segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Os conflitos no Egito

As agências internacionais de notícias, assim como a imprensa brasileira não param de nos informar sobre os turbulentos conflitos na cidade do Cairo, capital do Egito, contra o presidente-ditador Hosni Mubarak, no poder a três décadas. Não conheço a realidade política e social do Egito contemporâneo, tampouco sou um expert em relações internacionais. Ainda assim, atrevo-me a tecer algumas considerações sobre os acontecimentos em questão.

A primeira questão que me vem à mente quando leio que o presidente egípcio está no poder a trinta anos diz respeito ao próprio poder em geral e ao poder político em particular. Seria o poder um vício contra o qual não há cura? O que leva uma pessoa a permanecer no poder por três décadas oprimindo tudo e todos e, a despeito do que parece ser uma grande revolta popular, insiste em permanecer no comando do país? A troco de quê? De certo, de mais poder. O poder parece mesmo ser cego e surdo, especialmente quando se pretende eterno.

É sabido por todos que o presidente Hosni Mubarak tem o apoio dos EUA, sobretudo, por desempenhar um papel fundamental nas negociações no conflito entre israelenses e palestinos. Ter o apoio do líder político do mais populoso país árabe é um grande negócio para o governo de Washington. Isso me leva à segunda questão. Como pode uma nação que se auto-intitula a maior democracia do mundo apoiar regimes ditatoriais? Toda ditadura mata, tortura, persegue, sufoca, oprime, humilha e desrespeita qualquer um que a ela se oponha. Sendo assim, nada mais incoerente para uma nação que se diz democrática do que apoiar ditaduras. Como disse, pouco ou nada entendo de relações internacionais. Mas pelo visto fidelidade a princípios morais não é a bússola que as norteiam, mas, sim, interesses ignóbeis que passam longe de qualquer compreensão minimamente pautada pela ética e pelo respeito ao ser humano (por Sílvio Benevides).
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Imagem: AP/UOL Notícias.

Os soldados mostram às estrelas ferimentos de guerra

Durante a noite os soldados mostram às estrelas ferimentos de guerra. O vento espalha pela planície a noticia que aqueles ferimentos são como palavras nos livros de poemas dos homens sem força, sem alma, e sem rumo. Aqueles ferimentos de guerra são golpes como caligrafia nos olhos de uma imaginada solidão. Durante a noite os soldados mostram ás estrelas cartas indecifráveis, ferimentos de guerra no combate difícil pela luta do amor. Durante a noite os soldados mostram ás estrelas ferimentos de guerra. Não há melodias, não há aves, nem barcos, mas é possível imaginar uma canção dentro dos corpos prostrados. Durante a noite os soldados mostram às estrelas os retratos dos amantes e as estrelas choram como uma metáfora de um poema difícil de ler. Durante a noite as estrelas se comovem e pelo céu cai um grito (por José Lobo).
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Imagem: The staff of General Fitz-John Porter (1862), by James F.Gibson.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Não acredito! Fui censurado pelo YOUTUBE!

Censurar. Verbo transitivo direto que de acordo com o dicionário Houaiss significa exercer censura moral, política, estética, religiosa, entre outros tipos, sobre produção artística ou informativa, espetáculo etc. foi exatamente isso que ocorreu com o Poema Falado “Idéias Íntimas IX”, escrito pelo poeta romântico Álvares de Azevedo.

Os Poemas Falados são pequenos vídeos que produzo para divulgar os meus poemas prediletos. Os textos vêm acompanhados de música e imagens que ajudam a traduzir a intenção central da poesia retratada. A idéia de se fazer Poemas Falados surgiu como uma brincadeira instigada pela Pappillon. Depois virou um dos meus passatempos prediletos, quase um vício. Desde agosto de 2009 passei a postá-los aqui e em outros espaços como os blogs amigos Bienvenue-Ami e O Cantinho de Coccinelle. O objetivo é formar uma rede tecida por versos e sons magníficos, afinal, como disse o Carlos Drummond de Andrade, “uma pessoa que tem hábitos intelectuais ou artísticos, uma pessoa que gosta de ler nunca está sozinha. Ela terá sempre uma companhia: a companhia imensa de todos os artistas, todos os escritores que ela ama, ao longo dos séculos”. Trata-se do prazer da arte pela arte, sem nenhum propósito comercial.

Eis que na semana passada fui surpreendido por uma mensagem do Youtube, onde os Poemas Falados são postados, comunicando a retirada do poema “Idéias Íntimas IX”, classificado como impróprio por conter cenas de nudez e sexo (seria isto pornografia?). Sim,o vídeo contém cenas de nudez, mas não de sexo. Ademais, qual o problema com a nudez e o sexo? Existe uma diferença enorme entre sexo e pornografia. Sei bem que a pornografia está, sobretudo, na mente e nos olhos de quem vê, mas isso é outra história que não estou a fim de discutir nesse momento. O fato é que a censura ocorreu e o Álvares de Azevedo, um dos maiores nomes da poesia de língua portuguesa, assim como o Amadeu Modigliani, o William Etty, o diretor português João Pedro Rodrigues e o músico Alberto Iglesias foram banidos em nome de uma moralidade duvidosa. Isso tudo me fez perceber o quão encoberto por tabus o corpo se encontra. Mudam os tempos, mas os tabus permanecem quase intactos.

