Cheguei ao texto
abaixo, de autoria da psicóloga e psicanalista Rita de Cássia de A. Almeida,
por meio de um compartilhamento no Facebook. Achei-o mais do que muito
apropriado para esses tempos de pós-modernidade em que vivemos e, também, para
esses dias de verão na Bahia que já se fazem sentir com toda força. Esse enorme
pedaço de chão chamado de Bahia (refiro-me especificamente às terras em torno
da Baía de Todos os Santos) é conhecido como “terra da felicidade”. Nunca entendi
muito bem a razão deste simpático epíteto, afinal, violência, miséria, analfabetismo,
má-educação, desrespeito, descaso e desgoverno são apenas alguns dos inúmeros
problemas que afligem essa tão feliz população baiana, que de nada reclama, mas
samba muito bem, pois é feliz como ninguém. Esse jeito de ser feliz do povo baiano,
que a quase todo mundo encanta, fica mais fervoroso na estação mais quente do
ano. E tanta felicidade se impõe de forma ainda mais fervorosa quando o
carnaval se aproxima. Na terra da felicidade, a felicidade é uma obrigação. E tudo
que é obrigado, acaba virando uma aberração, uma chatice. Na Bahia, não gostar
da Ivete Sangalo, não curtir o Festival de Verão, achar o carnaval uma mesmice
enfadonha e o pagode baiano uma abominação é pior do que ser nazista radical, é
mais grave do que sofrer de câncer terminal. Não que eu seja um depressivo
compulsivo, afinal, nasci na Bahia. Mas que tanta felicidade enjoa, ah isso
enjoa. Por isso concordo com a autora do texto abaixo, “infelicidade não é
doença, é parte da nossa condição existencial, sem ela perdemos pelo menos a
metade da nossa humanidade”. Sejamos, pois, humanos na felicidade ou na
ausência dela e que 2013 seja repleto de HUMANIDADE (por Silvio Benevides).
A
ditadura da felicidade – Há mais de 15 anos que o meu
trabalho cotidiano tem sido - para resumir em algumas poucas palavras - escutar
o sofrimento alheio e, por opção, atuando na saúde pública. E durante esse
percurso profissional testemunhei uma mudança muito interessante na minha
prática clínica. Sofremos por diversos motivos e de diferentes formas e, pela
minha experiência, o motivo do sofrimento não mudou muito, no entanto, a
demanda que as pessoas tem feito quando estão em sofrimento mudou
significativamente.
Estudos da psicanálise
atual têm tratado nossa época como a era do direito ao gozo. Ou seja,
vivemos em uma época que não trata a felicidade como algo a ser construído ou
conquistado, mas sim como um direito. Numa caricatura, diríamos que toda
criança que nasce, especialmente no ocidente capitalista, recebe em sua
certidão de nascimento um carimbo que outorga a ela o direito de ser feliz, de
gozar sem restrições, sem qualquer porém.
Me
lembrei agora dos versos de uma música do saudoso Tim Maia:
“Essa
tal felicidade, hei de encontrar.
Mesmo
se eu tiver que aguardar.
Se
eu tiver que esperar.”
Nos
tempos do Tim Maia a felicidade ainda era uma contingência, quase uma utopia,
uma busca na qual poderíamos ou não ter sucesso. Mas hoje a coisa é bem
diferente, como a felicidade passou a ser um direito de todos, acabou
alcançando também o patamar de uma certa obrigação do sujeito. É como se você
tivesse ganhado o direito de, sem nenhum ônus, acessar mais 90 canais de TV e
dissesse não. As pessoas te perguntariam: - Como assim, você não quer mais 90
canais de TV? Entendo que essa seja a grande pergunta que permeia o discurso
ocidental capitalista: - Como assim, você não é feliz?
Esse
modo de entender a felicidade implicou numa mudança radical, como eu disse, no
tipo de demanda que as pessoas fazem a nós, trabalhadores da saúde mental. Para
os que não estão familiarizados com o fluxo de funcionamento da atenção à saúde
do SUS, preciso fazer um parêntese para que compreendam melhor o que vou dizer
adiante.
