segunda-feira, 30 de maio de 2011

Deu no Fantástico: Fernando Henrique defende regulamentação da maconha e causa polêmica

Na postagem anterior o Salvador na sola do pé reproduziu uma entrevista do professor e pesquisador Antonio Nery Filho, um dos principais responsáveis pela criação do CETAD – Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas, vinculado à Universidade Federal da Bahia, e, hoje, consultor da Secretaria da Saúde de Salvador para Álcool e Outras Drogas. Na entrevista ele afirma ser um absurdo a idéia de que para os usuários de crack só há duas opções: cadeia ou caixão. “Não gosto desta dicotomia do ‘crack é cadeia ou caixão’. Parece que não há alternativa para o usuário. Ninguém se trata, ninguém muda”?

As drogas fazem parte da parte do nosso dia a dia quer queiramos ou não. Se as sociedades classificam-nas como um problema, então, é preciso buscar soluções para esse problema pautadas em argumentos consistentes e não em preconceitos ou tabus que em nada ajudam. Tratar a questão das drogas como caso de polícia já se mostrou uma saída pouco eficiente. Sendo assim, será preciso encontrar outras formas de combate como, talvez, a regulamentação do consumo. “O que nenhum político tem falado é da violência. Hoje, o usuário, para comprar drogas, tem que entrar em contato com o tráfico, que é regido por uma imensa violência. E do outro lado estão os problemas de saúde relacionados ao consumo. Se eu retirasse a violência do tráfico e cuidasse apenas dos problemas de saúde, não seria mais interessante? Quando um adolescente vai comprar maconha, ele encontra no mesmo lugar cocaína e crack. Se o contato com o comerciante generalista fosse evitado, isso não reduziria a possibilidade de ele fazer experiências com drogas mais graves”?

Esta semana o programa Fantástico da Rede Globo exibiu uma matéria sobre o documentário “Quebrando o tabu”, dirigido por Fernando Gronstein Andrade, no qual o ex-presidente do Brasil e outras autoridades defendem a regulamentação do uso da maconha como uma maneira mais eficiente de se combater o tráfico, já que a repressão pura e simples praticada ao longos dessas últimas três décadas não tem surtido nenhum efeito positivo. Abaixo está reproduzida a matéria exibida no Fantástico do dia 29/05/2011. O debate está posto (por Sílvio Benevides).

Ex-presidente conduz o documentário “Quebrando o tabu”. No filme, ex-presidentes reconhecem que falharam em suas políticas de combate às drogas – Um ex-presidente da república roda o mundo, grava um documentário e levanta uma bandeira bem polêmica. Segundo ele, o consumo de maconha deveria ser regulamentado. Sábado, 21 de maio, Centro de São Paulo. A Marcha da Maconha, proibida pela Justiça, vai às ruas e é reprimida pela polícia. “Não adianta querer tratar um debate de ideias com porrada. A gente não vai aceitar, a gente vai continuar”, argumenta o jornalista Júlio Delmanto.

As vozes pela descriminalização, ou até pela liberação da maconha, estão ganhando apoio de peso. O líder do PT na Câmara dos Deputados, Paulo Teixeira, já defendeu publicamente até a formação de cooperativas para o plantio de maconha. E agora o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, prestes a completar 80 anos, conduz um documentário que defende a descriminalização do uso de drogas e a regulação do uso da maconha. Por que o presidente resolveu meter a mão nesse vespeiro? “Porque é um vespeiro. As pessoas não tem coragem de quebrar o tabu e dizer: vamos discutir a questão”, diz Fernando Henrique Cardoso.

No filme “Quebrando o tabu”, que estreia nesta semana, Fernando Henrique Cardoso e ex-presidentes do México, Ernesto Zedillo; da Colômbia, César Gaviria; e dos Estados Unidos, Jimmy Carter e Bill Clinton reconhecem: falharam em suas políticas de combate às drogas. Perguntado sobre o motivo pelo qual não foi implementado em seu governo, Fernando Henrique Cardoso responde: “Primeiro porque eu não tinha a consciência que tenho hoje. Segundo que eu também achava que a repressão era o caminho”.

Todos concluem que a guerra mundial contra as drogas, iniciada há 40 anos, é uma guerra fracassada. Bilhões de dólares são gastos no mundo inteiro, mas o consumo cresce, e cresce o poder do tráfico, espalhando a violência. As armas constantemente recolhidas dos traficantes no Rio de Janeiro são a prova de que a polícia trabalha enxugando gelo. É preciso ir além das apreensões de drogas e do combate aos traficantes. “Um ponto central é questionar a lógica de guerra, não é defender o uso da droga. É apenas dizer: ‘vamos ver, vamos pensar se não existem jeitos mais inteligentes e mais eficientes de lidar com esse assunto’”, diz o diretor do filme Fernando Gronstein Andrade.

