em termos de complexos industriais, a exemplo do Centro Industrial de Aratu ou do Pólo Petroquímico de Camaçari, no entorno metropolitano; agora, Salvador se esmera para camuflar suas mazelas e ex­por suas belezas, culturais e naturais para o encantamento de turistas, pois o turismo e a indústria cultural são as ênfases desse fim de século.
Na verdade, é bom que se ressalte, o planejamento sempre atuou como corretor de problemas, como solucionador de conflitos, sempre na direção de eliminar as tensões afastando os elementos opositores. Assim, os pobres que estavam no caminho da modernização foram retirados, seja através de polí­ticas habitacionais dirigidas para a ocupação periférica e interiorizada (as Cajazeiras, por exemplo), ou deixar que as soluções de moradia viessem no jogo de forças sociais subalternas na ocupação, pela via de invasões, de solos acidentados próximos a áreas urbanizadas de bairros populares, como são os inúmeros casos de invasões no Subúrbio Ferroviário e no Miolo de Salvador.

Criado o problema, portanto, a municipalidade, ou mesmo o governo estadual, se propõe a “urbanizar a invasão”, implementando algumas obras de infra-estrutura ou atendendo à população com alguns - e quase sempre precários - serviços públicos, através de programas, como o que está em curso e que se chama eufemisticamente “Viver Melhor”. São casas pequenas, feias e frágeis, tão precárias que muitas delas se dissolveram com as últimas chuvas, outras tantas foram levadas por terrenos movediços, rachando as suas paredes e ameaçando seus moradores.

A dimensão do planejamento, contudo, desaparece. O mais grave, entretanto, é a perda de princípios que deveriam orientar o urbanismo, na apenas a partir da razão instrumental, o lado pragmático de fazer a cidade servir, cada vez melhor, aos que fazem dela suas bases produtiva e existencial, à revelia do conjunto maior da população.

O urbanismo que não incorpora os valores das lutas e conquistas sociais só pode ser visto como autoritário e discriminador. Os agentes que o praticam são os mesmos que dominam a sociedade em todas as suas dimensões: econômica, política, cultural e social. A população que não tem as condições de fazer o jogo do mercado é compelida a resolver suas necessidades de forma secundária, improvisadamente, nas mais duras condições de organização suas vidas: moradia, transporte, educação, saúde, segurança, conforto, insegurança, medo e esforços intensos para viver na cidade, para se comunicar com ela e através dela. Não é por acaso que está internalizada e automatizada nas pessoas a resposta que se dá à gentil pergunta quando pessoas se encontram: - “Como vai você”?. A resposta é peremptória – “Na luta!”. Para além de um hábito, essa expressão denota o sentido de dificuldade que as pessoas sentem no exercício cotidiano de vida.

A luta política pela democracia não é internalizada no urbanismo. Este continua pautado em critérios de funcionalidade e na dependência dos jogos dos agentes construtores da cidade legal, ou seja, os comerciantes, os industriais, os agentes imobiliários e os exploradores da industrial cultural e do turismo. Um exemplo claro é a reserva ecológica que o complexo hoteleiro tem em Ondina, por exemplo, privilégio absoluto sobre a paisagem e localização de seus equipamentos, Mas não é só essa evidência escandalosa, basta que se olhe para a orla marítima, toda ela, e se procure ver quem a ocupa; e agora o Parque Atlântico Plaza Show, montado no mais extenso e privilegiado terreno público da cidade, no recente e tradicional bairro da Boca do Rio.

Em lugar dos equipamentos comunitários da densa vizinhança e da composição estética com a praia e o mar, pesadas estruturas de shopping Center e serviços sofisticados como o Rock in Rio Café, complexo de dez salas luxuosas de cinema da Paramount, entre outros. Não são pescadores, nem pobres, nem mesmo remediados. Há muito que os pescadores foram retirados da proximidade do mar, no desmanche das invasões da orla. Desde este tempo de vigência da ideologia da modernização urbana que Salvador agride os mais pobres, afastando-os das “áreas nobres”, acomodando-os em guetos, como a recente memória das invasões do Cai Duro e do Tubo, na Pituba e Costa Azul, transferidas para o Arenoso, numa vergonhosa barganha entre Prefeitura e empresas imobiliárias.

