Tomei a liberdade de publicar nesse espaço o texto abaixo, de autoria do economista Carlos Eduardo A. Martins, sobre a fenomenal Louise Brooks. Diz o texto aqui reproduzido de forma resumida:
Seria fácil mitificar “Brooksie”. Não é qualquer atriz que, naqueles tempos, tinha coragem de mandar o
establishment dos grandes estúdios de Hollywwod às favas. Não é qualquer mulher que se tornou um ícone visual dos anos 20, a “melindrosa”
par excellence. Ou que serviu de inspiração para não menos do que duas personagens de quadrinhos, separadas por quase quatro décadas – Dixie Dugan, de John H. Striebel (por sua vez derivada de um folhetim baseado em Brooks, Show Girl, de J. P. McEvoy ), e Valentina, de Guido Crepax -, além de músicas e vídeos. E, contrariando o estereótipo hollywoodiano, sem ter sequer completado o segundo grau era uma ávida leitora cuja dieta literária incluía Schopenhauer e Nietzsche, Goethe e Proust, e mais tarde se revelaria uma ótima articulista. Mas qualquer mitificação significaria reduzir a mero clichê uma personalidade riquíssima, complexa e contraditória.
Mary Louise Brooks nasceu em Cherryvale, Kansas, EUA em 14 de novembro de 1906. De sua mãe Myra e de sua vizinha Marcella “Tot” Strickler, ambas talentosas pianistas, Louise herdou o amor pela música. E logo desenvolveu uma nova paixão: a dança. Sua estréia como dançarina se deu aos quatro anos, numa produção beneficente da igreja local. Aos dez, já se apresentava em vários espetáculos em Cherryvale e nas cidades vizinhas, e foi nessa época que, por iniciativa de Myra, adotou o corte “pajem” que se tornaria uma de suas marcas distintivas.
Ainda adolescente, Louise entrou como estudante para a então jovem companhia de dança Denishawn, de Ted Shawn, Ruth St. Denis, Charles Weidman e Martha Graham, pioneiros da dança moderna nos Estados Unidos, e com eles deixou Wichita, para onde sua família tinha se mudado, rumo a New York.
Ser uma “denishawner” significava entrega total. Aos contínuos exercícios e ensaios numa ampla variedade de técnicas e estilos, às exaustivas turnês anuais por dezenas de cidades, e a uma estética que enfatizava graça e expressividade, atributos que para Louise eram dons naturais. Nesses aspectos, a participação de Louise foi brilhante. Em apenas seis meses, passou de estudante a contratada. E no segundo ano já era co-protagonista ou solista de vários números do crescente repertório, cujas coreografias igualmente se tornavam mais e mais elaboradas.
Juntamente com o talento, Louise logo demonstrou ter uma personalidade forte, impetuosa, refratária à autoridade e muitas vezes intratável, o que a levaria a um confronto com Ruth St. Denis. Pois Denishawn requeria mais: de um lado, a estrita obediência a um rígido código moral, ao qual Louise, de há muito sexualmente ativa, não aceitava se submeter; de outro, uma veneração quase servil a St. Denis, o que a personalidade altiva de Louise igualmente rejeitava. Foi St. Denis que a despediu - publicamente, diante de todo o grupo –, antes de Louise completar seu segundo ano com a companhia. Não por falta de empenho ou talento; por não ter a “atitude” correta.
Injustiçada (ou pelo menos assim se sentindo), rejeitada, humilhada e desempregada, só restaria a Louise voltar para Wichita - não fosse por Barbara Bennett (irmã das futuras atrizes Constance e Joan), de quem se tornara amiga. No mesmo dia Barbara lhe arranjou uma entrevista com George White, produtor da revista musical Scandals, o qual imediatamente contratou Louise como corista. Scandals era o segundo mais famoso e luxuoso espetáculo do gênero, perdendo apenas para as Follies de Florenz Ziegfeld. No ano seguinte, depois de uma curta, bem sucedida e solitária temporada solo em Londres após deixar Scandals, Louise estava no elenco da versão de 1925 de Follies.
Em plena Era do Jazz, New York fervilhava - nos bares clandestinos e nos clubes sofisticados, nos palcos da Broadway e nos salões dos milionários. O dinheiro corria solto, e, pelo menos entre os endinheirados, os costumes corriam frouxos e a promiscuidade e a inconsqüência imperavam, um Zeitgeist captado à perfeição por Cole Porter em 1927: Let's Misbehave. Não faltavam cavalheiros que assediassem coristas – e as de Ziegfeld eram as mais requisitadas.