No Brasil, a maconha é a droga mais difundida. Consumida por 80% dos usuários de drogas; 5% da população adulta. Mas é inofensiva a ponto de ser legalizada? “Não há droga inofensiva. Qualquer coisa depende da dose, da sensibilidade do indivíduo. Agora, entre as drogas usadas sem finalidade médica para fins de divertimento, para fins de recreação, a maconha é bastante segura”, afirma Elisaldo Carlini,médico da Unifesp especializado em drogas. Palavra de quem há mais de 40 anos estuda a questão e trata dependentes. O professor Elisaldo Carlini representa o Brasil nas comissões de drogas da Organização Mundial da Saúde (OMS) e das Nações Unidas. “Defendo totalmente a descriminalização”, diz Carlini.

“Eu sou contra porque quanto mais fácil você tornar a droga disponível na sociedade, maior será o consumo”, defende o psiquiatra da Unifesp Ronaldo Laranjeira. O professor Ronaldo Laranjeira trata de dependentes químicos há 35 anos. “Ela é uma droga perigosa. Um dos principais exemplos é que 10% de todos os adolescentes menores de 15 anos que experimentam com a maconha vão ter um quadro psicótico”, afirma.

Na lista das drogas mais perigosas publicada na revista médica “Lancet”, respeitada no mundo inteiro, a maconha aparece em 11º lugar, bem atrás do álcool e até mesmo do cigarro, que são vendidos legalmente. “Álcool é mais letal do que maconha. Não se diz isso, mas é. Pelo menos os dados mostram isso. Então, temos que discutir e diferenciar, regular o que pode e o que não pode”, defende o ex-presidente Fernando Henrique.

Regular não é o mesmo que legalizar. E foi isso que Fernando Henrique Cardoso descobriu indo para a Holanda. Lá a maconha é vendida em cafés. Mas o governo não legalizou o uso indiscriminado. Funciona assim: a regulamentação determina que você não pode consumir nas ruas, nem vender fora dos cafés; nos locais determinados, fuma-se maconha sem repressão policial. “Na Holanda é muito interessante. Os meninos de colégio – eu conversei com eles - não têm curiosidade pela maconha, porque é livre”, garante Fernando Henrique Cardoso.

O consumo de maconha é tolerado e, mesmo assim, vem caindo. Desde 2006, a lei brasileira já trocou a prisão por penas alternativas para quem é pego com drogas e considerado usuário, não traficante. Mas que quantidade de drogas, que situação caracteriza o tráfico? Isso a lei deixa a critério do juiz. É uma linha difícil de estabelecer. Como o doutor Drauzio Varella explica no documentário: “Como a droga é criminalizada, é um crime você possuir a droga, não vão dez pessoas comprar se uma pode comprar e dividir entre as dez. E o menino que usa droga percebe que, dessa maneira, também se ele vender um pouquinho mais caro, a dele sai de graça”, argumenta o médico no filme. Nesse caso, o usuário vira traficante e acaba na prisão, onde, como se sabe, a droga circula facilmente.

Em Portugal, o consumo de entorpecentes não dá mais cadeia desde 2001. Mas há uma penalidade: o usuário tem que fazer tratamento médico e prestar serviço social. “A maior parte dos que usam drogas quer sair dessa situação. E a existência de um caminho que não os leve à cadeia, mas que leve ao tratamento, é positiva”, ressalta Fernando Henrique. O ministro da Saúde de Portugal explica que dez anos depois o tratamento é gratuito para dependência em todo tipo de droga – da maconha ao crack. “Dez anos depois, o que nós vemos? Os nossos jovens consomem menos drogas ilícitas”, revela o ministro.

“Eu não vejo nenhum sentido em criminalizar o uso e a posse dessas drogas todas. É um caso de saúde, não é um caso de polícia”, avalia Elisaldo Carlini. Mas qual é a estrutura que o Brasil tem hoje para tratar seus dependentes? “Essas pessoas ficam perambulando pelo sistema de saúde ou perambulando, literalmente, pelas ruas, no caso dos usuários de crack. E você fica desassistindo ativamente essa população”, comenta Ronaldo Laranjeira.

O Ministério da Saúde já fez as contas do que falta para tratar dependentes químicos: 3,5 mil leitos hospitalares, 900 casas de acolhimento e 150 consultórios de rua, para chegar às cracolândias, por exemplo. Mas a previsão é atingir essa meta só em 2014. “Como Ministro da Saúde, tenho opinião como ministro. Exatamente isso: nós do Sistema Único de Saúde (SUS) precisamos reorganizar essa rede e ampliá-la rede para acolher usuários de drogas, sejam lícitas ou ilícitas”, afirma Alexandre Padilha.

Na Suíça e na Holanda, existem os projetos chamados de redução de danos: dependentes de drogas pesadas, como heroína, recebem do governo a droga e agulhas limpas. “É terrível ver isso. Mas você vê também que ali está um doente, não um criminoso”, constata Fernando Henrique Cardoso. Triste, mas é essa redução de danos que evita a transmissão de doenças infecciosas, mortes por overdose e a ligação dos usuários com o crime. “Eu não estou pregando isso para o Brasil, porque a situação é diferente, o nível de cultura, riqueza e violência é diferente. Cada país tem que buscar seu caminho. É isso que eu acho fundamental. Quebrar o tabu, começar a discutir e ver o que nos fazemos com a droga”, diz Fernando Henrique Cardoso.