O princípio democrático não é internalizado pelo urbanismo soteropolitano. Há sempre leis pontuais que satisfazem a ganância dos agentes imobiliários e outros que requerem usos vantajosos da cidade. O Pelourinho é outro bom exemplo, O povo foi expulso, comerciantes e empresários bem sucedidos em seus negócios foram convidados, com os incentivos de financiamento governamental os mais atraentes, a ocuparem o velho Centro Histórico, a explorarem com toda a avidez, sem nenhum respeito às tradições, aos rituais do povo, sequer à memória arquitetônica e social. Nesta área, da Praça da Sé ao Carmo, passando pelo Terreiro de Jesus, Maciel de Cima e Maciel de Baixo, Largo do Pelourinho, numa das descrições da Bahia de Jorge Amado, é que se produz a mais genuína cultura popular da Bahia; mas hoje toda essa região central está vazia dessa gente, do popular, da espontaneidade. O que há de gente do povo aí está a serviço do turismo em atividades programadas. Pode-se dizer que não se encontra nesse cenário da velha Bahia com nenhum personagem de Jorge Amado: Joões Pinguelinho, Pés-de-Vento, Vadinhos, Miguéis Arcanjos ...

Nenhuma democracia em relação ao povo em Salvador, mas o oposto, rígida hierarquização de seus espaços. Ampla aplicação das penas de exílio e ex­clusão. Ordenar a cidade! Desfavelizar festas de largo! Padronizar barracas! Fazer do Carnaval um grande negócio! Eis a nova onda, a ideologia administrativa deste tempo de barganha política para a manutenção absoluta do poder. Retirar ambulantes, acabar com a economia informal, impedir que os mais pobres tomem iniciativas e ocupem espaços estratégicos na cidade para o exercício de suas atividades, e tudo isso numa época de desemprego agudo, de dificuldades de sobrevivência.

Se for tomado o exemplo do carnaval vai-se poder visualizar com muita nitidez essa prática de exploração da cidade pelos agentes econômicos dominantes. A mais dura fiscalização em relação aos ambulantes e seus negócios de ocasião. A mais despudorada entrega do espaço urbano aos agentes econômicos da indústria cultural. A mais ostensiva reserva de espaço para as classes mais favorecidas usufruírem a festa com conforto, segurança e exclu­sividade social.

O povo e nem mesmo as categorias privilegiadas da sociedade têm acesso à administração municipal, no sentido de participação em discussões de pro­jetos polêmicos. A cidade serve ao poder, à manutenção do poder de grupos políticos e estes a servirem aos interesses econômicos de agentes sociais dominantes. Por todas essas razões Salvador está se amesquinhando, maltra­tando cada vez mais seu povo sofrido, e como já não se pode mais fazer do sofrimento uma virtude, Salvador submerge na violência, no desrespeito, na hostilidade, na indiferença, na malandragem de toda ordem. Os dados esta­tísticos oficiais de assaltos a ônibus urbanos são contundentes: em seis meses do ano de 1999 mais de 1.100 ocorrências; neste mesmo período, 113 assas­sinatos, a maioria absoluta deles envolvendo jovens nos bairros populares.

Já não se tem o cidadão de Salvador, a não ser aquele que recebe o gracioso título dado pela Câmara de Vereadores. O soteropolitano, o morador da Cidade, está desgraçadamente entregue às suas possibilidades pessoais, uma vez que, se não tem condições de apropriar-se da cidade, é obrigado a viver na Cidade apropriada pelos outros e obrigado a uma humilhante submissão à ordem cotidiana de dificuldades que transforma a vida em luta, a difícil luta para ser feliz de quando em vez.

Somos herdeiros da diferença, que é a nossa origem: o branco colonizador, índios e negros escravos; destes, os índios foram condenados à extinção e a memória que temos deles é a romântica simbolização da brasilidade quando da guerra da Independência da Bahia: o caboclo. Homenagem a um povo que já não existia, senão como remanescente decadente de um genocídio progra­mado - puro romantismo ingênuo. Os negros, sobreviventes da escravidão, em conflitos e negociações, preservaram uma herança cultural de riquíssima interpenetração cultural, mas que ressalta a tradição afro-brasileira e a toma a própria cultura da Bahia, da cidade do Salvador e do Recôncavo.

CONCLUSÃO
Esse lado irônico dessa longa história, essa luta homeopática para sobreviver e fazer aflorar os modos de ser de um povo submetido à mais extrema dominação. A cultura afro-brasileira infiltrou-se na alma de todos, mesmo daqueles que a repudiam e assim o fazem porque a reconhecem, porque ela era a própria intimidade da vida cotidiana, como bem analisou Gilberto Freyre. Essa cultura foi inconscientemente sugada com o leite da ama preta mamado pela criancinha branca; foi engolida com a comida preparada pelas negras da cozinha branca; estava nos chás que aplacavam dores e incômodos intestinais; na anestesia das dores dos seios, do parto; no acalanto, no fechar de corpos fragilizados, no afastamento de medos, mas também no medo da força dos poderes dos feiticeiros, dos pais e mães-de-santo que tanto sabiam do mundo e dos mistérios do sobrenatural. Essa cultura era transmitida como se transmite a própria vida, dos mais velhos aos mais novos, em ritos de aprendizado, de convivência, de formação existencial. Mas era também a cultura da maioria, dos negros e mulatos, predominantes na população de Salvador até os dias atuais, quase a totalidade de seu contingente demográfico.

