De acordo com o historiador Braz do Amaral, “quando, nas Cortes de Lisboa, se feriu a célebre luta parlamentar de que resultou o rompimento dos representantes brasileiros que se retiraram para Inglaterra, enviaram os deputados baianos uma consulta às câmaras desta província, que é um dos mais notáveis papéis daquela época e que revela a consciência, já possuída pelos baianos em assunto de tal magnitude, que evidência ainda não ter sido a independência um fato que dependesse da aquiescência, ou da ação e do gesto de D. Pedro, como parece indicar o ter sido feita a comemoração, na data centenária desse gesto.
As Câmaras da Bahia se manifestaram por um governo próprio no Brasil, pelo que deram, depois de acordarem nisto, a sua adesão ao príncipe regente, o que foi causa de querer o general português Ignácio Madeira, assim como o partido lusitano, submetê-las pela força. Elas, por seu turno, armaram os cidadãos, constituíram um governo provisório em Cachoeira e iniciaram a guerra contra a metrópole.
Está se vendo em tudo isso ação consciente, independente, partida dos brasileiros, em plena posse de si mesmos e obedecendo às suas próprias inspirações, legislando e resolvendo o que é coisa muito diversa da situação em que os nacionais se encontram na declaração aquiescente do Fico e do incidente do Ypiranga, os quais são falsamente apregoados como os atos decisivos da independência, para justificar a comemoração no Rio e em São Paulo.
Note-se que quando se deu o incidente do Ypiranga já elas, as câmaras da Bahia, se haviam organizado, resistindo às tropas portuguesas, em ato de franca rebeldia, pelo que já era uma coisa real na Bahia ser preferida à morte a não ficar independente.
Conferindo as datas, se verifica ter sido o grito do Ypiranga no 7 de setembro, quando já antes disto se havia dado começo às hostilidades em Cachoeira, no dia 25 de junho e se havia já constituído também na Bahia o governo provisório do Recôncavo, em 17 de agosto, para dirigir a resistência contra as tropas portuguesas, governo composto de deputados eleitos pelas vilas sublevadas da província. Com este governo se entendeu desde junho de 1822 o príncipe regente, muito antes, portanto, do incidente do Ypiranga.
Ninguém pode contestar que o general português Ignácio Madeira, comandante das tropas lusitanas, não fez caso das intimações e dos meios de sedução empregados pelo governo do Rio de Janeiro, para levá-lo a trair o seu juramento e que resistiu a tudo, donde forçosamente se conclui que a independência não estava feita com o dito e o grito citados, tanto que foi preciso enviar um general para comandar os insurrectos independentes, organizar de forma regular as tropas de voluntários que se estavam concentrando no Recôncavo e discipliná-las como convinha.
Tal foi a tarefa do general francês Pedro Labatut, ao qual o mesmo governo do príncipe D. Pedro mandou depois instruções. Nem foi apenas uma pequena luta regional, de somenos importância, a que se feriu na Bahia, como se verifica pelo efetivo da força naval portuguesa nas águas deste porto, assim como pela importância do exército metropolitano, além de tudo mais que consta da correspondência e dos documentos da época. Os independentes repeliram as forças portuguesas no lugar chamado Funil, do que resultou ficar a guarnição da cidade, assim como a esquadra privados dos recursos de boca, até então fornecidos pela região fértil de Nazaré.
Pretendeu Madeira se desembaraçar do abraço fatal que lhe impunham as forças dos rebeldes independentes, cortando o exército atacante na base da península em que está situada a capital e esmagando-o ali, pelo que lançou em 8 de novembro de 1822 as suas colunas de ataque sobre as alturas de Pirajá, sendo elas desbaratadas, com perdas consideráveis. Em 7 de janeiro de 1823, a esquadra portuguesa, incomodada pela ação de uma flotilha de barcos que os baianos, haviam organizado para esfaimar a guarnição da cidade, tentou um desembarque na ilha de Itaparica e foi repelida.
Tanto era uma questão de vida ou de morte a guerra da independência na Bahia, e assim o entenderam todos, tanto daqui dependia a sorte da nascente nacionalidade que de vários pontos marcharam brasileiros, ao apelo do governo do príncipe D. Pedro, para ajudar os baianos no grande prélio.
Pernambucanos, fluminenses e mineiros vieram compartir os perigos, sacrifícios e esforços que os baianos faziam pela causa da independência, distinguindo-se os pernambucanos pelo seu extremo valor.
O exército pacificador, nome que havia tomado o dos revoltosos baianos, tinha a força de 10.148 homens, com os quais fez o assédio da cidade, o qual durou nove meses, fora a guarnição nos pontos estratégicos de Itaparica, os quais ocupavam 3.257 praças, ao passo que a esquadrilha dos barcos baianos que impedia a chegada de vitualhas ao exército português era tripulada por 710 marinheiros.