Ouvindo um ex-usuário famoso, o documentário dá uma pista: campanhas de prevenção abertas e honestas podem funcionar. “O grande perigo da droga é que ela mata a coisa mais importante que você vai precisar na vida: o seu poder de decidir. A única coisa que você tem na sua vida é o seu poder de decisão. Você quer isso ou quer aquilo? Seja aberto, seja honesto. Realmente, a droga é fantástica, você vai gostar. Mas cuidado, porque você não vai poder decidir mais nada. Basta isso”, alerta o escritor Paulo Coelho (Fonte: fantastico.globo.com).

Imagem: Priscila Marotti.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

A questão das drogas no Brasil

As drogas, especialmente as ilícitas, ainda são um tema tabu. Devido a constante associação entre drogas e criminalidade, costuma-se evitar a discussão sobre a função que estas substâncias sempre desempenharam e desempenham na história da humanidade, como se essa atitude pudesse resolver os problemas decorrentes do uso e abuso de drogas. Quando a discussão ocorre, comumente ela vem destituída de argumentos técnico-científicos pouco consistentes ou, o que é pior, vem impregnada de falsos moralismos. Seja como for, trata-se de um tema que não pode ser ignorado, mas, sim, debatido e enfrentado por meio de políticas públicas realmente eficazes e não com terrorismo publicitário. O uso de drogas ilícitas ou não tem um impacto na sociedade. Em relação às ilícitas, por exemplo, é preciso discutir o fortalecimento do narcotráfico decorrente do seu uso. Em relação às lícitas, como álcool, é preciso avaliar o seu impacto na sociedade. Não se trata aqui de defender a proibição ou legalização desta ou daquela substância. Trata-se, apenas, de levantar uma importante discussão.

O que não pode ocorrer de maneira alguma é tratar a questão das drogas com dois pesos e duas medidas, de acordo com os interesses do mercado, como vem ocorrendo. Eu não entendo, por exemplo, porque o álcool, uma droga que pode causar dependência tanto quanto outras drogas e que costuma estar associada aos inúmeros casos de violência doméstica, contra mulheres, crianças e adolescentes, violência no trânsito urbano e nos vários casos de acidentes e mortes nas estradas brasileiras, além, é claro, da violência em grandes festas, a exemplo do carnaval, tem o seu comércio e propaganda liberados e outras com um potencial destrutivo infinitamente menor, ao menos no que tange às relações sociais, são consideradas verdadeiras obras do demônio e, por isso, proibidas. O tabaco, por exemplo, tem sofrido constantes ataques que denunciam o mal que ele faz à saúde. As campanhas publicitárias sofrem diversos tipos de controle, várias leis municipais e estaduais restringem o seu uso, especialmente em locais fechados. Entretanto, não me consta que existam casos de maridos que bateram nas suas esposas e/ou filhos após passar a noite toda fumando tabaco, nem de gente que iniciou uma violenta briga no carnaval após ter fumado um maço de cigarros. Por que tanta campanha contra o cigarro e pouca contra o álcool? Não entendo. Será que é porque os fabricantes de bebidas alcoólicas são grandes patrocinados de astros e estrelas das artes, principalmente da música, são grandes patrocinadores de festas, shows e eventos esportivos? Talvez (por Sílvio Benevides).

São muitos os questionamentos e as dúvidas. Por essa razão o Salvador na sola do pé decidiu reproduzir abaixo a entrevista do professor e pesquisador Antônio Nery, realizada pela jornalista Tatiana Mendonça para a revista Muito. Leia, reflita, opine.

CRACK: É CADEIA OU CAIXÃO – UMA PROPOSIÇÃO INDECENTE - O crack ganhou ruelas e outdoors. O do governo dizia que a substância é responsável por 80% dos homicídios no Estado. O de grupos de comunicação, que é cadeia ou caixão. O professor e pesquisador Antonio Nery Filho, 66, não acredita em nada disso. Dê ouvidos ao que ele diz, porque passou 30 anos, quase metade da vida, estudando drogas. Mas Nery não concordaria com essa afirmação. Diria que estuda pessoas. “As pessoas são mais importantes porque é o homem que pensa. As drogas não pensam”. Formado em medicina pela Ufba e doutor em ciências sociais pela Universidade de Lyon, na França, criou há 25 anos o Cetad – Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas, vinculado à Universidade Federal da Bahia. Ele também é consultor da Secretaria da Saúde de Salvador para Álcool e Outras Drogas.

COMO AS CAMPANHAS CONTRA O CRACK REPERCUTEM NOS USUÁRIOS?

