A proposta do Salvador na sola do pé é fazer o leitor refletir sobre a realidade ao nosso redor. No que tange ao ensino superior, em 2008 foi implementado pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) o projeto Universidade Nova. Se o que foi implementado é de fato novo, deixemos que a história julgue. Mas não é isso que vem ao caso no momento. Para criticar a chamada Universidade Nova é necessário conhecer suas propostas. Por essa razão, reproduzo abaixo a saudação de Ano Novo do Reitor da UFBA, Prof. Naomar Almeida Filho. Façamos uma reflexão a partir de suas palavras. Se a Universidade Nova é nova, de fato, ainda não é possível saber. Porém, que ela precisa ser nova, não resta a menor dúvida.
AOS COMPANHEIROS DA UFBAA partir de um fato relevante, compartilhamos com vocês algumas reflexões sobre o que pode significar, para a nossa UFBA, o ano que há pouco se encerrou.
Em 2008, a Bahia recebeu a visita de alguns importantes intelectuais contemporâneos. Boaventura Sousa Santos, o celebrado sociólogo português; Alain Coulon, pioneiro dos estudos sobre reforma universitária na França; Angela Davis, militante e intelectual feminista norte-americana; Edgard Morin, filósofo da complexidade; Michel Maffesoli, crítico da pós-modernidade; Antonio Negri, cientista político autor de Império e Multidão. Tivemos a honra de recebê-los, em momentos distintos, na Reitoria da UFBA. Todos muito simpáticos e respeitosos.
Com motivações diversas, estavam interessados em conhecer o projeto Universidade Nova, movimento de renovação da educação superior brasileira que começou na Bahia. Foram informados que o projeto ganhou esse nome por reverência a movimentos de ruptura com o estabelecido, também iniciados por baianos, principalmente a Escola Nova de Anísio Teixeira, bem como Música Nova (Ernst Widmer), Cinema Novo (Glauber Rocha), Bossa Nova (João Gilberto), Geografia Nova (Milton Santos). E que, com apoio do governo federal, da comunidade universitária e da sociedade baiana, temos superado obstáculos e resistências de conservadores de toda ordem. Conversamos, sobretudo, sobre como realizamos duas fases importantes de implantação do projeto.
Na primeira fase, mesmo sem ter uma idéia clara da viabilidade política da proposta nem dos seus desdobramentos posteriores, lutamos para abrir as portas da instituição aos dela excluídos por décadas de elitismo e alienação. Para tanto, implantamos um programa de ações afirmativas que serviu de modelo para o projeto de lei que hoje tramita, em fase conclusiva, no Congresso Nacional. O sucesso do programa, que incluiu um regime de cotas para alunos de escola pública, com recorte étnico-racial, permitiu mudar o perfil do alunado da UFBA. Há cinco anos, 70 % dos estudantes da UFBA tinham concluído o ensino médio em escolas particulares; hoje, mais da metade são provenientes de escolas públicas. Não houve aumento de evasão nem queda da qualidade do ensino. Assim, por um lado, recuperamos algo da missão social da universidade, mas, por outro lado, assumimos enorme desafio: como efetivamente renovar a instituição educadora de modo a não nos tornarmos meros cooptadores de segmentos sociais antes marginalizados?
Na segunda fase, dedicamo-nos a ampliar oferta de vagas e reestruturar a arquitetura curricular da universidade, com vistas a implantar um sistema de ciclos, inicialmente articulados à formação convencional. O primeiro ciclo compreende uma modalidade nova de graduação, denominada Bacharelado Interdisciplinar, com formação geral em artes, humanidades, saúde e ciência & tecnologia. O segundo ciclo inclui cursos de formação profissional, aproveitando a formação específica do primeiro ciclo. O terceiro ciclo complementa a formação acadêmica e profissional com mestrados e doutorados integrados. Este ano, aumentamos a oferta de vagas no vestibular como nunca: de 4.200 para quase 7.000 vagas. Em 2008, realizamos concursos para 200 novos professores; em 2009, serão 300 concursos. Para viabilizar a recepção dos quase mil alunos de bacharelados interdisciplinares, inauguramos uma nova unidade acadêmica, o Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos.
Fizemos ver aos visitantes que, de modos distintos, muito devíamos a cada um deles. Do ponto de vista epistemológico, a ênfase na interdisciplinaridade em nosso projeto revela clara inspiração na obra de Morin e Boaventura. A renovação nos processos formativos recupera Anísio Teixeira e Paulo Freire, incorporando perspectivas pós-culturalistas como as de Coulon e Maffesoli. A construção de rupturas políticas inevitáveis na construção do novo em cenários conservadores encontra respaldo nas análises críticas de Angela Davis e Negri.