O
sistema funciona, ou pelo menos deve funcionar, em rede. A atenção primária é a
extremidade da rede mais próxima do usuário, portanto a primeira que ele
procura quando apresenta qualquer problema de saúde. A atenção primária - o
posto de saúde, unidade de saúde ou estratégia de saúde da família – deve
atender e oferecer resolutividade para a maior parte dos casos, cerca de 80%
deles. O desafio da atenção primária é não trabalhar em cima das especialidades
médicas, mas, intervir no sujeito como um todo, tendo como diretriz a promoção
e a prevenção em saúde. Entretanto, a atenção primária pode, em casos mais
específicos nos quais a intervenção do chamado especialista seja
imprescindível, acionar outros parceiros da rede que possam oferecer suporte e
parceria. Os CAPS, modalidade de serviço que trabalho, compõem exatamente este
trançado da rede, eles oferecem uma escuta especializada no campo da saúde
mental. Sendo assim, quase sempre recebemos encaminhamentos e demandas dos
demais parceiros da rede, em especial da atenção primária, apesar de também
recebermos demanda espontânea.
Ao
chegar no CAPS o sujeito passará por um dispositivo chamado: acolhimento. Como
o próprio nome diz, este é o momento que o sujeito será acolhido em sua
demanda, será escutado com cuidado por um ou mais profissionais do serviço, não
necessariamente o médico, para que se possa, a partir de então, construir uma
estratégia de intervenção. E o que temos notado nesses acolhimentos é que as
pessoas simplesmente não suportam ficarem infelizes, tristes, frustradas ou
enlutadas (e também não suportam ver outras pessoas nesse estado). É como se
elas agregassem um plus ao próprio sofrimento, sofrem pelo que as
fazem sofrer e sofrem porque estão sofrendo, como se não tivessem mais o
direito de ficarem infelizes.
Somos
procurados para fazer intervenção de saúde mental de alguém que está vivendo
uma situação de luto ou perda, por exemplo, e quer ser medicado porque está
chorando muito. Como assim? Então o sujeito perdeu um ente amado e precisa
estar de bom humor para ir ao cinema depois do enterro?
Mães
nos procuram com suas filhas adolescentes por chorarem trancadas no quarto
depois de uma desilusão amorosa. Então a famosa “dor de cotovelo” tornou-se um
grande mal a ser tratado com antidepressivos?
Certa
vez, recebemos o encaminhamento de uma senhora via atenção primária, cuja
queixa era insônia persistente e delírios persecutórios. Avaliando o caso com
cuidado no acolhimento, entendemos que a tal senhora não dormia porque estava
sendo ameaçada pelo marido há meses (ameaça real, não delírio de perseguição).
Ele dizia que jogaria água fervente no seu ouvido enquanto ela estivesse
dormindo. Alguém, por favor, me diga: como essa mulher poderia dormir? Não
dormir, nesse caso, é sinal de saúde e não de doença.
Esses
são alguns dos muitos exemplos que têm nos convocado a fazer intervenções muito
peculiares, diferentes daquelas que fazíamos há alguns anos atrás. Se, num
passado não muito distante, grande parte da nossa intervenção era feita no
sentido de autorizar as pessoas a serem felizes, hoje, temos precisado lançar
mão de intervenções que autorizem as pessoas a serem infelizes, a chorarem, a
sofrerem por um fracasso, uma perda, a mergulharem numa boa “dor de cotovelo”,
sem que com isso precisem ser medicadas ou enquadradas em algum diagnóstico de
transtorno mental.
Muitas
vezes precisamos dizer a essas pessoas que não precisam se envergonhar de chorar
a morte de alguém. Que é normal não dormirmos quando estamos endividados,
desempregados ou sendo ameaçados. Invariavelmente precisamos lembrar às mães
que elas também já choraram uma dor de amor e que sobreviveram. Precisamos
dizer que num acesso de raiva não é uma insanidade irreparável quebrar algumas
louças e a coleção de CDs. Às vezes precisamos dizer que (quase) todo mundo já
pensou em suicídio pelo menos uma vez na vida, e que a imensa maioria nunca
chegou a concretizá-lo.
Por
isso, a bandeira que levanto aqui é a seguinte: Se a felicidade é um
direito a infelicidade é uma necessidade. Um brinde a infelicidade nossa
de cada dia! Porque infelicidade não é doença, é parte da nossa condição
existencial, sem ela perdemos pelo menos a metade da nossa humanidade.
Então, que todos tenham
um 2013 feliz, mas quando a infelicidade vier, que possamos mergulhar nela em
paz...sem pudor (por Rita de Cássia de
A. Almeida, Psicóloga/psicanalista da Rede de Saúde Mental do SUS – Blog pessoal:
Não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar...).
Imagens: Gleide Bandarra e Jonas Vanda.