Sabendo do fato, alguns amigos meus se pronunciaram no Facebook nos seguintes termos: “o incrível é que se fossem imagens de violência explícita aí não teria problema, existem inúmeras no Youtube. O moralismo hipócrita prevalece” (PM); “a censura sem limites...e o pior que quem censura é o público....já que é censura deveriam ter uma equipe para analisar os fatos e não deixar a hipócritas tomarem conta e fazer o que desejam” (GCR); “é impressionante como fica claro que não há interesse nenhum em fomentar algo que estimule a educação e ou a contemplação da arte! Afinal isso estimularia o pensar, e representa uma situação ‘extremamente perigosa’ para quem não interessa a partilha. O que não é censurado, por exemplo, é a violência e inutilidade, afinal, essas contribuem efetivamente para manter uma aura de inferioridade e infelicidade coletiva” (MC).

O debate está lançado. O vídeo censurado pode ser acessado pelo link: http://salvadornasoladope.blogspot.com/2010/09/poema-falado-ideias-intimas-lira-dos.html. Será que este vídeo é mesmo impróprio? Opine. Caso queira fazer parte da rede para publicar em seu blog/sítio os Poemas Falados é só entrar em contato que eu enviarei os textos e links da postagem (por Sílvio Benevides).
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Imagem: Censura, por André Domingos.

O velho “jeitinho” brasileiro de novo

O Ministério da Cultura fechou o ano de 2010 sem saber onde foram parar R$ 38.383.204,26. Esse valor foi captado por produtores culturais em todo o País, por meio da Lei Rouanet, portanto com isenção fiscal, mas ou foi mal aplicado ou nunca bancou nenhum projeto. A fortuna é mais ou menos a mesma captada pelo produtor e ator Guilherme Fontes para seu filme imaginário, Chatô, o rei do Brasil - que até hoje ninguém viu.

Os técnicos em análise financeira do ministério, responsáveis por avaliar a prestação de contas das produções beneficiadas com a lei de fomento à cultura, reprovaram a prestação de contas de 134 projetos nos dois últimos anos, que somavam R$ 88.038.636,33 – mas, na prática, captaram apenas os R$ 38.383.204,26, segundo informou o ministério a pedido de Poder Online - já que o site da pasta omite esta informação pública. Os motivos de reprovação das contas dessa gente que diz fazer cultura foi omissão ou despesas indevidas e os processos aos órgãos fiscalizadores “do meu, do seu e do nosso” dinheirinho arrecadado com impostos (por Jorge Félix e Thales Faria para o Poder Online).
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Imagem: Sílvio Benevides

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Em que se declara como Francisco Pereira Coutinho foi povoar a Bahia de Todos os Santos e os trabalhos que nisso teve

Quem quiser saber quem foi Francisco Pereira Coutinho, leia os livros da Índia, e sabe-lo-á; e verão seu grande valor e heróicos feitos, dignos de diferente descanso do que teve na conquista do Brasil, onde lhe coube por sorte a capitania da Bahia de Todos os Santos, de que lhe foz mercê el-rei D. João III, de gloriosa memória, pela primeira vez, da terra que há da ponta do Padrão até o rio de São Francisco, ao longo do mar; e, para o sertão, de toda a terra que couber na demarcação deste Estado, e lhe fez mercê da terra da Bahia com seus recôncavos. E como este esforçado capitão tinha ânimo incansável, não receou de ir povoar a sua capitania em pessoa, e fez-se prestes com muitos moradores casados e outros solteiros, que embarcou em uma armada, que fez à sua custa, com a qual partiu do porto de Lisboa. E com bom vento fez a sua viagem até entrar na Bahia e desembarcou na ponta do Padrão dela para dentro, e fortificou-se, onde agora chamam a Vila Velha, no qual sítio fez uma povoação e fortaleza sobre o mar, onde esteve de paz com o gentio os primeiros anos, no qual tempo os moradores fizeram suas roças e lavouras. Desta povoação para dentro fizeram uns homens poderosos, que com ele foram, dois engenhos de açúcar, que depois foram queimados pelo gentio, que se alevantou, e destruiu todas as roças e fazendas, pelas quais mataram muitos homens, e nos engenhos, quando deram neles. Pôs este alevantamento a Francisco Pereira em grande aperto; porque lhe cercaram a vila e fortaleza, tomando-lhe a água e mais mantimentos, os quais neste tempo lhe vinham por mar da capitania dos Ilhéus, os quais iam buscar da vila as embarcações, com grande risco dos cercados, que estiveram nestes trabalhos, ora cercados, ora com tréguas, sete ou oito anos, nos quais passaram grandes fomes, doenças e mil infortúnios, a quem este gentio tupinambá matava gente cada dia, com o que se ia apouquentando muito; onde mataram um seu filho bastardo e alguns parentes e outros homens de nome, com o que a gente, que estava com Francisco Pereira, desesperadas de poder resistir tantos anos a tamanha e tão apertada guerra, se determinou com ele apertando-o que ordenasse de os pôr em salvo, antes que se acabasse de consumir em poder de inimigos tão cruéis, que ainda não acabavam de matar um homem, quando o espedaçavam e comiam. E vendo este capitão sua gente, que já era mui pouca, tão determinada, ordenou de a pôr em salvo e passou-se por mar com ela nuns caravelões que tinha, para a capitania dos Ilhéus; do que se espantou o gentio muito, e arrependido da ruim vizinhança que lhe tinha feito, movido também de seu interesse, vendo que como se foram os portugueses, lhe ia faltando os resgates que êles lhes davam a troco de mantimentos, ordenaram de mandar chamar Francisco Pereira, mandando-lhes prometer toda a paz e boa amizade, o qual recado foi dele festejado, e embarcou-se logo com alguma gente em um caravelão que tinha, e outro em que vinha Diogo Álvares, de alcunha “o Caramuru”, grande língua do gentio, e partiu-se para a Bahia, e querendo entrar pela barra adentro, lhe sobreveio muito vento e tormentoso, que o lançou sobre os baixos da ilha de Taparica, onde deu à costa; salvou-se a gente tôda deste naufrágio, mas não das mãos dos tupinambás, que viviam nesta ilha, os quais se ajuntaram, e à traição mataram a Francisco Pereira e à gente do seu caravelão, do que escapou Diogo Álvares com os seus com boa linguagem. Desta maneira acabou às mãos dos tupinambás o esforçado cavaleiro Francisco Pereira Coutinho, cujo esforço não puderam render os rumes e malabares da Índia, e foi rendido destes bárbaros, o qual não somente gastou a vida nesta pretensão, mas quanto em muitos anos ganhou na índia com tantas lançadas e espingardadas, e o que tinha em Portugal, com o que deixou sua mulher e filhos postos no hospital (por Gabriel Soares de Sousa, 1587).