Quando, em maio de 1823, a esquadra de Lord Cochrane surgiu na costa da Bahia, tomando para base das suas operações o porto do Morro ou ilha Tinharé, o efetivo da força naval dos brasileiros, aumentou, sendo, porém sempre inferior a dos portugueses, que tinham vinte navios e mais uma flotilha de canhoneiras, opondo ao inimigo 494 bocas de fogo e 5.000 marinheiros.
Quanto ao exército português ele constava de uma força respeitável de cavalaria, da Legião Constitucional Lusitana, composta de infantaria e uma companhia de artilharia, e vários batalhões de infantaria, uma brigada de artilharia, uma legião de caçadores e os batalhões 2,3,4 e 5 de segunda linha. Este exército precisou, durante o cerco, além das enfermarias que já tinha transformar em hospitais o convento dos Agostinhos à Palma, parte do de S. Francisco e a grande casa de João de Freitas.
Quanto ao exército pacificador, ainda era pior a situação, porque investia e atacava, não tendo equipamento de campanha, pelo que, não somente perdia mais gente nos combates, como tinha uma quantidade espantosa de doentes, principalmente vítimas de impaludismo e das intempéries, as que estavam expostos os soldados, do que resultava uma enorme quantidade de baixa aos hospitais, fatos que indicam a importância das operações dos dois exércitos e os seus sofrimentos.
A fome acompanhou a guerra e o general sitiado que, à princípio, havia proibido a saída das bocas inúteis, se viu obrigado a permiti-la depois. Basta dizer que da segunda vez em que tal permissão se deu, somente em 18 dias, de 10 a 28 de maio saíram da cidade 9.274 pessoas, registradas, fora as que fugiram, escapando ao registro.
Esta população, pela maior parte sem abrigo, faminta e coberta de andrajos, vagou entre os dois exércitos, acuada pela falta de alimentação que era também um dos flagelos das tropas na campanha, e boa parte dela pereceu de miséria pelos matos, à beira dos caminhos e dos riachos e lagoas.
Por três vezes o exército dos independentes avançou sobre a cidade, para acabar a guerra por um assalto geral, mas foram outras tantas obrigadas a recuar, diante da tríplice linha de trincheiras, com as quais as tropas aguerridas de Madeira tinham coberto a Bahia.
Como o cerco se prolongasse na luta tenaz de que dependia a sorte do Brasil, o governo chamou lorde Crochrane do Chile, a fim de organizar uma esquadra e a comandar, a qual foi a primeira que o Brasil apresentou no mar e que largou a bandeira dessa nossa nação na costa da Bahia, quando ela pela primeira vez tremulou diante de um inimigo.
Ninguém porá em dúvida semelhante asserção, em face do documento oficial o qual foi lavrado para estabelecer o bloqueio e a guerra marítima. Por tais razões, não se pode deixar de contestar que a independência se houvesse feito, como por milagre, apenas com um dito e um grito do príncipe D. Pedro e que se comemore isto como os fatos decisivos da independência nacional.
Restringir a comemoração da independência ao Rio de Janeiro e a São Paulo é absurdo, pois, no que se sabe do Ypiranga não há um ato do povo brasileiro, nem coisa notável que o honre, pela idéia, ou pela abnegação, pelo altruísmo, ou por qualquer coisa de importância e relevo.
O fato culminante da independência se deu aqui na Bahia, pela ação das câmaras municipais, o que é um acontecimento digno de ser citado, porque foi uma resolução de gente capaz da liberdade, pela resistência do povo, pela sua constância na luta e pelo seu valor no sofrimento, assim como pelos outros fatores que vieram, de pontos diversos, concorrer para o triunfo, o qual foi, na realidade, a vitória da causa nacional, como se compreende lendo a parte de Cochrane, datada do mar, diante da Bahia, quando a esquadra inimiga estava a sair do porto, levando o exército que deixava o Brasil livre deveras, e vendo como o primeiro imperador do Brasil agradeceu às tropas que haviam firmado a existência da nova nacionalidade entre os povos constituídos do mundo.
A data que deve ser celebrada comemorando a independência do Brasil, para bem da honra e do decoro desta nação, deve ser a assinalada pela sua primeira campanha, pelo esforço que o seu povo empenhou numa luta, entremeada de triunfos e de revezes, na qual há lances capazes de memoração, fatos de valor e de coragem, combates que se podem contar sem pejo, pois tais são as coisas nobilitantes que dão honra e glória a um povo, o que somente se deu a 2 de julho de 1823, quando, para escapar a uma capitulação iminente, o exército e a frota de Portugal evacuaram a Bahia (por Braz do Amaral. In: Ação da Bahia na obra da independência nacional).
Imagens: Maria Quitéria (1920), por Domenico Failutti; Gal Meirelles, Caboclo de Itaparica