Em princípio, a função das coristas era se deixar exibir como troféu e adornar as mesas de seus patronos. Nem sempre o compromisso se estendia até a cama, mas quando tal acontecia, o que não era raro, estava implícito no acordo tácito. Em contrapartida, as acompanhantes eram generosamente presenteadas com peles e jóias ou mesmo confortavelmente instaladas em hotéis luxuosos. Para Louise, tanto fazia. Sexo, desde que o parceiro lhe agradasse, nunca foi problema para ela. Ao longo da vida, teve incontáveis romances – breves, longos ou interminentes –, incluindo um curto e tórrido caso com Charles Chaplin no verão de 1925. Da mesma forma, embora gostasse da “boa vida” (e, confessadamente, tivesse um fraco por roupas), jamais se preocupou em amealhar bens. Era uma sensualista, e a ela interessava a satisfação momentânea, emocional, sexual e material, não a posse.
Não eram só os pretendentes que rondavam os bastidores das revistas. Os olheiros dos estúdios cinematográficos também estavam permanentemente à cata de novas caras – e novos corpos. Ao contrário de suas colegas, Louise não tinha grande interesse pelo cinema, que considerava um meio menor, opinião que era compartilhada pelo pessoal direta ou indiretamente ligado ao teatro. Assim como, com razão, achava o trabalho como corista incomparavelmente pobre em comparação com a dança, em particular o que havia realizado em sua temporada com Denishawn.
Talvez tenha sido essa insatisfação que a levou a, finalmente, aceitar fazer um teste para o cinema, talvez tenha sido um capricho, talvez tenha sido a insistência de seu amante Walter Wanger, um dos principais produtores da Paramount, talvez tenha sido outro traço de sua personalidade, a inconstância, talvez tenha sido a perspectiva de uma fonte adicional de renda (segundo a própria Louise, o dinheiro foi sua única motivação para ingressar na carreira cinematográfica). A indústria cinematográfica estava se transferindo de New York para Hollywood, mas ainda mantinha escritórios e estúdios na Costa Leste. Isso significava que Louise poderia filmar durante o dia, atuar nas Follies durante a noite, e ainda aproveitar as noitadas novaiorquinas.
Seja como for, Louise um dia se viu fazendo o teste para uma figuração em
O Mendigo Elegante (
The Street of Forgotten Men). Extremamamente crítica com relação a seu próprio desempenho, Louise achou seu teste péssimo. Mas o estúdio teve outra opinião, e a participação de Louise foi mantida na montagem final. Logo em seguida não só a Paramount como também a MGM lhe ofereceram contratos. Louise optou pela primeira, e foi logo escalada para uma ponta em
Vênus Americana (
The American Venus).
Louise não tinha muito a fazer senão enfeitar o cenário, o que fez além das expectativas. Uma foto promocional em que aparecia quase nua da cintura para cima, com apenas duas estreitas faixas lhe cobrindo parcialmente os seios, numa pose desafiadora, mãos nos quadris, foi fartamente reproduzida pela imprensa. A partir daí, era impossível ignorar a novata. E os críticos, longe de a ignorarem, destacaram sua presença em cena embora o filme não tenha sido muito bem recebido.
Nos três anos seguintes Louise fez mais doze filmes, todos - com uma única exceção - comediolas bobas, no máximo um melodrama. Muitos desses filmes se perderam ou só existem em cinematecas, e portanto não accessíveis ao público de hoje. Louise fora contratada pela beleza, e dela não se esperavam grandes dotes dramáticos. Mas gradativamente, por uma mistura de intuição, observação e talento natural, e apesar de não ter qualquer treinamento formal como atriz, foi dominando a arte de representar. O que não escapou aos críticos, que logo passaram a elogiar-lhe o desempenho, mesmo quando o papel não exigia muito dela.
A exceção veio em 1928 com
Mendigos da Vida (
Beggars of Life), de William Wellman, sobre um grupo de hoboes, vagabundos que viviam em vagões de carga de um canto para outro, e pela primeira vez Louise teve a oportunidade de realmente mostrar que sabia atuar. O papel de Louise, de uma fugitiva disfarçada de rapaz, implicava que aparecesse desglamorizada, o que enfatizava seu desempeho como atriz. Nesse meio tempo, os fãs também se haviam apaixonado pela jovem de olhar magnético e cabelos à la Príncipe Valente. Louise era uma das campeãs de correspondência da Paramount. Seu rosto aparecia repetidamente nas capas das mais prestigiosas revistas especializadas. De “novidade interessante”, havia passado à categoria de “estrela ascendente”.
Seu casamento com o diretor Eddie Sutherland, marcado por repetidas infidelidades de parte a parte, havia fracassado (também tipicamente, Louise recusou a pensão alimentícia a que teria direito bem como qualquer outra compensação material). A frivolidade e a pobreza intelectual de Hollywood, para onde tinha se mudado, lhe eram insuportáveis, e sempre que podia fugia para seu círculo de amigos novaiorquinos e para os braços de seu mentor e amante recorrente George Marshall.