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Festa do Senhor do Bonfim

A devoção do Senhor do Bonfim é uma das mais difundidas na Bahia entre as pessoas de todas as classes sociais. O introdutor deste culto na Bahia, Theodózio Rodrigues, era, ao mesmo tempo, Capitão de Guerra e Mar, proprietário de três navios que faziam tráfico na costa da África e membro do Comitê de Administração do Fumo. Ele trouxe de Setúbal, Portugal, em 1745, a imagem do Senhor crucificado que domina o altar mor da atual igreja, construída no local onde Theodózio fizera erigir uma modesta capela em 1751. Wanderley Pinho descreveu a festado Senhor do Bonfim nos seguintes termos: “Por todo o mês a sociedade baiana se reunia para as novenas do Bonfim, da Guia e de São Gonçalo. Ali se achava toda a Bahia, em volta da capela, na colina de Itapagipe. Mais de 30.000 pessoas aglomeradas, vindas das mais longínquas regiões da Província. A fina flor da sociedade se reúne, após os eloqüentes sermões nas casas, construídas à volta da colina sagrada para as diversões, banquetes e danças. O panorama que se avista do alto é único, abrangendo a cidade e a Ilha de Itaparica. As tardes são deliciosamente frescas quando os ventos começam a soprar, agitando as bandeirolas, brincando com a crinolina das damas e ameaçando arrebatar-lhes as sombrinhas, talvez menores que os chapéus inclinados sobre as tranças do penteado. Cavaleiros em corcéis ajaezados em prata, filhos dos senhores de engenho, a gente rica do Comércio, exibindo o luxo de suas vestimentas. As cadeiras de arruar sobem a colina da Igreja balançadas ao ritmo oscilante do caminhar dos lacaios, enquanto que em baixo, as carruagens e liteiras despejam damas elegantes, abafadas entre plumas, leques, espartilhos, tufos, folhos e refolhos, vidrilhos, pendentes e frisados. O povo subia em chusmas trazido pelos vapores ao porto do Bonfim para encher a praça e as ruas de ruídos e danças”.

Outros vêm a pé “pagar uma promessa” feita ao Senhor do Bonfim e agradecer-Lhe por Sua miraculosa intervenção nas circunstâncias as mais diversas. Uma sala da igreja é completamente cheia de ex-votos e de lembranças de agradecimento. Desenhos e pinturas “naifs” (primitivistas) mostram de quais desastres e acidentes, doenças e perigos os devotos do Senhor do Bonfim escaparam. Braços, pernas, seios, corações e outros órgãos internos ou externos esculpidos em madeira ou fundidos em cera estão pendurados no teto. Um amontoado de muletas é outro testemunho das graças concedidas pelo Senhor do Bonfim. Os marinheiros vêm descalços trazer uma vela de navio negreiro toda enguirlandada de flores para benzer e assegurar, assim, uma pacífica e proveitosa viagem [...] Na quinta-feira que precede o domingo do Senhor do Bonfim, a lavagem do chão da igreja torna-se uma manifestação de piedade cumprida por uma multidão. Mas os que se apressam em maior número são os pretos, escravos e livres, porque o fenômeno de sincretismo ocorre também para o Senhor do Bonfim. Ele é confundido, por aqueles que praticam os cultos africanos, com Oxalá, divindade da criação. Lavar a igreja é, pois, para eles a ocasião de manifestar ao mesmo tempo piedade católica e fé africana [...] Na quinta-feira da lavagem da Igreja do Bonfim uma longa procissão se organiza diante da Igreja da Conceição. Ela é formada de numerosas mulheres de cor vestidas com suas belas roupas tradicionais, amplas saias e chalés, ornados de rendas e bordados, um turbante amarrado em volta dos cabelos, tudo exclusivamente branco, cor consagrada ao Deus africano Oxalá. Elas carregam sobre a cabeça potes cheios d’água e flores brancas e são acompanhadas por uma escolta de carros e carroças decoradas de bandeirolas e serpentinas brancas. Este brilhante cortejo vai a pé pelas avenidas recém traçadas, em direção da colina na península de Itapagipe, onde se eleva a Igreja do Senhor do Bonfim. Durante a lavagem do solo do templo ouvem-se cantos e gritos sonoros. A água é derramada dos potes trazidos pelas mulheres e de pequenos tonéis, transportados em burros. As baianas esfregam energicamente o chão, com vassouras decoradas de fitas brancas [...] A festa só vai terminar na segunda-feira seguinte por uma reunião na vizinha Ribeira. Neste dia o comércio está paralisado, os escritórios fechados, a cidade inteira cai num silêncio total (por Pierre Verger. In: Notícias da Bahia – 1850).
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Imagem: Igreja do Bonfim (Salvador-BA), acervo do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

