Início da mesa "Donos da terra?", na Flica 2013. |
O debate teve início com um
questionamento, no mínimo insólito, levantado pelo mediador: teria sobrado
tanto índio assim para se precisar de tanta terra? Muita gente na platéia ficou
perplexa com a pergunta, sobretudo porque ninguém esperava que um debate que se
pretendia sério e isento de qualquer juízo de valor ou mesmo tomada de qualquer
partido, conforme alardeou a organização do evento antes mesmo a mesa iniciar
suas atividades, começasse justamente com um questionamento tão capcioso.
Ao finalizar sua pergunta, o
mediador passou a palavra para a Maria Hilda Baqueiro, que fez questão de
frisar que as terras destinadas aos assentamentos indígenas não são, de fato,
terras indígenas, mas, sim, terras da União e reservas florestais. Sendo assim,
a União pode, a qualquer momento que julgar necessário, remanejar esses povos
para onde avaliar ser mais adequado. Ademais, continuou ela, embora no Brasil a
população indígena seja maior que a população indígena do Canadá e dos Estados
Unidos, conforme havia mencionado o mediador do debate, os portugueses foram
responsáveis por um dos maiores genocídios da história da humanidade. Em
seguida, o Jorge Portugal cedeu a palavra para o Demétrio Magnoli, que explanou
sobre o que ele chama de narrativas sobre os índios brasileiros.
Para o sociólogo da Universidade
de São Paulo, existem quatro grandes narrativas sobre os índios brasileiros,
construídas ao longo da história nacional. A primeira foi criada pelos
missionários jesuítas, que desejavam “salvar” almas. A segunda, criada pelo
movimento romântico brasileiro no período imperial, retratava um índio que não
existia nem nunca existiu. A terceira, a do Marechal Rondon e dos irmãos
Villas-Bôas, visava integrar o índio à sociedade brasileira. Por fim, a
narrativa dos neoíndios, forjada, segundo ele, por ONG’s vinculadas a
organizações internacionais. De acordo com o Demétrio Magnoli, esta última
narrativa foi responsável por banir das escolas brasileiras de maneira
irresponsável a narrativa de integração do índio à sociedade nacional proposta
pelo Marechal Rondon e pelos irmãos Villas-Bôas, e com isso, criou-se no
Brasil, segundo ele, uma nação racialista, dividida em raças, e não uma
sociedade integrada, uniforme, verdadeiramente democrática.
Protesto pacífico contra o racismo realizado na Flica 2013. |
Diante de tais impropérios, Maria
Hilda Baqueiro deu uma verdadeira lição sobre história indígena no Brasil,
deixando bem claro e explícito para os presentes o total desconhecimento do sociólogo
uspiano sobre o tema do debate e o quão suas palavras e idéias estavam imbuídas
de um senso comum bem rasteiro e de juízos de valor de uma camada social
brasileira que não deseja, de modo algum, abrir mão dos seus privilégios de
classe. Quando o Demétrio Magnoli pediu a palavra para contestar a Maria Hilda
Baqueiro, uma voz gritou em alto e bom som: RACISTA! Era o início do protesto.
Um grupo de jovens estudantes abriu uma faixa na qual se podia ler “Contra as cotas,
só racista” e, assim, conseguiram impedir a reprodução de um discurso racista
tão fartamente reproduzido pelos grandes veículos de comunicação, por meio de
intelectuais como o Demétrio Magnoli, assumidamente contrário às políticas de
ações afirmativas, das quais as políticas de cotas fazem parte.
Performance realizada durante o protesto. |
A manifestação/protesto ocorreu
de maneira extremamente pacífica. Nada foi depredado e nenhum dos presentes
teve a sua integridade física ameaçada, ao contrário das inverdades caluniosas
publicadas pelo periódico Correio da Bahia, que em nota não assinada distorceu
deliberadamente os fatos, numa velha manobra bem conhecida de certos veículos
de comunicação, que tentam de todas as maneiras apresentar à população em geral
os movimentos sociais contra-hegemônicos como movimentos hostis à ordem
democrática. Mas qual ordem democrática esses veículos defendem quando
distorcem fatos e publicam calúnias?
Os meninos e meninas que
protestavam apenas gritavam palavras de ordem e pediam para que o tema da mesa
contemplasse a discussão sobre as cotas raciais. A organização da Flica, de
maneira intransigente, se recusou a atender a reivindicação dos manifestantes.
Diante disso, os meninos e meninas também se recusaram a negociar e passaram a
exigir a saída do Demétrio Magnoli da mesa e o cancelamento da mesa da noite,
da qual participaria o filósofo e ensaísta pernambucano Luiz Felipe Pondé.
Devido ao impasse que se formou, a organização da Flica decidiu encerrar a mesa
e anunciou que ela voltaria a ocorrer às treze horas de portas fechadas,
deixando bem claro o conceito que eles têm sobre democracia. Como os meninos e
meninas que protestavam, assim como aqueles que apoiavam o movimento, se
recusaram a sair para evitar que fossem impedidos de adentrar o recinto no
turno vespertino, a organização do evento cortou o ar-condicionado do salão, a
comunicação wi-fi e, também, impediu que as pessoas tivessem acesso a água e
aos sanitários. E como se não bastasse tudo isso, os meninos e meninas é que
foram acusados de anti-democráticos, intransigentes e radicais.
Performance que lembrava o genocídio de negros e índios. |
O que esses meninos e meninas
fizeram foi uma verdadeira demonstração do espírito democrático, pois reivindicavam
o direito de fala de sujeitos historicamente forçados a se calar e, mais que
isso, defendiam, em última instância, dois dos pilares fundamentais da
democracia, que são a igualdade e a liberdade, haja vista que todo e qualquer
discurso, assim como todo e qualquer veículo de comunicação, que difunda ou
ajude a difundir idéias e ideais racistas, sexistas, homofóbicos, fascistas e
nazistas atentam contra a liberdade e a igualdade (igualdade essa que não
suprima as desigualdades e especificidades ontológicas e identitárias) de povos
e indivíduos, como, também, atentam contra os direitos humanos e a história já
nos mostrou isso. Sendo assim, tais discursos são um atentado contra a
democracia. Ser democrático não é permitir que qualquer um fale qualquer coisa.
Ser democrático é lutar em defesa da dignidade humana. Espero que os
organizadores da Flica, os neoracistas e os reacionários de plantão que lá
estavam tenham aprendido e apreendido a lição dada por esse grupo de jovens que
demonstraram para o Brasil e para o mundo porque que Cachoeira sustenta o
título de cidade heróica, pois é o berço das lutas contra a escravidão no
Brasil e das lutas por liberdade (por Silvio
Benevides).
Imagens: Silvio Benevides.