No ano seguinte, Louise voltaria ao padrão dominante em sua carreira. Em
O Drama de uma Noite (
The Canary Murder Case), de Malcolm St. Clair, fez o papel de uma corista de teatro de revista, a "canária" do título original. Embora a personagem fosse crucial para a trama, de novo o papel não exigia muito de Louise como atriz. Baseado num popularíssimo romance de mistério escrito por S. S. Van Dyne (pseudônimo de Willard Huntington Wright), Drama era uma grande aposta da Paramount, mas ficou longe de ser o sucesso de bilheteria esperado. Mesmo assim, foi indiretamente um divisor de águas na vida de Louise.
O contrato de Louise com a Paramount estava chegando ao fim, e cabia ao estúdio optar por renová-lo ou não. Louise estava em ascensão, e o estúdio não tinha por que a dispensar. Era praxe, nos casos de renovação, conceder aos contratados um aumento de salário, e era o que Louise esperava quando foi chamada para uma reunião com o chefão da Paramount, B. P. Schulberg. Para sua surpresa, Schulberg declarou sumariamente que ou ela aceitava renovar pelo mesmo salário ou seria dispensada. E, para pasmo de Schulberg, Louise optou pela segunda alternativa.
Não foi apenas uma decisão voluntariosa. Na véspera, George Marshall lhe havia dito que não cedesse à pressão, pois ele sabia que um diretor alemão estava interessado em contratá-la para um filme “muito famoso” – e por um salário maior. Marshall sabia do que estava falando. No momento em que Louise deixou a sala do chefão da Paramount, sem contrato e sem emprego, a secretária de Schulberg lhe entregou um telegrama que havia sido endereçado ao estúdio. Era um convite do diretor Georg Whilhelm Pabst para que ela fizesse um teste para o papel de Lulu em
A Caixa de Pandora.
Louise nunca tinha ouvido falar de Pabst, muito menos das peças de Frank Wedekind nas quais se baseava o roteiro do filme. E nem de longe supunha que a escolha da atriz que faria Lulu havia se tornado na Alemanha o objeto de uma busca frenética só comparável à que, dez anos depois, cercaria a escolha da intérprete de Scarlett O'Hara em
E o Vento Levou.
Se a escolha da inglesa Vivien Leigh como Scarlett foi polêmica, muito mais celeuma causou Pabst ao optar por uma pouco conhecida atriz estadunidense para o papel de Lulu. Pabst havia entrevistado dezenas de atrizes, incluindo a Marlene Dietrich pré-Anjo Azul, mas nenhuma correspondia à visão que tinha de sua Lulu. Até que, já desesperado, viu umas poucas cenas de Louise em
A Girl in Every Port, e teve seu estalo.
Pabst, Lulu e Louise foram feitos um para o outro. Pabst não sabia que Louise, assim como a personagem, era dançarina. O inverso se dava, já que Louise não havia lido o roteiro. Louise tampouco sabia que Pabst dava a seus filmes um tratamento coreográfico, da direção de cena à montagem. Ou que era um expoente do estilo que seria rotulado de “nova objetividade” (que conservava algumas inovações formais de expressionismo, mas lhe rejeitava o hiper-artificialismo e a hiper-estilização, buscando em vez disso uma abordagem mais “natural” e “realista”), do qual A Caixa de Pandora se tornaria marco e síntese.
Vista hoje, a atuação de Louise é surpreendentemente moderna. Numa época em que o cinema ainda estava se livrando das caras e bocas caricaturais à la Rodolfo Valentino, Louise impressiona pelo comedimento. Com um pequeno gesto, um sorriso, um franzir de rosto, e principalmente um olhar, é capaz de transmitir toda a gama de emoções e a ambigüidade de Lulu sem jamais cair no exagero. Muito se deve a Pabst, que era um soberbo diretor (e manipulador) de atores, e mais ainda de atrizes. Notando logo que Louise era uma atriz intuititva, Pabst, em vez de a soterrar sob detalhadas instruções de como agir diante da câmera, concentrou-se em lhe passar concisas instruções sobre as emoções envolvidas na cena, e deixar que Louise as desenvolvesse.
As filmagens de Pandora foram concluídas exatamente na data prevista. No dia seguinte, Louise estava de partida para New York. Tinha gostado de trabalhar com Pabst, a quem viera a devotar grande admiração, mas para ela Pandora era apenas mais um trabalho concluído, e como tal página virada (por
Carlos Eduardo A. Martins).
Imagem: George Grantham Bain Collection