A véspera de Reis

Há dias no ano em que o povo precisa fazer-se criança. Contrariar esta lei é torná-lo triste, desgraçado [...] A véspera de Reis na Bahia é um corolário da noite de Natal. São irmãs quanto à origem, diferindo na vida de relação. Para os homens que estudam, o interesse de diferenciação entre as festas do Natal no Brasil e suas congêneres no estrangeiro é enorme. Na Europa há um único fator, que é o elemento nacional; entre nós há três: o elemento branco ou português, o africano e o resultante de ambos – o mestiço.

Do modo que eles contribuíram e se consubstanciaram; do caldeamento estático que dá o colorido local a costumes que se foram modificando desde a colônia, ressalta o encantamento etnológico, a feição nacional. Da noite de Natal, que se passa nos templos e nos domicílios; dos bailes pastoris – a poesia popular erudita – e dos salões soberbos, descemos às praças e ruas, e observamos o povo que se diverte em ranchos nômades, presenciamos as cheganças ao ar livre, e o singular espetáculo do Bumba-meu-boi, auto inculto, que se representa mais vulgarmente nas humildes e francas habitações dos arrabaldes.

Na Bahia os presepes, os bailes de pastoras e os descantes de Reis prolongam-se até o carnaval. – É o tempo das mangas, das músicas e das mulatas! Dessa noite em diante, os cantadores de Reis percorrem a cidade cantando versos de memória e de longa data. Esses ranchos compõem-se de moças e rapazes de distinção; de negros e pardos que extremam, às vezes, e se confundem comumente.

Os trajes são simples e iguais calça, paletó e colete branco, chapéu de palha ornado de fitas estreitas e compridas, muitas flores em torno, etc.; precedendo-se na excursão habilíssimos tocadores de serenatas. Levando-lhe talvez vantagens pelas ondulações do andar, pelo arredondado das formas lascivas, pelos dentes de pérolas em bocas de ônix, ou orvalhos matinais nas rosas do amanhecer, as crioulas e mulatas acompanham os seus pares, tremendo-lhes os seios por baixo de um nevoeiro de rendas finíssimas, estalando a chinelinha preta e lustrosa, atirando com negligência o pano da Costa, matizado e caríssimo.

Mulheres e homens, meninos e meninas, batem, ao compasso da música, leves pandeiros, ou tocam, nas mãos entreabertas e suspensas, castanholas que atroam [...] Os ranchos, ao fogo dos archotes, ao som das flautas e violões, das cantorias e castanholas, dirigem-se: ao presepe da Lapinha, às casas conhecidas em que se festeja o Natal, ou tiram Reis à aventura do acaso [...] Nestas, as cantigas de Reis correm à porfia e sempre sonoras (por Melo Morais Filho, in: Festas e tradições populares do Brasil, 1901 – recolhido por Luís da Câmara Cascudo).

Imagem: Santos Reis, por Elza Rossato

Pedindo os Reis

...uma noite dos Santos Reis, saíram estes (homens) com vários instrumentos pelas portas dos morados de uma vida, cantando para lhes darem os Reis, em prêmio dos que uns lhes davam dinheiro, e outros doces, e frutas, etc., e chegaram a uma casa, e começaram a cantar um tono, cuja letra dizia: “Guerra travada se ruge / Entre Florêncio e Floresta. / Acudi cá, minha Dama. / Que ferve a bulha na festa”. Andavam uns mancebos desenfadados (para não dizer vadios) em segmento dos músicos, e assim como os ouviram cantar com tal concerto, ou desconcerto. Começaram a apedrejá-los; e como os cantores vissem que lhes não podiam fazer resistência, usaram de corridas, e os que os haviam apedrejado lhes foram contando os passos, ou compassos, nas pausas tacitamente (por Nuno Marques Pereira, in: Compêndio narrativo do peregrino da América, 1939 – recolhido por Luís da Câmara Cascudo).

Imagem: Folia de Reis, por Paulo Rezende

domingo, 2 de janeiro de 2011

Poema Falado: Morte e vida severina (prólogo)

Um dos grandes nomes da poesia brasileira do século XX, João Cabral de Melo Neto, nasceu no Recife no dia 09 de janeiro de 1920. Seus primeiros dez anos de vida foram praticamente passados no engenho da família, em São Lourenço da Mata-PE. A infância à beira do rio Capibaribe o marcaria para sempre. Os trabalhadores da fazenda de seu pai lhe traziam folhetos de literatura de cordel, assim teve seu primeiro contato com a literatura. Sem saber ler, esse homens o escalavam para sessões de leitura nos momentos em que não estavam trabalhando nos canaviais.

Na juventude, já no Recife, ao ler Manuel Bandeira e Mário de Andrade pela primeira vez, ficou aliviado com a possibilidade de ser poeta sem escrever como Olavo Bilac. Até então, tinha horror à poesia por só ter tido acesso aos poetas parnasianos. “Aquilo me dava nojo”, diria mais tarde.