É essa cultura a marca da Bahia. É essa cultura que alimenta a indústria cultural e que faz da Bahia um centro produtor de cultura. O reconhecimento dessa cultura é visível, pois estão os orixás a proteger o grande espaço aberto do Edifício dos Correios, no elegante bairro da Pituba; estão também sobre as águas do Dique do Tororó; são eles a própria mata e as cachoeiras do Parque São Bartolomeu; já não estão circunscritos aos terreiros de candom­blé e nem estes precisam mais viver na clandestinidade ou obrigados a pedir permissão à polícia para bater os seus tambores sagrados (até 1975, os candomblés eram obrigados a pedir permissão para bater; no passado, sobretudo nas décadas de 1930 e 190, foram constantemente perseguidos, violados pela polícia. Hoje os candomblés são respeitados e prestigiados, alguns de seus pais e mães-de-santo tornaram-se personalidades ilustres, oficialmente reconhecidas e de obrigatória visita de personagens também ilustres que visitam a cidade).

Essa cultura multifacetada produziu também o fenômeno novo no quadro da religiosidade brasileira: o candomblé e a umbanda. O primeiro, com pouco mais de cem anos, a segunda, dos anos 30 deste século, e se espalham e se legitimam no Brasil, na América Latina e adentram os Estados Unidos, com a tendência de tornarem-se universais. São lugares e ambientes de socialização, de uma sociabilidade específica de múltiplas dimensões do sagrado e do profano. Desses terreiros e centros essa cultura transborda para a vida cotidiana em aspectos também específicos, como um duplo que pode viver a dimensão do cotidiano quando deixa a dimensão do espetáculo, do rito, da festa.

Porém, Salvador é também lusitana, mas sobretudo americanizada em suas práticas mais comuns: meios de comunicação, em especial o telefone; shopping centers, automação bancária, SACs (serviços de atendimento ao cidadão), clínicas e hospitais, hotéis e modos de vestir e agir também copiam o padrão norte-americano; a difusão da língua inglesa, o turismo internaci­onal. Salvador, sem a mesma importância do passado, continua a ser um lugar no mundo, tal como diz o verso: “Europa, França e Bahia”.

Ao completar 450 Salvador é uma cidade coquete, não mais daquele coqueteria tradicional de cores e odores fortes, de músicas melancólicas, do romantismo nostálgico e trágico, mas também da alegria esfuziante, da sensualidade de seu samba de roda, das safadezas de gestos, palavras, comidas e bebidas. Não mais a cidade das sombras, de luzes pálidas, nem mesmo a da sensu­alidade desabusada das mulheres públicas, nem a dos boêmios. É hoje a cidade do espetáculo, dos gestos estruturados, da socialização organizada, dos pagodes, das bandas, dos blocos, dos afoxés, da Timbalada.

Cada pessoa é uma representação em si mesma desses elementos simbólicos que caracterizam Salvador, a baianidade. O ethos baiano, amparado na sedu­ção. Salvador é para ser vista e vive se representando. É simultaneamente um lugar para si e para os outros, é um dar-se permanente, como a vaidosa Oxum, sensual e sedutora, mas enérgica e personalista. Como Iemanjá, é a grande mãe negra, a África mítica que só existe aqui, terra dos africanos da diáspora, terra de seus descendentes, África sentimental, território da ancestralidade, lugar de convívio do povo com os seus deuses e eles com o seu povo.

Salvador é tempo condensado, é lugar de encontro para o mundo e uma promessa de tolerância para o convívio das diferenças. Mais do que tudo o que se vê e que se pode tocar, Salvador é cheiro, é balbucio, é movimento sutil a modificar todas as formas que se querem rígidas. A personalidade de Salvador é fortíssima, sua cultura digere as demais culturas que aqui chegam e seu tempero predomina. Lugar de diferenças, mas a cidade a quem o futuro é promessa não superou a intolerância do racismo étnico e social do autoritarismo baiano compenetrado.

