domingo, 27 de outubro de 2013

FLICA 2013: Os neoracistas e seus racismos anacrônicos


Início da mesa "Donos da terra?", na Flica 2013.
Terminou neste domingo (27/10/13) a terceira edição da Festa Literária Internacional de Cachoeira (Flica). Durante os cinco dias da festa o acontecimento mais significativo, sem dúvida, foi a manifestação contra o racismo, ocorrida no sábado (26/10) durante a mesa “Donos da terra? Os neoíndios, velhos bons selvagens”, que tinha como debatedores os cientistas sociais Demétrio Magnoli (USP) e Maria Hilda Baqueiro (UFBA), mediados  pelo educador Jorge Portugal.

O debate teve início com um questionamento, no mínimo insólito, levantado pelo mediador: teria sobrado tanto índio assim para se precisar de tanta terra? Muita gente na platéia ficou perplexa com a pergunta, sobretudo porque ninguém esperava que um debate que se pretendia sério e isento de qualquer juízo de valor ou mesmo tomada de qualquer partido, conforme alardeou a organização do evento antes mesmo a mesa iniciar suas atividades, começasse justamente com um questionamento tão capcioso.

Ao finalizar sua pergunta, o mediador passou a palavra para a Maria Hilda Baqueiro, que fez questão de frisar que as terras destinadas aos assentamentos indígenas não são, de fato, terras indígenas, mas, sim, terras da União e reservas florestais. Sendo assim, a União pode, a qualquer momento que julgar necessário, remanejar esses povos para onde avaliar ser mais adequado. Ademais, continuou ela, embora no Brasil a população indígena seja maior que a população indígena do Canadá e dos Estados Unidos, conforme havia mencionado o mediador do debate, os portugueses foram responsáveis por um dos maiores genocídios da história da humanidade. Em seguida, o Jorge Portugal cedeu a palavra para o Demétrio Magnoli, que explanou sobre o que ele chama de narrativas sobre os índios brasileiros.

Para o sociólogo da Universidade de São Paulo, existem quatro grandes narrativas sobre os índios brasileiros, construídas ao longo da história nacional. A primeira foi criada pelos missionários jesuítas, que desejavam “salvar” almas. A segunda, criada pelo movimento romântico brasileiro no período imperial, retratava um índio que não existia nem nunca existiu. A terceira, a do Marechal Rondon e dos irmãos Villas-Bôas, visava integrar o índio à sociedade brasileira. Por fim, a narrativa dos neoíndios, forjada, segundo ele, por ONG’s vinculadas a organizações internacionais. De acordo com o Demétrio Magnoli, esta última narrativa foi responsável por banir das escolas brasileiras de maneira irresponsável a narrativa de integração do índio à sociedade nacional proposta pelo Marechal Rondon e pelos irmãos Villas-Bôas, e com isso, criou-se no Brasil, segundo ele, uma nação racialista, dividida em raças, e não uma sociedade integrada, uniforme, verdadeiramente democrática.

Protesto pacífico contra o racismo realizado na Flica 2013.
Diante de tais impropérios, Maria Hilda Baqueiro deu uma verdadeira lição sobre história indígena no Brasil, deixando bem claro e explícito para os presentes o total desconhecimento do sociólogo uspiano sobre o tema do debate e o quão suas palavras e idéias estavam imbuídas de um senso comum bem rasteiro e de juízos de valor de uma camada social brasileira que não deseja, de modo algum, abrir mão dos seus privilégios de classe. Quando o Demétrio Magnoli pediu a palavra para contestar a Maria Hilda Baqueiro, uma voz gritou em alto e bom som: RACISTA! Era o início do protesto. Um grupo de jovens estudantes abriu uma faixa na qual se podia ler “Contra as cotas, só racista” e, assim, conseguiram impedir a reprodução de um discurso racista tão fartamente reproduzido pelos grandes veículos de comunicação, por meio de intelectuais como o Demétrio Magnoli, assumidamente contrário às políticas de ações afirmativas, das quais as políticas de cotas fazem parte.