Mudou-se para o Rio de Janeiro com pouco mais de 20 anos. Aproximou-se do primo Manuel Bandeira, 34 anos mais velho, e também ficou amigo de Carlos Drummond de Andrade, a quem pediu para ser apresentado e apontaria depois como seu grande mestre na literatura brasileira.

O escritor e crítico literário, membro da Academia Brasileira de Letras, Antonio Carlos Secchin, que melhor analisou a obra de João Cabral, segundo o próprio poeta, avalia que Cabral é “o último grande clássico da nossa poesia, na seqüência de Bandeira e Drummond”.

Para ter tempo e estabilidade financeira para ler e escrever, João Cabral escolheu a carreira diplomática. Em 1944, prestou exame para o Itamaraty e foi nomeado diplomata em dezembro de 1945 – profissão que seguiu por mais de 40 anos e lhe proporcionou grandes oportunidades culturais. Morou em vários países. A Espanha foi o primeiro deles. E também a primeira viagem internacional do poeta, aos 27 anos. Viveu ainda na França, em Portugal, na Suíça, no Senegal e em Honduras. As viagens e as mudanças constantes eram uma obrigação profissional e o deixavam tenso, pois tinha medo de avião!

No documentário Recife/Sevilha – João Cabral de Melo Neto, dirigido por Bebeto Abrantes, sua filha, a cineasta Inez Cabral, conta que ele temia morrer em um desastre aéreo e por isso preferia fazer as viagens sozinho. A família ia depois. João Cabral também não gostava de se envolver com a parte prática das mudanças, deixava essa tarefa para a esposa, que tratava de organizar tudo enquanto ele esperava no hotel.

Nenhum país o marcou tanto quanto a Espanha. O homem e as manifestações culturais do país o fascinavam, mais precisamente a cidade de Sevilha, onde foi cônsul-geral entre 1962-1964. As touradas também despertavam o seu interesse. Em certa ocasião, o poeta Ferreira Gullar o acompanhou para conhecê-las. “Eu achei aquilo de um sadismo imenso, mas ele gostava”, revela Gullar. “Para ele, era a vitória da razão contra a animalidade”, completa.

Na casa de João Cabral, em Barcelona, Gullar perguntou o porquê de tantos quadros concretistas na sala. Cabral respondeu que precisava de alguma coisa que tivesse ordem, já que a sua cabeça era uma grande confusão. “Ele não era formalista porque queria. O que ele tinha era uma necessidade de ordem. Queria se livrar da sua instabilidade emocional através de coisas concretas. Por isso mesmo, para entender João Cabral, é preciso entender como ele era, e não julgá-lo pelas coisas que se diziam a seu respeito”, conclui.

João Cabral tinha como diferencial a construção de sua poesia. Achava que ela precisava ser feita arquitetonicamente, tal como a flor: não precisava ser perfumada ou cheia de sentimentalismo derramado. Conhecido como o Engenheiro das Palavras, era contra a espontaneidade. “Da primeira palavra à última, todas elas têm que ter um sentido, de forma que a primeira é tão difícil quanto a última”, explica o próprio poeta em cena do documentário Recife/Sevilha.

O jornalista e biógrafo José Castello esteve com João Cabral em 21 longos encontros para escrever o livro João Cabral de Melo Neto – O homem sem alma. Ele explica que o poeta criou um mito em torno de si. “O homem sem alma (alma como mundo interior, e não no sentido religioso), seco, contido e cerebral, era apenas uma casca, uma armadura. Bela armadura, aliás, que lhe rendeu poemas extraordinários. Mas, dentro de João, e seus poemas, os sentimentos, os conflitos e a desordem ferviam”, explica o jornalista.

Castello conviveu com Cabral de 07 de março de 1991 a 06 de abril de 1992, quando o poeta, já tendo encerrado sua carreira diplomática, vivia em um apartamento na praia do Flamengo, no Rio de Janeiro. Nessa fase, João Cabral estava com a saúde frágil e sofria de uma depressão a qual preferia chamar de melancolia. “Quase não saía mais de casa e, por causa dos problemas de visão, não via mais futebol na TV, o que adorava fazer. Não suportava mais ler literatura, porque se emocionava demais. Tentava ler ensaios de geografia ou de história, mas até eles o perturbavam. Estava com a sensibilidade à flor da pele”, conta.

A solidão e o vazio eram enfrentados na companhia das pessoas que o visitavam. João Cabral não acreditava em psicanálise, pelas más lembranças de um período de seis meses que passou internado em um sanatório, na juventude, por sugestão de um primo médico, para tentar se livrar das constantes dores de cabeça que sentia. Segundo dizia, elas começaram quando, aos 16 anos, foi rejeitado para um trabalho como jornalista.

Durante 50 anos, essas crises constantes de enxaqueca o acompanhariam e a aspirina seria sua grande compulsão. A dor só desapareceu em 1986, quando foi submetido a uma cirurgia de emergência por problemas no estômago e cortaram-lhe o nervo simpático. Já a melancolia o acompanhou até o fim da vida. Teria começado quando em 1952, foi acusado de subversão por Carlos Lacerda [governador do Rio], por ter escrito ensaio sobre o escultor e pintor espanhol Joan Miró. “Talvez por ter sido visto como alguém que eu não sou”, disse Cabral a José Castello.