A cidade tornou-se mais universal, para si mesma e para os outros, é lugar de turismo e produtora de cultura. Vive o conflito de preservar suas tradições e torna-se mercadoria para consumidores de pouca imaginação e cuidado; e, nesse movimento, vez por outra se descaracteriza para fazer o gosto do freguês, ou dança uma mesma dança e canta uma mesma cantiga até a exaustão; ou faz movimentos bruscos e recria, trazendo suas raízes poderosas de lokos imensos, poderosa força que gera inovação e, novamente, algo novo e diferente emerge. Mas, de todas essas invenções e criações, a mais importante é a do aprimoramento do processo civilizador, o da dimensão ética das relações sociais entre as diferenças culturais, de tantas frentes aber­tas de luta contra o provincianismo político e cultural institucionalizados.

A cidade do Salvador é a promessa de ser a da salvação das almas, mas precisa ser, antes disso, a cidade da existência das pessoas no curso da vida cotidiana. A cidade bonita precisa contagiar a cidade feia e desumana de tantos milhares de habitantes pobres. A cidade do Axé precisa cuidar mais de sua gente, não ser gentil apenas com quem é de fora, em rituais cerimo­niosos de bem receber, enquanto aos daqui ordena – “sirva-se, você é de casa”, sem brincar de cerimônia íntima, tão delicada, tão terna, de quem se dá com gosto. Salvador é ainda promessa em seus 450 anos e a sua história é, verdadeira­mente, a das “cousas que estão por vir” (por Gey Espinheira).*
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Foto: Lobato por Sílvio Benevides.

São Salvador da Bahia – o vídeo

Vídeo produzido para prestar uma homenagem aos 460 anos da cidade do São Salvador da Bahia.
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segunda-feira, 23 de março de 2009

Impressões afirmativas

A Bahia é um Estado conhecido, entre outras coisas, por suas belezas naturais e pela tão decantada alegria de sua gente, que em versos de artistas como o Ari Barroso, por exemplo, acabaria recebendo o mítico título de “terra da felicidade”. Mas qual seria a cara dessa gente baiana?

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca de 79 % da população baiana é formada por mestiços, descendentes, particularmente, dos negros africanos. Basta andarmos pelas ruas da capital, Salvador, para constatarmos empiricamente esse dado.

Trazidos para movimentar a empresa açucareira colonial, os negros que aos milhares aportaram como escravos em terras brasileiras, e, sobretudo, baianas, são comumente identificados como Sudaneses e Bantos. Os primeiros procederam, principalmente, da região costeira do Golfo da Guiné, na África Ocidental. Destes, os grupos que maior influência exerceram na formação étnico-cultural do povo baiano foram os Nagôs ou Iorubas, oriundos da Nigéria, e os Gegês, originários do Daomé, atual República do Benin. Do nordeste africano (Sudão ocidental) vieram os nobres e intelectuais negros mulçumanos, que na Bahia ficaram conhecidos como Malês, principais introdutores da fé islâmica no Brasil. Já os Bantos ou Bantus procederam das regiões onde atualmente se localizam os Estados africanos de Angola, Congo e Moçambique.

A importação de escravos para a Bahia era de grande monta. Por volta de 1718, de acordo com as observações feitas no diário do navegador francês La Barbinais, quando em visita ao Brasil, somente pelo porto de Salvador entravam cerca de 25.000 escravos por ano, que eram distribuídos entre os diversos engenhos de açúcar do recôncavo baiano. Ainda segundo La Barbinais, entre os soteropolitanos, nesse mesmo período, habitavam mais de 15.000 cativos.

Com um contingente tão numeroso de negros africanos nos primórdios de sua formação histórico-social, não é de se estranhar que atualmente a Bahia, e, particularmente, Salvador e a região do recôncavo, possua uma elevada taxa populacional constituída por afrodescendentes, como comprovam os dados do IBGE.

Todavia, embora a população baiana seja predominantemente descendente de africanos, os negros, ainda assim, representam uma minoria social, visto que muitos dos seus direitos sociais e/ou civis lhes são, de alguma forma, negados, seja pelo desrespeito à lei ou pelo simples fato de os próprios negros a desconhecerem, ou pior que isso, aceitarem a violação destes direitos, por conta da sua baixa auto-estima. A explicação mais provável para entendermos as causas desse fenômeno estaria no nosso processo histórico.

Como já foi dito anteriormente, os negros foram trazidos ao Brasil para movimentar a chamada empresa agrícola colonial, isto é, para trabalhar em regime de escravidão nos grandes latifúndios onde a cana-de-açúcar era cultivada. Na condição de escravos, os negros não tinham direitos, apenas deveres e obrigações. Faziam parte de um sistema produtivo que os igualava a uma mera mercadoria, necessária ao bom funcionamento desse sistema, porém, facilmente substituível caso começasse a dar problemas. Com a abolição do regime escravista os negros saíram da qualidade de escravos e foram abandonados à própria sorte, ou seja, foram condenados à exclusão social.