As campanhas transversais, de curta duração, nunca produziram grandes efeitos positivos. Elas causam efeitos negativos, à medida que as mudanças positivas demoram muito. Do ponto de vista da natureza humana, não é fácil a adoção de um comportamento que venha quase contra um certo instinto natural, que é o da desordem e da destruição. A organização humana se faz pela via da violência, não da paz. Agora, na medida em que a violência se instala, os humanos começam a fazer leis para controlar aquilo que é “natural”. Lembro que, no final dos anos 1970, o LSD era uma substância muito temida. As pessoas achavam que ela ia ganhar o mundo e nós dizíamos que não, porque o ácido lisérgico não é capaz de produzir dependência química ou física e, por outro lado, produz muita doença. As pessoas não procuravam doença. Então, não era uma boa substância de mercado. Com o crack, é a mesma coisa.

POR QUE?

Porque é uma substância que produz doença e morte muito fácil. Crack é cloridrato de cocaína, é a mesma cocaína associada a outros produtos. Quando alguém usa cocaína via pulmonar, a quantidade de princípio ativo que ocupa o organismo e, particularmente, o sistema nervoso central é tão grande que produz gravíssimos danos. Os usuários se desorganizam muito rápido, psiquicamente, fisicamente e socialmente. Isso quer dizer que um dependente de crack não é bom para o comércio porque ele não é, do ponto de vista social, acessível; do ponto de vista psíquico, enlouquece rapidamente; e, do ponto de vista físico, corre o risco de morrer muito rapidamente. Logo, é um mau cliente. E os traficantes sabem disso. Então, apoiado nisto e em estudos epidemiológicos, tenho dito que o consumo de crack não tem futuro. Primeiro, pela pouca viabilidade comercial e, segundo, pelo fato de que os usuários têm se restringido quase que exclusivamente aos excluídos dentre os excluídos. Mas esse público que o senhor diz que morre rapidamente também se renova. Essa é uma questão. Se considerarmos que temos uma grande população periférica abandonada, é evidente que haverá uma circulação do crack durante um certo tempo entre essa população. O problema é que se fala do crack como se ele estivesse sendo acessado por todas as camadas sociais e de modo epidêmico. Penso que isso não é verdade. Li que a novela Passione tem um personagem que era um ciclista, bonito, rico, que começa a usar anfetamina para ter bons resultados e que da anfetamina passa para o crack. Acho que a intenção de chamar atenção para o produto produzirá mais danos que benefícios. As pessoas não passam da anfetamina para o crack, porque quem usa anfetamina necessita de uma substância para o desempenho. Para mostrar isso, a novela precisaria evidenciar o quanto este personagem era doente do ponto de vista social ou psíquico.

ENTÃO O SENHOR NÃO ACREDITA QUE O CRACK VÁ SE EXPANDIR PARA A CLASSE MÉDIA.

Vem-se falando muito disso, como se falava do ácido, ou que a maconha tomaria o Brasil e nossos filhos seriam todos usuários. E nós continuamos tendo no álcool e no tabaco danos sociais muito maiores. Uma recente pesquisa da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad) com universitários mostrou que 0,2% entre 14 mil interrogados tiveram algum contato com o crack. Por quê? Porque eles sabem que usar crack é saltar de paraquedas sem paraquedas. As pessoas usam droga pelo prazer ou para uma suprir uma necessidade subjetiva. E o crack é uma droga monstruosa que supre necessidades monstruosas. Quem disse que a classe média tem faltas monstruosas a serem suprimidas? Depois, não gosto desta dicotomia do ‘crack é cadeia ou caixão’. Parece que não há alternativa para o usuário. Ninguém se trata, ninguém muda? O que nenhum político tem falado é da violência. Hoje, o usuário, para comprar drogas, tem que entrar em contato com o tráfico, que é regido por uma imensa violência. E do outro lado estão os problemas de saúde relacionados ao consumo. Se eu retirasse a violência do tráfico e cuidasse apenas dos problemas de saúde, não seria mais interessante? Quando um adolescente vai comprar maconha, ele encontra no mesmo lugar cocaína e crack. Se o contato com o comerciante generalista fosse evitado, isso não reduziria a possibilidade de ele fazer experiências com drogas mais graves?

HÁ UMA IDEIA MUITO DIFUNDIDA DE QUE O DEPENDENTE DE CRACK E OUTRAS SUBSTÂNCIAS MAIS AGRESSIVAS É ALGUÉM “POSSUÍDO” PELA DROGA. QUANTO DISSO É REAL?

Em 30 anos de trabalho, tenho defendido que nós podemos ter contato com coisas boas e ruins, transitoriamente, inclusive. Uma pessoa pode, num determinado momento, usar cocaína e, depois, não precisar mais. Por outro lado, nós sabemos que os seres humanos têm muitos outros recursos, além das drogas, para encarar suas dificuldades. Portanto, quando se diz que alguém virou um possuído, se esquece de dizer que esse é o estágio final do uso de drogas para estas pessoas.

ESPECIALISTAS DIZEM QUE O IDEAL É QUE O TRATAMENTO E EVENTUAL INTERNAÇÃO SEJAM VOLUNTÁRIOS. ISSO VALE APENAS PARA OS CASOS MAIS EXTREMOS?