Seus últimos anos foram de grande vazio por conta de uma doença degenerativa que o fez perder a visão. Considerava a cegueira castigo, ela o privava das duas coisas que mais gostava de fazer: ler e escrever. João Cabral de Melo Neto morreu no dia 09 de outubro de 1999, aos 79 anos, no apartamento em que morava, na praia do Flamengo, na zona sul do Rio.

O autor de Pedra do Sono (1942), Os três mal-amados (1943), O engenheiro (1945) e Psicologia da composição (1947) ficou impressionado ao ler uma reportagem informando que a expectativa de vida na Índia era de 29 anos e no Recife, 28. Escreveu, então, O cão sem plumas, publicado em 1950. A partir daí, dizia, Pernambuco não o largou mais. Sua obra completa foi reunida e publicada em 1994.

Cabral considerava o clássico Morte e vida severina, de 1956, uma obra menor, que não chegava a ser poesia. Era “apenas” um monólogo-diálogo, apesar de ser sua obra mais popular. Segundo Antonio Carlos Secchin, “ele propositalmente desvalorizava Morte e vida severina, talvez para chamar a atenção para outros títulos da sua obra. Um poeta de sua estatura não pode mesmo se ver reduzido a um só livro, ainda que seja magistral e de merecido sucesso, como esse título inesquecível” (por Daniele Martins para Revista da Cultura – Edição 31 – Fev/2010).

Por discordar plenamente do João Cabral, o Salvador na sola do pé apresenta nesse mês o clássico universal Morte e vida severina (prólogo), o primeiro Poema Falado de 2011, para iniciar o ano em grande estilo. A base do Poema Falado é o trecho inicial da minissérie produzida em 1981 pela Rede Globo de Televisão. O poema é interpretado pelo grande ator brasileiro José Dumont. Boa audio-leitura!

“O meu nome é Severino, não tenho outro de pia. Como há muitos Severinos, que é santo de romaria, deram então de me chamar Severino de Maria; como há muitos Severinos com mães chamadas Maria, fiquei sendo o da Maria do finado Zacarias. Mas isso ainda diz pouco: há muitos na freguesia, por causa de um coronel que se chamou Zacarias e que foi o mais antigo senhor desta sesmaria. Como então dizer quem fala ora a Vossas Senhorias ? Vejamos : é o Severino da Maria do Zacarias, lá da Serra da Costela, limites da Paraíba. Mas isso ainda diz pouco: se ao menos mais cinco havia com o nome de Severino filhos de tantas Marias mulheres de outros tantos, já finados, Zacarias, vivendo na mesma serra, magra e ossuda em que eu vivia. Somos muitos Severinos iguais em tudo na vida: na mesma cabeça grande que a custo se equilibra, no mesmo ventre crescido sobre as mesmas pernas finas, e iguais também porque o sangue, que usamos tem pouca tinta. E se somos Severinos iguais em tudo na vida, morremos de morte igual mesma morte severina: que é morte de que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia (de fraqueza e de doença é que a morte severina ataca em qualquer idade, e até gente não nascida). Somos muitos Severinos iguais em tudo e na sina: a de abrandar estas pedras suando-se muito em cima a de tentar despertar terra sempre mais extinta, a de querer arrancar algum roçado da cinza. Mas, para que me conheçam melhor Vossas Senhorias e melhor possas seguir a história de minha vida, passo a ser o Severino que em vossa presença emigra”.


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Imagem: Retrato de João Cabral de Melo Neto - Editora Abril.

sábado, 1 de janeiro de 2011

Ano novo! Governo novo! Toma posse a primeira mulher presidenta do Brasil!

Sinto uma imensa honra por essa escolha do povo brasileiro e sei do significado histórico desta decisão. Sei, também, como é aparente a suavidade da seda verde-amarela da faixa presidencial, pois ela traz consigo uma enorme responsabilidade perante a nação. Para assumi-la, tenho comigo a força e o exemplo da mulher brasileira. Abro meu coração para receber, neste momento, uma centelha de sua imensa energia. E sei que meu mandato deve incluir a tradução mais generosa desta ousadia do voto popular que, após levar à presidência um homem do povo, decide convocar uma mulher para dirigir os destinos do país. Venho para abrir portas para que muitas outras mulheres, também possam, no futuro, ser presidenta; e para que --no dia de hoje-- todas as brasileiras sintam o orgulho e a alegria de ser mulher. Não venho para enaltecer a minha biografia; mas para glorificar a vida de cada mulher brasileira. Meu compromisso supremo é honrar as mulheres, proteger os mais frágeis e governar para todos!

Venho, antes de tudo, para dar continuidade ao maior processo de afirmação que este país já viveu. Venho para consolidar a obra transformadora do presidente Luis Inácio Lula da Silva, com quem tive a mais vigorosa experiência política da minha vida e o privilégio de servir ao país, ao seu lado, nestes últimos anos. De um presidente que mudou a forma de governar e levou o povo brasileiro a confiar ainda mais em si mesmo e no futuro do seu País. A maior homenagem que posso prestar a ele é ampliar e avançar as conquistas do seu governo. Reconhecer, acreditar e investir na força do povo foi a maior lição que o presidente Lula deixou para todos nós. Sob sua liderança, o povo brasileiro fez a travessia para uma outra margem da história. Minha missão agora é de consolidar esta passagem e avançar no caminho de uma nação geradora das mais amplas oportunidades.