Depois de muito trabalhar para construir o país tanto do ponto de vista econômico quanto do ponto de vista social, histórico e cultural, o Estado brasileiro retribuiu os negros com a exclusão que perdura até os presentes dias. Sabe-se que os negros brasileiros têm menos acesso à educação e menos tempo de estudo que os brancos ou não negros. Por conta disso, no mercado de trabalho ocupam os cargos mais subalternos e, conseqüentemente, acabam recebendo salários menores, fazendo com que os negros sejam também os mais pobres. Não é muito comum, por exemplo, vermos negros ocupando os mais elevados cargos das empresas públicas ou privadas, da indústria, do comércio, das universidades ou das Forças Armadas. Isso é decorrência direta do papel que o negro ocupou e ocupa na sociedade brasileira. Antes o de escravo, agora o de excluído.

As desigualdades sociais existentes no Brasil foram sendo acumuladas ao longo do processo de nossa formação histórica. Para reverter esse quadro é preciso garantir igualdade de oportunidades a todos os cidadãos brasileiros, sem exceção. E para isso efetivamente ocorrer, faz-se necessário colocar em prática, políticas públicas de ações afirmativas que visem não somente resgatar a dívida social que o Estado brasileiro tem em relação a certos grupos, a exemplo dos negros e índios, mas também coibir o preconceito e a intolerância de que são alvo as mulheres, os portadores de deficiência física e os homossexuais, uma vez que a meta de tais políticas é incluir para reforçar a união nacional. Só assim a Bahia e o Brasil poderão se tornar, de fato, a terra da felicidade (por Sílvio Benevides).
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Imagem: Oxalá-Oxaguiã, foto de Frederico Mendes

segunda-feira, 16 de março de 2009

Ou vai ou racha

A atual crise financeira nos mercados mundiais está obrigando aos arautos do neoliberalismo a rever seus valores. O que estaria acontecendo? Estariam esses arautos sob a influência de algum caboclo ou do espírito santo. Nem uma coisa, nem outra. A crise revelou os limites do mercado e a necessidade urgente de seu controle. Deixá-lo seguir desabaladamente sem nenhum ou pouco controle tem se revelado uma verdadeira tragédia anunciada. Para refletir sobre isso, trouxe para esse espaço o texto abaixo retirado do sítio do jornal Último Segundo.

Obama quer bloquear o pagamento de bônus aos dirigentes da AIG
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Obama classificou nesta segunda-feira como “degradante” o fato de a seguradora AIG ter pago US$ 165 milhões em bônus a diretores da companhia. O presidente icumbiu o secretário do Tesouro, Timothy Geithner, a explorar todas as formas legais para bloquear o pagamento.

Em declarações na Casa Branca por ocasião da apresentação de um plano para ajudar as pequenas empresas, Obama afirmou que esses bônus, concedidos depois que AIG pediu ajuda ao governo para sobreviver, “ressalta a necessidade de uma reforma exaustiva no sistema regulador financeiro”.

Edward Liddy, executivo-chefe da AIG, considerou o pagamento dos bônus “desagradável”, mas disse que a seguradora é obrigada por contrato a fazê-los.

“Essa é uma corporação que se encontra em dificuldades financeiras devido à imprudência e à ganância”, disse Obama. “Sob tais circunstâncias, é difícil entender como operadores de derivativos justificam qualquer tipo de bônus, e muito menos US$ 165 milhões em pagamentos extras. Como eles justificam esse escândalo para os contribuintes que estão mantendo a empresa viva?”, questionou o presidente.

“Nos últimos seis meses, a AIG recebeu somas substanciais do Tesouro dos EUA”, diz a declaração de Obama. “Pedi ao secretário Geithner para perseguir todos os modos legais para bloquear esses bônus”, diz a declaração. “Não é apenas uma questão de dólares e centavos. É sobre nossos valores fundamentais”, disse o presidente norte-americano. “Em todo o país há pessoas que trabalham duro e cumprem suas responsabilidades todos os dias, sem o benefício de pacotes de socorro do governo ou bônus multimilionários. E todas as pessoas querem que todos, na economia real, no mercado financeiro e em Washington, joguem sob as mesmas regras” (Fonte: Último Segundo)
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É preciso estar atento e forte