Quando alguém se torna dependente, um dos comprometimentos da doença é a perda da vontade. Então nessa condição as pessoas não buscam tratamento. Mas os adolescentes que não estão doentes buscam; as pessoas que começam a beber um pouco mais buscam informação, algum tipo de cuidado, sem o comprometimento da sua vontade. Então é saber que oferta nós estamos fazendo na saúde. As pessoas têm muito medo de serem tratadas como loucas quando elas de fato não são. É preciso que nós possamos transmitir que orientação, informação, psicoterapia não significam que essa pessoa será considerada uma louca incurável que precise de internação. A pessoa deve ser internada quando não há mais alternativa de um tratamento ambulatorial ou quando ela está completamente doente do ponto de vista físico, psíquico e social.

COMO O SENHOR VÊ OS TRATAMENTOS QUE SÃO VINCULADOS À RELIGIÃO, COMO SE A “CURA” VIESSE DE DEUS?

As comunidades terapêuticas se tornaram uma alternativa à insuficiência de meios da saúde pública. Mas elas não fazem distinção de quem é quem e aceitam todas as pessoas: psicóticas, não-psicóticas, adolescentes... A porta de entrada é muito larga. É preciso separar as categorias de consumidores, para que um adolescente que use maconha não seja colocado junto a pessoas que estão em outras dimensões mais graves de uso. O segundo aspecto é que elas usam como pressuposto do acolhimento a fé. E a fé fica comprometida quando há uma doença mental ou uma relação com a droga.

EM QUE O CETAD MAIS CONTRIBUIU PARA MUDAR A VISÃO SOBRE DROGAS NA BAHIA?

Inauguramos um novo modo de pensar a partir da pessoa, ajudando a “desdemonizar” o consumo. As pessoas são mais importantes que as drogas porque é o homem quem pensa, as drogas não pensam. Isso é fundamental. Também inauguramos, em 1995, a prática da redução de danos, que significa reconhecer a liberdade da pessoa no contato com as coisas do mundo, ajudando-a a se prejudicar menos. Isso foi uma revolução. Em 1995, nós criamos o consultório de rua, para atender pessoas que, por impossibilidade social, nunca viriam até aqui. Há dois meses, o consultório foi reativado e funciona em Salvador e Lauro de Freitas, atendendo crianças e jovens que vivem nas ruas. Vamos implantar outro em Camaçari.

POR QUE O SENHOR ACEITOU O CONVITE PARA SER CONSULTOR DA PREFEITURA?

Porque envelheci (risos), porque acho que 30 anos de trabalho me permitiram acumular uma experiência grande e, terceiro, porque estamos vivendo um momento especial. Veja que o Cetad foi o único serviço de assistência aos usuários durante 20 anos. Hoje, temos dois, o Centro de Atenção Psicossocial – Álcool e Drogas de Pernambués e o Gey Espinheira. Esse é o mais importante, porque não havia na Bahia nenhuma possibilidade de internar crianças e adolescentes. E funciona também como ambulatório, atende a família... A ideia é implantar mais quatro Caps AD até 2011 (por Tatiana Mendonça para a Revista Muito, n. 131, 03/10/2010).

Imagem: Célio Costa

segunda-feira, 16 de maio de 2011

O poderoso THOR

O filme Thor, em cartaz nos cinemas de Salvador, não é só ação e aventura, como convém às boas histórias de super-heróis e deuses míticos. Trata-se de um filme que pode levar muitos dos seus espectadores a elaborarem reflexões interessantes sobre, por exemplo, a relação entre pais e filhos, entre as diferentes gerações, sobre poder, respeito, sabedoria e, também, sobre o temperamento intempestivo e rebelde, geralmente referido como uma característica nata dos jovens. Rebeldia necessária para promover mudanças, mas que deve ser bem canalizada e orientada para que, ao invés de mudanças saudáveis, promova tragédias irreparáveis. Desconfio que isso se deva ao trabalho do diretor Kenneth Branagh, um profissional das artes com conteúdo. Ao contrário do que muitos por aí costumam pensar e difundir, conteúdo faz muita diferença, especialmente se ele vem acompanhado de talento. Trata-se de uma produção voltada para arrecadar grandes somas nas bilheterias do mundo e, portanto, sem compromisso com reflexões filosóficas profundas. Ainda assim, para quem desejar, claro, é possível ir além do óbvio para acessar o discurso que é dito de forma nada explícita. Vale a pena assistir essa super produção hollywoodiana. Confira abaixo entrevista com o diretor. Boa leitura (por Sílvio Benevides).

Formado pela Academia Real de Arte Dramática, fundador da Companhia de Teatro Renaissance... o currículo de Kenneth Branagh transborda erudição. Nos palcos e no cinema, o ator e cineasta irlandês de 50 anos é conhecido como um expert na obra do poeta e dramaturgo inglês William Shakespeare (1564-1616), por trás de filmes como Henrique V (1989), Muito barulho por nada (1993) e Hamlet (1996).