Quero, neste momento, prestar minha homenagem a outro grande brasileiro, incansável lutador, companheiro que esteve ao lado do Presidente Lula nestes oito anos: nosso querido vice José Alencar. Que exemplo de coragem e de amor à vida nos dá este homem! E que parceria fizeram o presidente Lula e o vice-presidente José Alencar, pelo Brasil e pelo nosso povo! Eu e Michel Temer nos sentimos responsáveis por seguir no caminho iniciado por eles.

Um governo se alicerça no acúmulo de conquistas realizadas ao longo da história. Ele sempre será, ao seu tempo, mudança e continuidade. Por isso, ao saudar os extraordinários avanços recentes, é justo lembrar que muitos, a seu tempo e a seu modo, deram grandes contribuições às conquistas do Brasil de hoje.

Vivemos um dos melhores períodos da vida nacional: milhões de empregos estão sendo criados; nossa taxa de crescimento mais que dobrou e encerramos um longo período de dependência do FMI, ao mesmo tempo em que superamos nossa dívida externa. Reduzimos, sobretudo, a nossa histórica dívida social, resgatando milhões de brasileiros da tragédia da miséria e ajudando outros milhões a alcançarem a classe média.

Mas, em um país com a complexidade do nosso, é preciso sempre querer mais, descobrir mais, inovar nos caminhos e buscar novas soluções. Só assim poderemos garantir, aos que melhoraram de vida, que eles podem alcançar mais; e provar, aos que ainda lutam para sair da miséria, que eles podem, com a ajuda do governo e de toda sociedade, mudar de patamar. Que podemos ser, de fato, uma das nações mais desenvolvidas e menos desiguais do mundo - um país de classe média sólida e empreendedora. Uma democracia vibrante e moderna, plena de compromisso social, liberdade política e criatividade institucional.

Queridos brasileiros e queridas brasileiras, para enfrentar estes grandes desafios é preciso manter os fundamentos que nos garantiram chegar até aqui. Mas, igualmente, agregar novas ferramentas e novos valores.

Na política é tarefa indeclinável e urgente uma reforma política com mudanças na legislação para fazer avançar nossa jovem democracia, fortalecer o sentido programático dos partidos e aperfeiçoar as instituições, restaurando valores e dando mais transparência ao conjunto da atividade pública.

Para dar longevidade ao atual ciclo de crescimento é preciso garantir a estabilidade de preços e seguir eliminando as travas que ainda inibem o dinamismo de nossa economia, facilitando a produção e estimulando a capacidade empreendedora de nosso povo, da grande empresa até os pequenos negócios locais, do agronegócio à agricultura familiar.

É, portanto, inadiável a implementação de um conjunto de medidas que modernize o sistema tributário, orientado pelo princípio da simplificação e da racionalidade. O uso intensivo da tecnologia da informação deve estar a serviço de um sistema de progressiva eficiência e elevado respeito ao contribuinte.

Valorizar nosso parque industrial e ampliar sua força exportadora será meta permanente. A competitividade de nossa agricultura e da pecuária, que faz do Brasil grande exportador de produtos de qualidade para todos os continentes, merecerá toda nossa atenção. Nos setores mais produtivos a internacionalização de nossas empresas já é uma realidade.

O apoio aos grandes exportadores não é incompatível com o incentivo à agricultura familiar e ao microempreendedor. As pequenas empresas são responsáveis pela maior parcela dos empregos permanentes em nosso país. Merecerão políticas tributárias e de crédito perenes.

Valorizar o desenvolvimento regional é outro imperativo de um país continental, sustentando a vibrante economia do nordeste, preservando e respeitando a biodiversidade da Amazônia no norte, dando condições à extraordinária produção agrícola do centro-oeste, a força industrial do sudeste e a pujança e o espírito de pioneirismo do sul. É preciso, antes de tudo, criar condições reais e efetivas capazes de aproveitar e potencializar, ainda mais e melhor, a imensa energia criativa e produtiva do povo brasileiro.

No plano social, a inclusão só será plenamente alcançada com a universalização e a qualificação dos serviços essenciais. Este é um passo, decisivo e irrevogável, para consolidar e ampliar as grandes conquistas obtidas pela nossa população. É, portanto, tarefa indispensável uma ação renovada, efetiva e integrada dos governos federal, estaduais e municipais, em particular nas áreas da saúde, da educação e da segurança, vontade expressa das famílias brasileiras.

Queridas brasileiras e queridos brasileiros, a luta mais obstinada do meu governo será pela erradicação da pobreza extrema e a criação de oportunidades para todos. Uma expressiva mobilidade social ocorreu nos dois mandatos do Presidente Lula. Mas, ainda existe pobreza a envergonhar nosso país e a impedir nossa afirmação plena como povo desenvolvido. Não vou descansar enquanto houver brasileiros sem alimentos na mesa, enquanto houver famílias no desalento das ruas, enquanto houver crianças pobres abandonadas à própria sorte. O congraçamento das famílias se dá no alimento, na paz e na alegria. E este é o sonho que vou perseguir! Esta não é tarefa isolada de um governo, mas um compromisso a ser abraçado por toda sociedade. Para isso peço com humildade o apoio das instituições públicas e privadas, de todos os partidos, das entidades empresariais e dos trabalhadores, das universidades, da juventude, de toda a imprensa e de das pessoas de bem. A superação da miséria exige prioridade na sustentação de um longo ciclo de crescimento. É com crescimento que serão gerados os empregos necessários para as atuais e as novas gerações. É com crescimento, associado a fortes programas sociais, que venceremos a desigualdade de renda e do desenvolvimento regional.