Recebi o artigo abaixo por e-mail. Seu autor, um pesquisador dos movimentos juvenis, especialmente do movimento estudantil, vinculado à Universidade Federal de Pernambuco, tece sérias críticas à União Nacional dos Estudantes (UNE) e sua suposta íntima relação com as estruturas políticas do atual governo. Não é de hoje que governantes ora tentam neutralizar líderes de movimentos sociais, ora tentam cooptá-los, o que, em última instância, nada mais é do que uma maneira sutil de neutralizá-los. Com o governo Lula não poderia deixar de ser diferente. O que poderia haver de errado, então, com essa suposta relação UNE-Governo? Duas coisas: a primeira diz respeito aos recursos públicos destinados à reconstrução histórica de uma entidade que representa apenas um aspecto das lutas estudantis e juvenis. A UNE foi muito importante em outras décadas, mas hoje, penso que ela precisa rever seu papel na sociedade. O passado é importante, mas viver preso a ele indefinidamente não é saudável para ninguém. Dinheiro público é coisa muito séria e precisa ser rigorosamente fiscalizado e aqueles que dele se utilizam precisam sim explicar minuciosamente e exaustivamente para a sociedade onde tais recursos são aplicados. Segundo, deixar-se cooptar por governos pode significar o fim dos movimentos sociais, que precisam ser independentes dessas estruturas para que seu grito de protesto e indignação não seja abafado. Digo isso porque está na hora de os estudantes retomarem seu lugar na história do presente e do futuro. Reflitamos sobre essas questões (por Sílvio Benevides).

O joio e o trigo

O Estado Brasileiro está desperdiçando recursos públicos com a UNE, em nome de uma reconstituição histórica, que não é feita, para uma entidade que teve uma importância inquestionável no passado, mas que hoje é mesquinha, silenciosa, despreparada para debater as questões nacionais, implacável com os movimentos da juventude e totalmente alheia ao conjunto de oprimidos e oprimidas de nosso País.

Num artigo da presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE) intitulado “Ontem e hoje: UNE em defesa da educação e contra a criminalização dos movimentos sociais”, postado no site da entidade, quando afirmou que “nesta semana os movimentos sociais estão sofrendo um verdadeiro ataque midiático, com pouca fundamentação, muita especulação e, especialmente, uma forte carga de intenção em desacreditar os lutadores e lutadoras do povo brasileiro”, a intenção é fazer acreditar que UNE, MST e centrais Sindicais estão em pé de igualdade na defesa dos interesses dos seus representados, na defesa da democracia e da justiça social e no tom das críticas recebidas da imprensa. Qual luta a UNE empreendeu nos últimos seis anos em defesa do povo brasileiro? A luta tem sido intransigente na defesa dos interesses pessoais do grupo majoritário que coordena a UNE (leia-se PC do B). E não é em benefício do povo brasileiro. A UNE deveria estar comemorando por existir pouca ação do Poder Judiciário para reaver os recursos públicos utilizados de forma tão mesquinha pela entidade. Ou por sair apenas uma crítica ali, uma pequena matéria acolá e haver a insatisfação silenciosa de milhões de brasileiros/as que estão pagando uma conta tão alta para beneficiar tão poucos.

É notório que o governo Lula está liberando recursos do povo para a UNE sem critérios públicos, mas pessoais e partidários. Por qual motivo que outras entidades estudantis, grupos juvenis ou projetos de jovens populares nada recebem? Criticar a imprensa é o modo mais mesquinho e covarde, principalmente se apoiando na luta do MST que, com todos os seus problemas e dificuldades, não se vendeu ou abandonou por completo as suas bandeiras históricas e a sua base de representados, como a UNE fez nos últimos anos. Vamos separar o joio do trigo (por Otávio Luiz Machado).
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Imagem retirada da internet. Autoria não encontrada.

segunda-feira, 9 de março de 2009

Enquanto os homens exercem seus podres poderes...