Mas Branagh também é pop. Fã assumido dos super-heróis criados por Stan Lee e Jack Kirby, ele foi convocado para dirigir a adaptação para o cinema de “Thor” e insinua que pode haver mais semelhanças entre as fantasias kitsch e cenários multicoloridos do filme e as intrigas e tragédias dos reis e príncipes de Shakespeare do que sonha a nossa vã filosofia.

“Há uma associação superficial que todos nós fazemos, do tipo cultura alta e baixa. Alguns pensam que histórias em quadrinhos não são literatura de verdade, só por causa da forma que são contadas: através de desenhos e letrinhas dentro de balõezinhos. Eles estão completamente enganados”, sentencia o ator e diretor em entrevista concedida ao G1 em Londres no início de abril.

G1 - Quem foi a primeira pessoa que você quis escalar para o filme?
Kenneth Branagh
- Claro que foi o Thor. Decidimos desde o início que teria de ser alguém razoavelmente desconhecido. Sabíamos que teria de ser um ator que pudesse se preparar fisicamente e que, ao mesmo tempo, fosse bastante sensível. Após longa pesquisa, achamos o Chris Hemsworth.

G1 - Você já dirigiu e atuou em pequenas produções além de historias baseadas na obra de William Shakespeare. Realizar "Thor" foi mais difícil do que adaptar Shakespeare para o cinema?
Branagh
- Foi fenomenalmente difícil. Realizar um blockbuster de verão pode ser, de alguma forma, muito mais complicado do que montar uma obscura peça em um teatro alternativo ou dirigir um filme independente.

G1 - Por quê?
Branagh
- Porque há uma associação superficial, que todos nós fazemos, do tipo cultura alta e baixa. As pessoas imaginam que deve ser fácil realizar um trabalho simplesmente por que ele está relacionado aos quadrinhos. Alguns pensam que histórias em quadrinhos não são literatura de verdade, só por causa da forma que são contadas: através de desenhos e letrinhas dentro de balõezinhos. Eles estão completamente enganados. [Nos quadrinhos] A história de Thor tem 48 anos de idade. Pessoas como o fantástico artista Jack Kirby e o incrível Stan Lee inspiraram o filme. Capturar a atenção do público para um filme como este é muito difícil. As pessoas são muito exigentes. Se elas não gostam, abandonam o filme no meio e tchau.

G1 - Foi por isso que você usou a tecnologia 3D [o filme tem cópias nos dois formatos]?
Branagh
- Eu queria a aventura do 3D, mas não queria filmar em 3D. Eu não sou inteligente o suficiente para isso [risos]. Você precisa de uma graduação em Física dada a complexidade que o 3D requer. Sério [risos]! Foram 18 meses para construir os créditos finais com a ajuda de uma companhia francesa que trabalhou todo aquele visual. Só para os créditos! Com o 3D, eu queria trabalhar a noção de profundidade dos cenários e achar detalhes que poderiam ser intensificados.

G1 - Como manteve a história de “Thor” conectada com a realidade? Houve inspiração de algum filme em particular para ligar um universo tão fantástico com o mundo real?
Branagh
- Em termos de realidade, violência e o lado militar, eu diria que o filme “Gladiador” me impressiona bastante. Eu espero não termos roubado nada diretamente, mas o “Gladiador” tem alguma relação com este lado de “Thor”.

G1 - Qual a diferença deste “Thor” para seus antigos longas, como “Frankenstein”?
Branagh
- Engraçado. “Frankenstein” foi feito exatamente antes da era digital. Lembro de perguntar ao [ator britânico] Stephen Fry o que ele fazia com aquela enorme máquina, e ele me respondeu: “Estou enviando um e-mail” [risos]! Isso foi em 1995. Claro que eu faria "Frankenstein" de uma maneira diferente se tivesse os recursos atuais e a disponibilidade financeira de “Thor”, mas tenho certeza que alguém o fará - se já não estiver fazendo.

G1 - O que quer dizer com isso?
Branagh
- Aquele filme foi um grande fracasso e foi interessante sair pelo mundo promovendo-o, tendo que responder a questões duras dos jornalistas. Porém sempre lembro de um jornalista que elogiou minha ousadia em realizar o filme. Você aprende muito com o sucesso, mas muito mais com o fracasso eu diria.

Graças ao trabalho do ator e diretor irlandês especializado em Shakespeare o filme “Thor” consegue romper o território dos fãs dos quadrinhos e resultar em um projeto interessante para o público em geral - e para os produtores de Hollywood, claro, que injetaram US$ 150 milhões na brincadeira. Para Kenneth Branagh, a história do personagem “bonitão, charmoso e destinado ao trono”, mas que “não tem o menor talento para se tornar super-herói”, tinha tudo para garantir boas risadas. “A ideia de um viking na Terra, quebrando tudo e entretido com os terráqueos, me parecia engraçada o suficiente para adicionar um elemento de humor a esta historia”, defendeu o cineasta em entrevista realizada no início de abril, em Londres.