Performance realizada durante o protesto.
A manifestação/protesto ocorreu de maneira extremamente pacífica. Nada foi depredado e nenhum dos presentes teve a sua integridade física ameaçada, ao contrário das inverdades caluniosas publicadas pelo periódico Correio da Bahia, que em nota não assinada distorceu deliberadamente os fatos, numa velha manobra bem conhecida de certos veículos de comunicação, que tentam de todas as maneiras apresentar à população em geral os movimentos sociais contra-hegemônicos como movimentos hostis à ordem democrática. Mas qual ordem democrática esses veículos defendem quando distorcem fatos e publicam calúnias?

Os meninos e meninas que protestavam apenas gritavam palavras de ordem e pediam para que o tema da mesa contemplasse a discussão sobre as cotas raciais. A organização da Flica, de maneira intransigente, se recusou a atender a reivindicação dos manifestantes. Diante disso, os meninos e meninas também se recusaram a negociar e passaram a exigir a saída do Demétrio Magnoli da mesa e o cancelamento da mesa da noite, da qual participaria o filósofo e ensaísta pernambucano Luiz Felipe Pondé. Devido ao impasse que se formou, a organização da Flica decidiu encerrar a mesa e anunciou que ela voltaria a ocorrer às treze horas de portas fechadas, deixando bem claro o conceito que eles têm sobre democracia. Como os meninos e meninas que protestavam, assim como aqueles que apoiavam o movimento, se recusaram a sair para evitar que fossem impedidos de adentrar o recinto no turno vespertino, a organização do evento cortou o ar-condicionado do salão, a comunicação wi-fi e, também, impediu que as pessoas tivessem acesso a água e aos sanitários. E como se não bastasse tudo isso, os meninos e meninas é que foram acusados de anti-democráticos, intransigentes e radicais.
Performance que lembrava o genocídio de negros e índios.

O que esses meninos e meninas fizeram foi uma verdadeira demonstração do espírito democrático, pois reivindicavam o direito de fala de sujeitos historicamente forçados a se calar e, mais que isso, defendiam, em última instância, dois dos pilares fundamentais da democracia, que são a igualdade e a liberdade, haja vista que todo e qualquer discurso, assim como todo e qualquer veículo de comunicação, que difunda ou ajude a difundir idéias e ideais racistas, sexistas, homofóbicos, fascistas e nazistas atentam contra a liberdade e a igualdade (igualdade essa que não suprima as desigualdades e especificidades ontológicas e identitárias) de povos e indivíduos, como, também, atentam contra os direitos humanos e a história já nos mostrou isso. Sendo assim, tais discursos são um atentado contra a democracia. Ser democrático não é permitir que qualquer um fale qualquer coisa. Ser democrático é lutar em defesa da dignidade humana. Espero que os organizadores da Flica, os neoracistas e os reacionários de plantão que lá estavam tenham aprendido e apreendido a lição dada por esse grupo de jovens que demonstraram para o Brasil e para o mundo porque que Cachoeira sustenta o título de cidade heróica, pois é o berço das lutas contra a escravidão no Brasil e das lutas por liberdade (por Silvio Benevides).

Imagens: Silvio Benevides.

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

O Menino do Gouveia



Estendido junto a mim na cama suspirativa do chateau, depois de ter sido enrabado duas vezes, tendo na mão macia e profissional a minha respeitável porra, em que fazia umas carícias aperitivas, o menino do Gouveia, isto é, o Bembem, contou-me pitorescamente a sua história com todos os não-me-bulas de sua voz suave de puto matriculado.

- Eu lhe conto. Eu tomo dentro por vocação; nasci para isso como outros nascem para músicos, militares, poetas ou até políticos. Parece que quando me estavam fazendo, minha mãe, no momento da estocada final, peidou-se, de modo que teve todos os gostos no cu e eu herdei também o fato de sentir todos os meus prazeres na bunda.

Quando cheguei aos meus treze para catorze anos, em que todos os rapazes têm uma curiosidade enorme em ver uma mulher nua, ou pelo menos um pedaço de coxa, um seio ou outra parte do corpo feminino, eu andava a espreitar a ocasião em que algum criado, ou mesmo meu tio, ia mijar, para deliciar-me com o espetáculo de um caralho de um homem.

Não sei por que era, eu sentia uma atração enorme para o instrumento de meus prazeres futuros.