Na última semana recebi de um amigo uma mensagem eletrônica divulgando o documentário Erased, wipe off the map (vide trecho abaixo) sobre a ofensiva bélica de Israel contra Gaza iniciada em dezembro passado e terminada (?) em janeiro deste ano. Não quero saber quem tem razão ou quem não tem nessa história torpe (guerras são sempre torpes). O fato é que após a retirada das tropas israelenses da Faixa de Gaza o saldo final (?) do conflito, de acordo com dados do Ministério da Saúde local e da ONU, é de mais de 1.300 pessoas assassinadas em 22 dias de ataques. Destas, ao menos 300 eram crianças. Os feridos ultrapassam a marca de 5.500. A infra-estrutura da região que já era precária piorou ainda mais. Com isso, o risco de epidemias é uma possibilidade bastante provável. Sem falar nas escolas, hospitais, postos de saúde e tantos outros serviços básicos que viraram escombros por conta dos bombardeios. Segundo informações do Le monde Diplomatique Brasil (n.19 – Fev. 2009) “dois terços das vítimas da ofensiva israelense não eram combatentes [do Hamas] e um terço tinha menos de 18 anos”. Navegando pela rede encontrei dois textos que quero compartilhar com os leitores daqui. O primeiro é de autoria do José Saramago. O segundo, do jornalista Gustavo Chacra. A proposta em trazer os textos mencionados assim como o trecho do documentário para esse espaço é estimular a reflexão sobre esse tema, do qual não podemos nos furtar. Afinal, enquanto os homens exercem seus podres poderes, o mundo segue em descontrole. E é justamente esse descontrole que gera todo tipo de violação de direitos, intolerância, devastação, horror e desrespeito que a todos ameaça, não importando o quão distantes dos conflitos nós estejamos (por Sílvio Benevides).
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GAZA
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A sigla ONU, toda a gente o sabe, significa Organização das Nações Unidas, isto é, à luz da realidade, nada ou muito pouco. Que o digam os palestinos de Gaza a quem se lhes estão esgotando os alimentos, ou que se esgotaram já, porque assim o impôs o bloqueio israelita, decidido, pelos vistos, a condenar à fome as 750 mil pessoas ali registradas como refugiados. Nem pão tem já, a farinha acabou, e o azeite, as lentilhas e o açúcar vão pelo mesmo caminho. Desde o dia 9 de Dezembro os caminhões da agência das Nações Unidas, carregados de alimentos, aguardam que o exército israelita lhes permita a entrada na faixa de Gaza, uma autorização uma vez mais negada ou que será retardada até ao último desespero e à última exasperação dos palestinos famintos. Nações Unidas? Unidas? Contando com a cumplicidade ou a cobardia internacional, Israel ri-se de recomendações, decisões e protestos, faz o que entende, quando o entende e como o entende. Vai ao ponto de impedir a entrada de livros e instrumentos musicais como se se tratasse de produtos que iriam pôr em risco a segurança de Israel. Se o ridículo matasse não restaria de pé um único político ou um único soldado israelita, esses especialistas em crueldade, esses doutorados em desprezo que olham o mundo do alto da insolência que é a base da sua educação. Compreendemos melhor o deus bíblico quando conhecemos os seus seguidores. Jeová, ou Javé, ou como se lhe chame, é um deus rancoroso e feroz que os israelitas mantêm permanentemente atualizado (por José Saramago).
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SUL DO LÍBANO TEVE DESTRUIÇÃO MAIOR, MAS FAIXA DE GAZA É MAIS TRISTE
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Visitei o sul do Líbano depois da guerra envolvendo Hezbollah e Israel, em 2006, e a Faixa de Gaza, após o conflito dos israelenses contra o Hamas. O território libanês sofreu maior destruição, mas o cenário na área palestina é mais triste. Os moradores das regiões controladas pelo Hezbollah puderam fugir para Beirute, Sidon e mesmo para a Síria. Foram acolhidos. A ajuda humanitária já estava no Líbano, podia entrar através da fronteira com o território sírio ou mesmo pelo mar. Muitos civis morreram, é verdade. Mas a população pôde viver por um bom tempo longe dos destroços e dos corpos não recolhidos, além de ter o apoio imediato do Qatar, do governo libanês e do próprio Hezbollah para reconstruir as suas cidades. Não sofriam com o bloqueio. Eram pessoas que tinham para onde ir.

Gaza é bem maior do que as vilas libanesas, como Bint Jbeil, onde não vi uma construção sequer de pé. Apesar da enorme devastação no território palestino, há áreas que não sofreram tanto com os bombardeios. Mas os moradores estiveram o tempo todo debaixo das bombas, no meio do tiroteio, sem ter para onde fugir e tampouco em condições de receber ajuda. Se em Qana havia dezenas de jornalistas e fotógrafos para registrar o ataque que matou cerca de 30 libaneses, nenhum olhar pôde relatar para o mundo como foi o ataque israelense que matou dezenas de uma mesma família em Zeitoun. Chegamos uma semana atrasados. Vimos as galinhas mortas, mas não os corpos de palestinos que morreram por não ter como deixar a prisão controlada pelo Hamas onde vivem.