Mas o filme “Thor” conta também com um supertime para ajudar a conquistar a simpatia dos fãs. O elenco conta com a presença da Natalie Portman, na pele do par romântico do herói, e Sir Anthony Hopkins, como o deus nórdico Odin. Como se não bastasse, o filme contou com a supervisão de um dos mais respeitados roteiristas da Marvel, J.M. Straczynski, que esteve à frente do título de Thor na editora entre 2007 e 2008 e escreveu algumas das histórias que inspiram livremente o roteiro do longa.

No filme, Thor está prestes a herdar a coroa de Odin e assumir o mítico Reino de Asgard quando, em uma tentativa pouco sensata de demonstração de força, resolve atacar por conta própria os Gigantes de Gelo do planeta rival Jotunheim. Decepcionado e irado, Odin decide punir o filho, removendo seus poderes e enviando-o à Terra para aprender a lição vivendo como uma pessoa comum.

Abrutalhado e inseparável de seu martelo - Mjolnir -, o personagem é vivido pelo ator de 28 anos Chris Hemsworth, um australiano ainda desconhecido do grande público. Em entrevista em Londres, Hemsworth reconhece que “foi intimidador” interpretar um super-herói tão querido e conhecido pelos fãs - sua primeira aparição foi em 1962, na edição nº 83 da revista “Journey into mistery”. Mas, se nas HQs Thor é o “deus do trovão”, para o ator australiano o segredo foi fincar os pés do personagem de volta ao chão. “Eu apostei em simplificar e procurei não pensar que interpretaria um Deus, mas, sim, um irmão em meio a uma família”, explicou o novo candidato a galã, que mede 1,91 m de altura e passou por preparação física intensa de quatro meses para viver o herói - ele já disse que chegou a ganhar 10 kg.

O irmão de Thor a quem Hemsworth se refere é Loki, vivido por Tom Hiddleston. O ator britânico rouba a cena como o invejoso irmão que assume o trono de Asgard, depois que Odin adoece e destitui Thor de seus poderes. “Você percebe que Loki é psicologicamente frágil. Ele tem um sentimento de que não pertence àquele lugar e sabe que nunca vai ter seu lugar ao sol. Eu acho que o ímpeto de sua busca por autoestima vem desse sentimento de ser pouco valorizado e pouco amado”, comentou o ator sobre seu personagem tipicamente shakesperiano.

Enquanto, na ficção, a disputa fratricida se dá entre Loki e Thor, na vida real, Hemsworth também teve de enfrentar alguém da própria família para ficar com o papel de protragonista. “Nos testes finais de elenco eu competi com meu próprio irmão mais novo (Liam Hemsworth). Ele estava entre os quatro últimos da lista, mas acabou não sendo chamado e eu ganhei o papel”, explicou o ator, esclarecendo que nenhuma gota de sangue foi derramada no processo (por Pedro Caiado para o portal G1).

Imagem: Marvel

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Reflexões sobre a morte e a morte de Osama Bin Laden

Pra início de conversa quero deixar claro que não estou a escrever estas linhas para defender nenhum ato ou grupo terrorista, assim como nenhum indivíduo em geral ou em particular. Quero apenas compartilhar alguns questionamentos que me ocorreram após o pronunciamento do presidente estadunidense Barack Obama comunicando ao mundo a morte do Osama Bin Laden. Nada contra a operação militar que culminou com o extermínio do líder da Al-Qaeda. Como diz um velho aforismo popular bem conhecido dos brasileiros, quem sai na chuva é para se molhar, ou seja, se o Bin Laden escolheu viver como terrorista, nada mais natural do que morrer como um terrorista. Ademais, cá entre nós, já foi tarde. O problema para mim não é este. Aliás, acho que isto não tem a menor importância. Entretanto, toda essa história de caçada ao líder terrorista mais procurado do mundo trouxe a tona duas questões, estas sim bem graves, pois comprometem o futuro político da humanidade.

A primeira delas diz respeito ao uso da tortura em interrogatórios de prisioneiros acusados de terrorismo que, supostamente, teriam conexões com membros da Al-Qaeda, conforme admitiu Leon Panetta , diretor da Central de Inteligência Americana (CIA). A tortura é uma prática hedionda contrária tanto a democracia quanto aos direitos humanos. A prática de tortura se torna ainda mais hedionda quando utilizada por um Estado que diz nortear suas ações pelos princípios e valores basilares da democracia e dos direitos humanos e que, como se não bastasse, tenta impor o seu modelo de democracia como o modelo a ser seguido por todos, como é o caso dos Estados Unidos. Então a democracia desse país se utiliza de dois pesos e duas medidas? Como confiar no discurso de uma gente que prega uma coisa e por debaixo dos panos pratica outra bem diferente? Tenho certeza que se o governo da Venezuela admitisse ter praticado tortura nas suas investigações, os Estados Unidos seriam os primeiros a condenar e no rastro deles outros tantos países que, hoje, evitam tocar nesse assunto ou mesmo comentá-lo, fariam o mesmo. Ouviríamos muitos analistas, especialistas e jornalistas condenando veementemente o Hugo Chávez. Alguns diriam até mesmo que esse tipo de coisa só poderia ocorrer em democracias deficientes ou frágeis, ou, ainda, em simulacros de democracia, a exemplo do que muitos acreditam ser as democracias latino-americanas.