Havia então, entre os empregados, um que possuía uma parativelas que era mesmo um primor de grossura e comprimento, fora a cabeçorra formidável. Uma destas picas que nos consolam até a alma!

Entretanto, o que mais aguçava a minha curiosidade e me dava um desejo insofrível, era poder ver a porra de meu tio. Este, porém, era muito cauteloso, e jamais ia satisfazer as suas necessidades sem trancar a porta da privada, ficando eu deste modo com o único recurso de calcular e julgar, pelo volume que lhe via na perna esquerda, as dimensões do seu mangalho que parecia ser colossal.

Um dia em que ele e titia foram à cidade muni-me de uma verruma e fiz na porta do quarto dos mesmos uma série de buracos dispostos de maneira que eu pudesse observar todos os movimentos noturnos.

- Confesso, Capadócio Maluco – acrescentou o Bembem, aumentando o movimento punhetal que vinha fazendo na minha pica -, que nem uma só vez me passou pela cabeça a idéia de que ia ver a titia nua ou quase nua. O meu único pensamento era poder apreciar ereto o membro viril do titio.

Nessa noite, mal nos recolhemos aos dormitórios, eu fui postar-me, metido na comprida camisola de dormir, na porta e com os olhos pregados nos furos previamente feitos.

Parece, porém, que o casal não tinha pressa nenhuma em se foder ou então ambos andavam fartos, pois meu tio, em camisa de meia, sem tirar as calças, sentou a ler um livrinho que depois eu souber ser da Coleção Amorosa do Rio Nu, enquanto minha tia, em mangas de camisa, principiou uma temível caçada a algumas pulgas teimosas.

Se eu gostasse de mulher, teria me deliciado vendo, nos movimentos bruscos da caçada, os seios da moça, que eram alvíssimos, de bicos vermelhos, redondos e rijos como se ela ainda fosse cabaçuda; porém todo o meu prazer, toda a minha curiosidade, estavam entre as pernas do tio, no seu caralho, cuja lembrança me punha comichões na bunda.

Afinal, ela parece que cansou na perseguição dos pequenos animais, pois deixou cair a saia e rapidamente substituiu a camisa por uma pequena camiseta de meia de seda que lhe chegava até o meio das nádegas.

Mesmo sem querer, tive que admirar-lhe as pernas bem-feitas, as coxas grossas, torneadas e muito claras, a basta pentelhada castanho-escura e - com quanta raiva o confesso! – o seu traseiro, amplo, macio, gelatinoso.

Ah! se eu tivese um cu daqueles, era feliz! Era impossível que meu titio, tendo ao seu dispor um cagueiro daqueles, pudesse vir a gostar da minha modesta bunda! Quanto ciúmes eu tive da tia naquela noite!

Parece que a leitura do tal livrinho produziu alguma coisa em titio. Ele principiou a olhar de vez em quando para a mulher, estendida de papo para o ar sobre o leito; depois passou várias vezes a mão pela altura da pica.

Finalmente levantou-se, num momento tirou toda a roupa e caminhou para a cama.

Oh! Céus! Eu então pude ver, com toda a dureza que uma tesão completa lhe dava, os vinte e cinco centímetros de nervo com que a Natureza o brindara. Que porra!

Grande, rija, grossa, com uma chapeleta semelhante a um pára-choques da Central e fornida dum par de colhões que devia ter leite para uma família inteira.

Ele chegou-se ao leito, começou a beijar a esposa nos olhos, na boca, no pescoço, nos seios e depois, quando a sentiu tão arreitada como ele estava, afastou-lhe as belas coxas, trepou para cima do leito e eu, do meu observatório, vi aquele primor de pica deslizar suavemente e sumir-se todo pelo cono papudo da titia, que auxiliava a entrada do monstro fazendo um amestrado exercício de quadris, a suspirar, a gemer, a vir-se, no mais completo dos gozos, na mais correta das fodas.

Não quis ou não pude assistir ao resto da cena. Eu tinha uma sensação esquisita no cu, parecia que as pregas latejavam. Mais tarde vim a saber que isso era tesão na bunda.

Corri para o meu quarto, fechei-me por dentro, atirei para longe a camisola, que me incomodava e, tendo arrancado a vela do castiçal, tentei metê-la pelo cu acima a ver se me acalmava. Fui caipora; as arestas da bugia machucavam-me o ânus e não a deixavam entrar.

