Gente, li muitas coisas, ouvi muitas coisas, muitos argumentos – bons argumentos – de um lado e de outro da questão. E muita besteira também. Resolvi dar minha opinião. Antes de tudo é preciso ler o tal capítulo do livro que gerou tanta polêmica a respeito do ensino da língua. Muita gente comentou Brasil afora, na mídia, na mesa de bares, nas escolas, nas redes sociais, sem ao menos tê-lo lido, criticando só a partir de frases tiradas de seu contexto e dos famosos “achismos” tão caros aos que não são da área. Por que será que temos esse gosto pelas dicotomias, polaridades, falsas polêmicas? Por que tudo vira um ringue entre os que acusam e os que defendem ardorosamente uma causa? Não podemos, como educadores que pensam a linguagem, cair na armadilha dessa dicotomia tosca que se criou. E o engraçado é que o livro propõe justamente o ensino da gramática, da norma culta da língua... Talvez a autora tenha, de fato, sido infeliz – até ingênua, talvez – no modo de colocar certas coisas, talvez até superestimando a capacidade dos seus leitores em compreender a questão em toda sua complexidade. Talvez ela tenha passado rápido demais pelo tema, não distinguindo a fundo a norma escrita e a falada, a norma ideal da gramática (que ninguém fala, nem os letrados) e a norma real, o padrão e o culto, a gramática e a língua. Talvez ela tenha sido apressada no trecho que indica que “claro que pode falar assim”, considerando a complexidade da questão e a delicadeza do tema para quem não é da área e não acompanha as discussões sobre a variação lingüística. Acho que ela não pensou que pudesse ser tão chocante para uns, algo tão já discutido no meio lingüístico. Talvez. Talvez ela pudesse ter sido mais cuidadosa na transposição do que é saber da lingüística e o modo de abordar, no ensino, a realidade da existência de variedades faladas (para ensinar a norma, diga-se de passagem). Mas daí a essa reação apaixonada contra o que ela trata no capítulo, me parece mais equivocada ainda. Caímos de novo naquela de que a gramática, a norma culta, etc, etc, são tesouros intocáveis, quase divinos? Precisava tanta inflamação?
Acho que é preciso sim reconhecer as variedades, sua legitimidade como língua portuguesa, para partir daí para o ensino da linguagem valorizada socialmente. Só assim milhares de alunos serão reconhecidos como falantes do português, embora passem a tomar consciência de que sua variedade não tem muito prestígio social. Vão aprender sabendo o porquê de aprender, não achando que é porque não falam português. Acho justíssimo sim, esse tema ser tema de estudo da área de linguagem na escola, se a escola é para todos.
Marcar de forma redundante o plural numa frase, como faz a língua portuguesa, não é necessariamente a única forma de marcar plural e isso pode até mudar, como já mudou em várias línguas, argumento que, evidentemente, não invalida a norma atual da língua culta. Talvez a autora tenha se apressado no modo de fazer suas colocações, mas sua perspectiva é a da ciência lingüística. Não concordo que haja uma separação estanque entre a ciência lingüística e a prática educativa. Fosse assim, não teria havido mudanças essenciais no ensino da língua a partir dos estudos da língua nas últimas décadas. Há a tal “transposição didática”, evidentemente, não se trata de uma aplicação direta. É evidente que os conhecimentos lingüísticos, descritivos da língua, não são para serem, todos, repassados para os alunos tal e qual. Saber como funciona e ensinar, realmente, não são a mesma coisa. Mas também não são objetos estanques, impermeáveis. Parece-me essencial a contribuição da sociolingüística desde os anos 70 e da lingüística contemporânea para o ensino da língua hoje e, mais ainda, junto com isso, para a mudança de atitude quanto ao tratamento das questões de linguagem na escola. Em especial o tratamento dado em relação às variedades faladas pelos alunos, o modo como os acolhemos na escola. A língua culta não é um tijolo maciço estanque, inquebrável, imutável e intocável. E é assim que ela tem aparecido na mídia!
De novo vemos os burgueses letrados tremerem de medo do falar de grande parte do povo brasileiro, por esse falar estar explicitado em um livro, outro objeto intocável, símbolo do que é mais culto! Nossa, que heresia, hein?!!!
O livro em questão, no entanto, não prega falar “errado” nem ensinar aos letrados as variedades não cultas da língua para que possam falá-la também. Que despautério desses que foram à TV afirmá-lo! E como se pode constatar ao lê-lo, curiosamente, o livro pretende, justamente, ensinar a norma culta. Colocar as coisas nos seus lugares é muito saudável, inclusive destronando a norma culta de um trono imaculado, com a faixa “língua portuguesa” atravessada no peito, acho que é isso que a lingüística faz, e que o livro acusado tentava fazer.