Outra questão que me chamou a atenção nesse acontecimento diz respeito à “captura” do Bin Laden ter ocorrido em território paquistanês sem o conhecimento das autoridades locais. Essa atitude me levou a pensar que o Paquistão foi invadido sem a aprovação de organismos internacionais cuja legitimidade os autoriza a aprovar ou não esse tipo de ação. Até onde eu sei isso pode ser considerado uma declaração de guerra, uma vez que a boa relação entre as nações, entre outras coisas, depende, principalmente, do respeito à soberania de cada Estado. Assim aprendi. Esse respeito, me parece, não ocorreu no caso em questão. Temo que de agora em diante as regras que regem as relações internacionais sejam meras retóricas sem nenhuma aplicação prática. Como se isso não bastasse, tenta-se desviar a atenção desse fato para um outro de menor importância que é o fato de as autoridades paquistaneses serem ou muito incompetentes por não terem descoberto o paradeiro de Bin Laden que se escondia em Abbottabad, cidade que fica a menos de 100 km de Islamabad, capital do país, ou coniventes com o terrorismo. Jamais saberemos a verdade. Entretanto, é preciso tomar cuidado para que as sociedades de hoje não estejam a cultivar novas bases sobre as quais se sustentarão ações que aterrorizarão as sociedades de amanhã (por Sílvio Benevides).

Imagem: AFP

domingo, 1 de maio de 2011

Poema Falado: Esperando os Bárbaros

De acordo com o dicionário, a palavra bárbaro se origina do latim barbàrus, que se refere a um estrangeiro, isto é, um indivíduo não identificado com os costumes do observador. Para os antigos gregos, bárbaros eram aqueles que pertenciam a outra raça ou civilização e falava outra língua que não a deles. No Império Romano, o termo adquiriu outro significado, passando a designar que ou quem é incivilizado, rude, grosseiro. Os chamados povos bárbaros, principalmente, os Hunos e os Germânicos, promoveram sucessivas invasões ao Império Romano do Oriente e do Ocidente o que, por sua vez, desencadeou mudanças irreversíveis no curso da história ocidental. Os bárbaros são assim, inquietos, rebeldes. E essa rebeldia é extremamente saudável, pois ela é o motor que impulsiona as mudanças. Ao longo da história humana existiram vários bárbaros. Nas décadas de 1960 e 1970 eles foram tão numerosos que por todo o mundo ajudaram a derrubar ditaduras políticas, regimes conservadores, costumes, práticas e idéias opressivas, pregaram a paz, oxigenaram o mundo e a vida em sociedade com seus ideais de liberdade e suas utopias maravilhosas. Hoje em dia, porém, o tilintar dos metais preciosos e seus valores perniciosos parecem ter silenciado as utopias. Onde foi parar a rebeldia? Por onde andam os bárbaros? O mundo precisa dos bárbaros como escreveu o poeta grego nascido em Alexandria, Konstantinos Kaváfis, que o Poema Falado deste mês homenageia. Diz ele: “Mas que esperamos nós aqui n'Ágora reunidos? / É que os bárbaros hoje vão chegar! / Mas porque reina no Senado tanta apatia? / Porque deixaram de fazer leis os nossos senadores? / É que os bárbaros hoje vão chegar. / Que leis hão-de fazer os senadores? / Os bárbaros que vêm, que as façam eles. // Mas porque tão cedo se ergueu hoje o nosso imperador, / E se sentou na magna porta da cidade à espera, / Oficial, no trono, co'a coroa na cabeça? / É que os bárbaros hoje vão chegar. / O nosso imperador espera receber / O chefe. E certamente preparou / Um pergaminho para lhe dar, onde / Inscreveu vários títulos e nomes. // Porque é que os nossos dois bons cônsules e os dois pretores / trouxeram hoje à rua as togas vermelhas bordadas? / E porque passeiam com pulseiras ricas de ametistas, / e porque trazem os anéis de esmeraldas refulgentes, / por que razão empunham hoje bastões preciosos / com tão finos ornatos de ouro e prata cravejados? / É que os bárbaros hoje vão chegar. / E tais coisas os deixam deslumbrados. // Por que não acorrem como sempre nossos ilustres oradores / a brindar-nos com o jorro feliz de sua eloqüência? / Porque hoje chegam os bárbaros / que odeiam a retórica e os longos discursos. // Por que de repente essa inquietude / e movimento? (Quanta Gravidade nos rostos!) / Por que esvazia a multidão ruas e praças / e sombria regressa a suas moradas? // Porque a noite cai e não chegam os bárbaros / e gente vinda da fronteira / afirma que já não há bárbaros. // E o que será agora de nós sem bárbaros? / Talvez eles fossem uma solução afinal de contas”. Boa áudio-leitua! (por Sílvio Benevides)




Imagem: Jason Momoa in Conan, the barbarian. Foto de Simon Varsano.