Lembro que, no sul do Líbano, Israel tampouco abriu a sua fronteira. E ninguém pediu. Primeiro porque os israelenses não têm qualquer obrigação no sul do Líbano, que é parte de um país independente. Com Gaza, Israel tem, pois impede o uso do mar e do espaço aéreo – sei que é por questões de segurança, mas isso não elimina a responsabilidade israelense. Em segundo lugar, porque a Síria, ao contrário do Egito, abriu as suas portas. Assim como fez com os refugiados iraquianos, recebidos com todo o apoio do regime de Bashar Al Assad. Hosni Mubarak lacrou Rafah (por Gustavo Chacra).
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RISCADA DO MAPA
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O documentário – Em dezembro de 2008 o movimento Free Gaza saiu de Chipre em direção à Palestina. Nosso objetivo era romper o bloqueio israelense na Faixa de Gaza. Fomos os últimos estrangeiros que conseguiram entrar e ficar em Gaza. Nos vimos diante de algo que ninguém esperava encontrar (Fonte: Vimeo)

TÍTULO: ERASED, WIPE OFF THE MAP
DIREÇÃO: ALBERTO ARCE - MIGUEL LLORENS
MONTAGEM: OLAF GONZÁLEZ
PRODUÇÃO EXECUTIVA: CHRISTIAN SEBASTIÁN - JOSÉ CARLOS DÍAZ.
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Erased-Wiped off the map from C.I. COMUNICACIÓN on Vimeo.

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Imagem retirada da internet - autoria não encontrada.

segunda-feira, 2 de março de 2009

Da série CURIOSIDADES URBANAS

A Cruz do Pascoal

Localizada no Centro Histórico de Salvador, no bairro do Santo Antônio Além do Carmo, em um pequeno largo na entrada da Rua Direita de Santo Antônio, a Cruz do Pascoal é um oratório público de sete metros de altura erguido em 1743 pelo comerciante lisboense, Sr. Pascoal Marques de Almeida, em homenagem a Nossa Senhora do Pilar como retribuição a uma graça alcançada. O monumento possui base em cantaria de arenito, sobre a qual se sustenta uma coluna toscana construída em alvenaria e revestida de azulejos do século XVIII. Na parte superior da coluna de arenito encontra-se o nicho de Nossa Senhora do Pilar, inspirado nas torres sineiras das igrejas baianas de estilo barroco, em cujas quinas estão aplicadas pequenas colunas com terminação em esferas de louça. Por cima do nicho, uma pequena cruz. Ao redor de todo o marco há um gradil de ferro colocado em 1874.

Consta que o local onde se encontra a Cruz do Pascoal já era um ponto de reza antes mesmo da construção do marco. Com a sua edificação o local virou um ponto de peregrinação para onde levas de pessoas se deslocavam apenas para rezar. De acordo com a Fundação Gregório de Matos, uma das primeiras referências à Cruz do Pascoal é de Afrânio Peixoto: “É um dos monumentos mais expressivos e pitorescos da Bahia. A este recanto pacífico da Bahia se visita para ver este monumento de fé ingênua e pitoresca expressão. É um símbolo dessa fé que, no meio da vida nos interrompe constantemente, no caminho, lembrando dever e destino, numa mudez pacífica que não deixa de acordar memórias e obrigações. A gente se benze, mas não esquece a Cruz do Pascoal” (In: Fundação Gregório de Matos).

Sobre o Sr. Pascoal Marques de Almeida não se sabe muito. Uma das poucas referências a ele foi encontrada em artigo de Marina Massimi intitulado “Sermões Quaresmais e conhecimento de si mesmo”. Diz o texto: “[...] o culto à Nossa Senhora da Porta do Céu é importado de Portugal, sendo porém já praticado na Igreja oriental, visando propiciar a ajuda de Maria para alcançar a entrada na Porta do Paraíso, mas também para auxiliar na compra ou na locação de imóveis. Relata Megale que no Brasil, o culto iniciou-se na Igreja do Carmo em Salvador, “este título mariano já existia em Portugal, pois frei Agostinho de Santa Maria refere-se à milagrosa imagem deste orago de Maria, muito querida pela população de Lisboa. Dizia ele que o príncipe D. João de Candia, mais conhecido como “Príncipe Negro”, por ser da ilha de Ceilão, edificou um convento na capital portuguesa para os irmãos franciscanos enfermos, dedicando sua igreja a Nossa Senhora das Portas do Céu, “para obrigar a Rainha dele lhe conceder o poder de entrar por suas portas. (...) De Portugal, este original título de Maria passou para o Brasil, trazido, segundo dizem, por Pascoal Marques de Almeida”.

Outra referência ao lisboense Pascoal Marques de Almeida pode ser encontrada na tese de doutoramento de André Luiz Tavares Pereira (p.279): “Nossa Senhora da Porta do céu, Porta do Paraíso ou Chave do Reino de Cristo é devoção fundada e cultivada pelos cristãos orientais. Chega ao Brasil por intermédio de um português identificado como Pascoal Marques de Almeida” (por Sílvio Benevides).
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Foto: Sílvio Benevides