O que os lingüistas discutem hoje, de sua perspectiva descritiva da língua falada, não pode ser ignorado pela escola. Especialmente a escola pública, que recebe alunos que falam variedades bem distantes da norma culta. Isso já sabemos. Os modos de fazê-lo podem, esses, ser discutidos, sim, concordo. Não ensinar a norma culta é reafirmar o fosso, concordo. A própria autora do livro, sem dúvida, sabe disso. Ninguém está pregando “cada um no seu quadrado”!!! Mas ignorar o fenômeno da variação é uma injustiça ainda maior. Reconhecer a variedade e conceber a norma como uma variedade de prestígio – e que o é por razões diversas, inclusive históricas, sociais, políticas – é um primeiro passo para uma atitude de não preconceito, que me parece, é papel da educação. Aliás, é bom lembrar, a expressão “preconceito lingüístico” não foi um delírio cunhado por essa autora em especial, como muitos estão dizendo, mas faz parte do campo conceitual da ciência lingüística. Não dá para separar de todo linguagem, educação e poder. Não é possível que, com tudo que sabemos hoje sobre a história da constituição de uma língua padrão, sobre fenômenos e mudanças lingüísticas, continuemos tratando a norma culta como “a língua portuguesa” e as demais variedades todas como distorções dela. E é esse trono que está sendo propalado pela mídia.
Porque ninguém se incomoda que hoje se fale a palavra “balde” como /baudji/ e não como /balde/, como falava meu avô e uns poucos de cabeça branca que ainda restam vivos? (tentar falar assim, para nós, hoje, faz uma dobra na língua que parece até inglês!!!). Porque não incomoda os defensores da língua culta que uma moça bem letrada diga a seu marido, filho ou a seu funcionário: “Benhê, traz um copo d’água, por favor. Você traz?”, "João, leva esse livro pra estante, tá?", “Filho, vem cá! Você quer jogar?”. Por que para os letrados a tolerância é maior? O letramento permite que todos se policiem para usar a norma culta nas situações sociais em que esta é exigida. Para falar “se eu vir...”, “assisti ao filme...” muitos de nós temos que nos policiar (ao menos enquanto a língua não mude nesses aspectos), e relaxamos entre amigos, não? Por que toleramos as diferenças entre norma ideal e real quando quem abre a boca é de uma camada mais culta da sociedade? E por que incomoda tanto os que dizem “Eu toco frauta muito bem”? O preconceito lingüístico é sim, antes de tudo, preconceito social. Acredito nisso sim! Isso nós precisamos, como educadores, ter em mente e combater a cada dia. E é a lingüística que pode nos dar essa dimensão (ainda que, por vezes alguns também relativizem demais a questão, do ponto de vista da educação). Não podemos ignorar esse fato, ao preço de mascararmos a questão do poder que está entranhada nas questões de linguagem. Até porque o grande Camões não só falou, como escreveu frauta em seu texto mais famoso. E por quê? Por que a língua muda! E porque só valem as mudanças estabelecidas pelas camadas sociais mais prestigiadas? Precisa responder? Acho que não, né? Aliás, não fosse esse tipo de fenômeno linguístico nem haveria língua portuguesa! O certo é que esses fenômenos existem e são eles os responsáveis por formar as línguas, além de modificá-las (não necessariamente deturpá-las, como querem alguns).
Bom, isso tudo evidentemente não quer dizer que não seja para ensinar a norma culta escrita, e até mesmo a falada. Por questões sociais, sim, e em especial pelo direito ao acesso à língua em que se registram os textos escritos na nossa sociedade. Todo o livro da autora massacrada é isso, para ensinar a norma culta da língua! Ainda que essa repercussão do livro possa também gerar uma discussão fecunda, estou com Faraco, Possenti, Magda Soares, até mesmo Marcos Bagno, dentre outros, que reconhecem nessa querela toda uma falsa polêmica, uma polaridade absurda, estanque e que, feita dessa forma tão inflamada, penso eu, é burra. A complexidade da questão não cabe em cinco minutos de noticiário no jornal e nos melindres de defensores ardorosos da redoma de vidro inquebrável da norma culta, que desconhecem a própria dinâmica das línguas. Toda polaridade absoluta é burra.
Estou também com Bakhtin, para quem há na linguagem, como na vida social, forças centrípetas que tendem para a conservação, a homogeneização e forças centrífugas que impelem para o descentramento, a transformação, a diversidade. Essa tensão entre elas permeia o movimento incessante da linguagem. É a dinâmica da linguagem, da língua, da vida!!! É como penso (por
Liane Castro de Araujo, doutoranda em educação pela Faced/Ufba, supervisora de Escrita e Leitura da Escola Via Magia, permitiu aqui a publicação do seu desabafo).