Mas também confirmamos que precisávamos do apoio intelectual que eles representam para ousarmos entrar na fase 3, crucial para garantir sustentabilidade à renovação institucional. Esta fase implica enfrentar o desafio de tornar a instituição universitária um efetivo vetor de transformação social. Não basta crescer territorialmente acessível, socialmente inclusiva e pedagogicamente renovada. A maneira mais respeitosa de trazer a universidade para perto do povo é fazendo muito bem o que ela de fato sabe fazer. A universidade pública brasileira poderá colaborar para um projeto de nação quando se revelar academicamente competente e intelectualmente responsável podendo, dessa forma, internacionalizar-se com soberania.
Nesses termos, convidamos os ilustres intelectuais a compor um conselho consultivo internacional do projeto Universidade Nova, destinado a avaliar nossos progressos com rigor crítico e orientar-nos na ousadia da fase 3. Todos aceitaram, com tanto entusiasmo que ficamos intrigados. Morin e Coulon nos explicaram simplesmente, com sincera humildade, que esperam aprender com nossa experiência. Boaventura descreveu os nossos BIs como precursores de uma nova “ecologia dos saberes”.
Talvez quem nos permita melhor entender o significado de tão inesperado e comovente engajamento, mostrando porque a renovação da universidade é uma pauta política por eles valorizada e compartilhada, é Antonio Negri: “Estou convencido que é fundamental tentar sempre novas aberturas, como se aliar a setores da produtivos, como a indústria, diante do que é o parasitismo do sistema financeiro. Só que hoje existe uma outra abertura que precisa existir: a abertura às forças do conhecimento. Não podemos subestimar as forças do conhecimento. Esse é um fato estratégico do desenvolvimento econômico mundial. Pode parecer realista demais, mas não é. Ao contrário, é alta a necessidade de articular projetos sociais com a produção intelectual. O que está acontecendo no século pós-socialista: o trabalho está ficando cada vez menos industrial. Os capitalistas, através das técnicas neoliberais, mobilizaram socialmente a produção. Colocaram a sociedade no trabalho. E são os intelectuais que dão valor à produção. Impõem a possibilidade de mudanças industriais, formam novas elites. O trabalho intelectual é um elemento fundamental que não exclui o capitalismo (por isto que o poder neoliberal se articula). Então é necessário se abrir à força do conhecimento para compor uma novo acúmulo de forças, para produzir novas resistências. Entrar nesse terreno é produzir uma ética do comum. Muitos amigos me indagam dizendo: 'Nossa, mas você não vê quanto miséria tem aqui do seu lado'. É um discurso que dá entender que o trabalho imaterial é algo utópico frente à realidade de miséria. Mas é o contrário. Só esse setor (o intelectual) renova a sociedade e expulsa essa miséria. Não adianta: a aliança com a indústria não vai fazer voltar o pleno emprego. Agora para produzir trabalho intelectual, imaterial, é preciso ser livre. Por isto que o capitalismo bota limite à liberdade hoje, coloca a não-expressão. E a liberdade do trabalho intelectual pode vencer o capitalismo. É necessário organizar o precariado, que são todas as pessoas que trabalham fora da relação salarial, como os trabalhadores dos serviços, dos serviços industriais, os imigrantes, os informáticos etc. Essas são massas que estão se tornando as maiorias. Não é à toa que na França foram às ruas contra os sindicatos. É porque o sindicato ainda sustenta que o emprego é a única solução. E o precariado produz fora da relação salarial, produz na circulação social. Por isso que projetos como a renda universal e a política de cotas se tornam centrais: não é um prêmio, é a base para mobilizar toda a sociedade” (A riqueza dos pobres. Conferência de Nova Iguaçu, em23/10/2005. Disponível em:
http://fabiomalini.wordpress.com/2005/10/23/esquerda-abra-se-ao-precariado/).
Precisamos refletir sobre tudo o que aconteceu nesse ano de 2008, quatro décadas da revolução universitária do Maio de 68, duas décadas da Constituição de 88, bicentenário da UFBA, ano 1 da Universidade Nova. Pensemos sobre o significado deste projeto, que vem sendo construído com inédito grau de consenso e motivação da nossa comunidade acadêmica, culminando com as honrosas visitas registradas neste texto. Será que o interesse, engajamento e vínculo desses prestigiosos intelectuais são sinais de que temos, a partir da universidade, de novo, uma avant-garde na Bahia? Em 1958, nossa universidade teria representado uma vanguarda cultural e artística, rompendo as fronteira da velha província, conforme o registro riseriano. Começando em 2008, a renovação da universidade pode significar uma superação dessa metáfora militar e elitista, nos seus dois sentidos, tanto da noção leninista de vanguarda política de umproletariado mítico quanto de uma nostálgica avant-garde erudita, mas colonizada.
Em suma, a maior contribuição que a UFBA (e qualquer universidade) pode dar ao projeto de transformação política da sociedade brasileira, tornando-a mais justa, humana e solidária, será afirmar-se como uma excelente universidade.
Com votos de Feliz Ano Novo, pleno de realizações, paz e saúde, apresentamos nossas saudações universitárias.