Como já escreveu o Chico Buarque de Holanda, “há dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu”. Não é o meu caso. Ao menos não no dia de hoje. Meu caso é, na verdade, de preguiça. Estava a pensar na postagem desta semana, mas a preguiça, esta esfuziante companheira, sempre a me dizer ao pé do ouvido, bem à moda do poeta Juvenal Antunes: mas Sílvio estás a trabalhar! Larga este teclado e vai dormir...sonhar... Como resistir a tão nobre apelo? Entretanto, para não perder o hábito de postar algo novo toda semana, decidi reproduzir o texto do genro do Karl Marx, o socialista de origem cubana, Paul Lafargue. Seu texto, “O direito à preguiça”, é tudo que eu sempre quis escrever, mas a preguiça não permitiu. Sendo assim, boa leitura.
UM DOGMA DESASTROSO
Uma estranha loucura se apossou das classes operárias das nações onde reina a civilização capitalista. Esta loucura arrasta consigo misérias individuais e sociais que há dois séculos torturam a triste humanidade. Esta loucura é o amor ao trabalho, a paixão moribunda do trabalho, levado até ao esgotamento das forças vitais do indivíduo e da sua progenitora. Em vez de reagir contra esta aberração mental, os padres, os economistas, os moralistas sacrossantificaram o trabalho. Homens cegos e limitados quiseram ser mais sábios do que o seu Deus; homens fracos e desprezíveis quiseram reabilitar aquilo que o seu Deus amaldiçoara. Eu, que não confesso ser cristão, economista e moralista, recuso admitir os seus juízos como os do seu Deus; recuso admitir os sermões da sua moral religiosa, econômica, livre-pensadora, face às terríveis conseqüências do trabalho na sociedade capitalista.
Na sociedade capitalista, o trabalho é a causa de toda a degenerescência intelectual, de toda a deformação orgânica. Comparem o puro-sangue das cavalariças de Rothschild, servido por uma criadagem de bímanos, com a pesada besta das quintas normandas que lavra a terra, carrega o estrume, que põe no celeiro a colheita dos cereais. Olhem para o nobre selvagem, que os missionários do comércio e os comerciantes da religião ainda não corromperam com o cristianismo, com a sífilis e o dogma do trabalho, e olhem em seguida para os nossos miseráveis criados de máquinas.
Quando, na nossa Europa civilizada, se quer encontrar um traço de beleza nativa do homem, é preciso ir consumí-lo nas nações onde os preconceitos econômicos ainda não desenraizaram o ódio ao trabalho. A Espanha, que, infelizmente, degenera ainda se pode gabar de possuir menos fábricas do que nós prisões e casernas; mas o artista regozija-se ao admirar o ousado Andaluz, moreno como as castanhas, direito e flexível como uma haste de aço; e o coração do homem sobressalta-se ao ouvir o mendigo, soberbamente envolvido na sua capa esburacada, chamar amigo aos duques de Ossuna. Para o Espanhol, em cujo país o animal primitivo não está atrofiado, o trabalho é a pior das escravaturas. Os Gregos da grande época também só tinham desprezo pelo trabalho: só aos escravos era permitido trabalhar, o homem livre só conhecia os exercícios físicos e os jogos da inteligência. Também era a época em que se caminhava e se respirava num povo de Aristóteles, de Fídias, de Aristófanes; era a época em que um punhado de bravos esmagava em Maratona as hordas da Ásia que Alexandre ia dentro em breve conquistar. Os filósofos da antigüidade ensinavam o desprezo pelo trabalho, essa degradação do homem livre; os poetas cantavam a preguiça, esse presente dos Deuses: O Meliboe, Deus nobis hoec otia fecit. Cristo pregou a preguiça no seu sermão na montanha: “Contemplai o crescimento dos lírios dos campos, eles não trabalham nem fiam e, todavia, digo-vos, Salomão, em toda a sua glória, não se vestiu com maior brilho”. Jeová, o deus barbudo e rebarbativo, deu aos seus adoradores o exemplo supremo da preguiça ideal; depois de seis dias de trabalho, repousou para a eternidade.
Em contrapartida, quais são as raças para quem o trabalho é uma necessidade orgânica? Os “Auvergnats”; os Escoceses, esses “Auvergnats” das ilhas britânicas; os Galegos, esses “Auvergnats” da Espanha; os Pomeranianos, esses “Auvergnats” da Alemanha; os Chineses, esses “Auvergnats” da Ásia. Na nossa sociedade, quais são as classes que amam o trabalho pelo trabalho? Os camponeses proprietários, os pequeno-burgueses, uns curvados sobre as suas terras, os outros retidos pelo hábito nas suas lojas, mexem-se como a toupeira na sua galeria subterrânea e nunca se endireitam para olhar com vagar para a natureza.
E, no entanto, o proletariado, a grande classe que engloba todos os produtores das nações civilizadas, a classe que, ao emancipar-se, emancipará a humanidade do trabalho servil e fará do animal humano um ser livre, o proletariado, traindo os seus instintos, esquecendo-se da sua missão histórica, deixou-se perverter pelo dogma do trabalho. Rude e terrível foi a sua punição. Todas as misérias individuais e sociais mereceram da sua paixão pelo trabalho (por Paul Lafargue).