Passei uma noite horrível.


De acordo com os pesquisadores James Green e Ronald Polito (In: Frescos Trópicos) O menino do Gouveia é considerado o primeiro conto erótico gay publicado no Brasil, editado pela revista Rio Nu, em 1914 e assinado por Capadócio Maluco, um pseudônimo. Na época Gouveia era a gíria para homens velhos que se relacionavam sexualmente com garotões.

Imagem: "The Absinthe drinkers". Paris.1895 (anônimo).

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

O silêncio das sereias



Comprovação de que mesmo meios insuficientes, e até infantis, podem conduzir à salvação.

A fim de proteger-se das sereias, Ulisses entupiu os ouvidos de cera e mandou que o acorrentassem com firmeza ao mastro. É claro que, desde sempre, todos os outros viajantes teriam podido fazer o mesmo (a não ser aqueles aos quais as sereias atraíam já desde muito longe), mas o mundo todo sabia que de nada adiantava fazê-lo. O canto das sereias impregnava tudo -- que dirá um punhado de cera --, e a paixão dos seduzidos teria arrebentado muito mais do que correntes e mastro. Nisso, porém, Ulisses nem pensava, embora talvez já tivesse ouvido falar a respeito; confiava plenamente no punhado de cera e no feixe de correntes, e, munido de inocente alegria com os meiozinhos de que dispunha, partiu ao encontro das sereias.

As sereias, porém, possuem uma arma ainda mais terrível do que seu canto: seu silêncio. É certo que nunca aconteceu, mas seria talvez concebível que alguém tivesse se salvado de seu canto; de seu silêncio, jamais. O sentimento de tê-las vencido com as próprias forças, a avassaladora arrogância daí resultante, nada neste mundo é capaz de conter.

E, de fato, essas poderosas cantoras não cantaram quando Ulisses chegou, seja porque acreditassem que só o silêncio poderia com tal opositor, seja porque a visão da bem-aventurança no rosto de Ulisses -- que não pensava senão em cera e correntes -- as tenha feito esquecer todo o canto.

Ulisses, contudo, e por assim dizer, não ouviu-lhes o silêncio; acreditou que estivessem cantando e que somente ele estivesse a salvo de ouvi-las; com um olhar fugaz, observou primeiro as curvas de seus pescoços, o respirar fundo, os olhos cheios de lágrimas, a boca semi-aberta; mas acreditou que tudo aquilo fizesse parte das árias soando inaudíveis ao seu redor. Logo, porém, tudo deslizou por seu olhar perdido na distância; as sereias literalmente desapareceram, e, justo quando estava mais próximo delas, ele já nem mais sabia de sua existência.

Elas, por sua vez, mais belas do que nunca, esticavam-se, giravam o corpo, deixavam os cabelos horripilantes soprar livres ao vento, soltando as garras na rocha; não queriam mais seduzir, mas somente apanhar ainda, pelo máximo de tempo possível, o reflexo dos grandes olhos de Ulisses.

Se as sereias tivessem consciência, teriam sido aniquiladas então; mas permaneceram: Ulisses, no entanto, escapou-lhes.

Dessa história, porém, transmitiu-se ainda um apêndice. Diz-se que Ulisses era tão astuto, uma tal raposa, que nem mesmo a deusa do destino logrou penetrar em seu íntimo; embora isto já não seja compreensível ao intelecto humano, talvez ele tenha de fato percebido que as sereias estavam mudas, tendo então, de certo modo, oferecido a elas e aos deuses toda a simulação acima tão-somente como um escudo.

Franz Kafka, 23 de outubro de 1917.

Original alemão extraído de Franz Kafka. Beim Bau der chinesischen Mauer und andere Schriften aus dem Nachlaß (in der Fassung der Handschrift), Frankfurt am Main, Fischer Taschenbuch Verlag (12446), November 1994, S. 168-170. Edições anteriores intitulavam-no "Das Schweigen der Sirenen"  [O silêncio das sereias], título que, no entanto, lhe foi dado por Max Brod.

Imagem: Ulisses e as Sereias por Herbert James Draper.