É isso aí. Nessa época de desconstruções, precisamos rever paradigmas. No mais, até a próxima semana se a preguiça permitir. Um beijo preguiçoso deste que vos escreve, Sílvio Benevides.
UM DOGMA DESASTROSO
Uma estranha loucura se apossou das classes operárias das nações onde reina a civilização capitalista. Esta loucura arrasta consigo misérias individuais e sociais que há dois séculos torturam a triste humanidade. Esta loucura é o amor ao trabalho, a paixão moribunda do trabalho, levado até ao esgotamento das forças vitais do indivíduo e da sua progenitora. Em vez de reagir contra esta aberração mental, os padres, os economistas, os moralistas sacrossantificaram o trabalho. Homens cegos e limitados quiseram ser mais sábios do que o seu Deus; homens fracos e desprezíveis quiseram reabilitar aquilo que o seu Deus amaldiçoara. Eu, que não confesso ser cristão, economista e moralista, recuso admitir os seus juízos como os do seu Deus; recuso admitir os sermões da sua moral religiosa, econômica, livre-pensadora, face às terríveis conseqüências do trabalho na sociedade capitalista.
Na sociedade capitalista, o trabalho é a causa de toda a degenerescência intelectual, de toda a deformação orgânica. Comparem o puro-sangue das cavalariças de Rothschild, servido por uma criadagem de bímanos, com a pesada besta das quintas normandas que lavra a terra, carrega o estrume, que põe no celeiro a colheita dos cereais. Olhem para o nobre selvagem, que os missionários do comércio e os comerciantes da religião ainda não corromperam com o cristianismo, com a sífilis e o dogma do trabalho, e olhem em seguida para os nossos miseráveis criados de máquinas.
Quando, na nossa Europa civilizada, se quer encontrar um traço de beleza nativa do homem, é preciso ir consumí-lo nas nações onde os preconceitos econômicos ainda não desenraizaram o ódio ao trabalho. A Espanha, que, infelizmente, degenera ainda se pode gabar de possuir menos fábricas do que nós prisões e casernas; mas o artista regozija-se ao admirar o ousado Andaluz, moreno como as castanhas, direito e flexível como uma haste de aço; e o coração do homem sobressalta-se ao ouvir o mendigo, soberbamente envolvido na sua capa esburacada, chamar amigo aos duques de Ossuna. Para o Espanhol, em cujo país o animal primitivo não está atrofiado, o trabalho é a pior das escravaturas. Os Gregos da grande época também só tinham desprezo pelo trabalho: só aos escravos era permitido trabalhar, o homem livre só conhecia os exercícios físicos e os jogos da inteligência. Também era a época em que se caminhava e se respirava num povo de Aristóteles, de Fídias, de Aristófanes; era a época em que um punhado de bravos esmagava em Maratona as hordas da Ásia que Alexandre ia dentro em breve conquistar. Os filósofos da antigüidade ensinavam o desprezo pelo trabalho, essa degradação do homem livre; os poetas cantavam a preguiça, esse presente dos Deuses: O Meliboe, Deus nobis hoec otia fecit. Cristo pregou a preguiça no seu sermão na montanha: “Contemplai o crescimento dos lírios dos campos, eles não trabalham nem fiam e, todavia, digo-vos, Salomão, em toda a sua glória, não se vestiu com maior brilho”. Jeová, o deus barbudo e rebarbativo, deu aos seus adoradores o exemplo supremo da preguiça ideal; depois de seis dias de trabalho, repousou para a eternidade.
Em contrapartida, quais são as raças para quem o trabalho é uma necessidade orgânica? Os “Auvergnats”; os Escoceses, esses “Auvergnats” das ilhas britânicas; os Galegos, esses “Auvergnats” da Espanha; os Pomeranianos, esses “Auvergnats” da Alemanha; os Chineses, esses “Auvergnats” da Ásia. Na nossa sociedade, quais são as classes que amam o trabalho pelo trabalho? Os camponeses proprietários, os pequeno-burgueses, uns curvados sobre as suas terras, os outros retidos pelo hábito nas suas lojas, mexem-se como a toupeira na sua galeria subterrânea e nunca se endireitam para olhar com vagar para a natureza.
E, no entanto, o proletariado, a grande classe que engloba todos os produtores das nações civilizadas, a classe que, ao emancipar-se, emancipará a humanidade do trabalho servil e fará do animal humano um ser livre, o proletariado, traindo os seus instintos, esquecendo-se da sua missão histórica, deixou-se perverter pelo dogma do trabalho. Rude e terrível foi a sua punição. Todas as misérias individuais e sociais mereceram da sua paixão pelo trabalho (por Paul Lafargue).
É isso aí. Nessa época de desconstruções, precisamos rever paradigmas. No mais, até a próxima semana se a preguiça permitir. Um beijo preguiçoso deste que vos escreve, Sílvio Benevides.
Imagem: Kadu, um beagle preguiçoso, por Sílvio Benevides.