Isso significa - reitero - manter a estabilidade econômica como valor absoluto. Já faz parte de nossa cultura recente a convicção de que a inflação desorganiza a economia e degrada a renda do trabalhador. Não permitiremos, sob nenhuma hipótese, que esta praga volte a corroer nosso tecido econômico e a castigar as famílias mais pobres.

Continuaremos fortalecendo nossas reservas para garantir o equilíbrio das contas externas. Atuaremos decididamente nos fóruns multilaterais na defesa de políticas econômicas saudáveis e equilibradas, protegendo o país da concorrência desleal e do fluxo indiscriminado de capitais especulativos. Não faremos a menor concessão ao protecionismo dos países ricos que sufoca qualquer possibilidade de superação da pobreza de tantas nações pela via do esforço de produção.

Faremos um trabalho permanente e continuado para melhorar a qualidade do gasto público. O Brasil optou, ao longo de sua história, por construir um estado provedor de serviços básicos e de previdência social pública. Isso significa custos elevados para toda a sociedade, mas significa também a garantia do alento da aposentadoria para todos e serviços de saúde e educação universais. Portanto, a melhoria dos serviços é também um imperativo de qualificação dos gastos governamentais.

Outro fator importante da qualidade da despesa é o aumento dos níveis de investimento em relação aos gastos de custeio. O investimento público é essencial como indutor do investimento privado e como instrumento de desenvolvimento regional. Através do Programa de Aceleração do Crescimento e do Minha Casa Minha Vida, manteremos o investimento sob estrito e cuidadoso acompanhamento da Presidência da República e dos ministérios. O PAC continuará sendo um instrumento de coesão da ação governamental e coordenação voluntária dos investimentos estruturais dos estados e municípios. Será também vetor de incentivo ao investimento privado, valorizando todas as iniciativas de constituição de fundos privados de longo prazo.

Por sua vez, os investimentos previstos para a Copa do Mundo e para as Olimpíadas serão concebidos de maneira a dar ganhos permanentes de qualidade de vida, em todas as regiões envolvidas. Este princípio vai reger também nossa política de transporte aéreo. É preciso, sem dúvida, melhorar e ampliar nossos aeroportos para a Copa e as Olimpíadas. Mas é mais que necessário melhorá-los já, para arcar com o crescente uso deste meio de transporte por parcelas cada vez mais amplas da população brasileira.

Queridas brasileiras e queridos brasileiros, junto com a erradicação da miséria, será prioridade do meu governo a luta pela qualidade da educação, da saúde e da segurança. Nas últimas duas décadas, o Brasil universalizou o ensino fundamental. Porém é preciso melhorar sua qualidade e aumentar as vagas no ensino infantil e no ensino médio. Para isso, vamos ajudar decididamente os municípios a ampliar a oferta de creches e de pré escolas.

No ensino médio, além do aumento do investimento publico vamos estender a vitoriosa experiência do PROUNI para o ensino médio profissionalizante, acelerando a oferta de milhares de vagas para que nossos jovens recebam uma formação educacional e profissional de qualidade.

Mas só existirá ensino de qualidade se o professor e a professora forem tratados como as verdadeiras autoridades da educação, com formação continuada, remuneração adequada e sólido compromisso com a educação das crianças e jovens. Somente com avanço na qualidade de ensino poderemos formar jovens preparados, de fato, para nos conduzir à sociedade da tecnologia e do conhecimento (grifo do autor do blog).

Queridas brasileiras e queridos brasileiros, consolidar o Sistema Único de Saúde será outra grande prioridade do meu governo. Para isso, vou acompanhar pessoalmente o desenvolvimento desse setor tão essencial para o povo brasileiro. Quero ser a presidenta que consolidou o SUS, tornando-o um dos maiores e melhores sistemas de saúde pública do mundo.

O SUS deve ter como meta a solução real do problema que atinge a pessoa que o procura, com uso de todos os instrumentos de diagnóstico e tratamento disponíveis, tornando os medicamentos acessíveis a todos, além de fortalecer as políticas de prevenção e promoção da saúde. Vou usar a força do governo federal para acompanhar a qualidade do serviço prestado e o respeito ao usuário. Vamos estabelecer parcerias com o setor privado na área da saúde, assegurando a reciprocidade quando da utilização dos serviços do SUS. A formação e a presença de profissionais de saúde adequadamente distribuídos em todas as regiões do país será outra meta essencial ao bom funcionamento do sistema.

Queridas brasileiras e queridos brasileiros, a ação integrada de todos os níveis de governo e a participação da sociedade é o caminho para a redução da violência que constrange a sociedade e as famílias brasileiras. Meu governo fará um trabalho permanente para garantir a presença do Estado em todas as regiões mais sensíveis à ação da criminalidade e das drogas, em forte parceria com Estados e Municípios.

O estado do Rio de Janeiro mostrou o quanto é importante, na solução dos conflitos, a ação coordenada das forças de segurança dos três níveis de governo, incluindo - quando necessário - a participação decisiva das Forças Armadas. O êxito desta experiência deve nos estimular a unir as forças de segurança no combate, sem tréguas, ao crime organizado, que sofistica a cada dia seu poder de fogo e suas técnicas de aliciamento de jovens. Buscaremos também uma maior capacitação federal na área de inteligência e no controle das fronteiras, com uso de modernas tecnologias e treinamento profissional permanente. Reitero meu compromisso de agir no combate as drogas, em especial ao avanço do crack, que desintegra nossa juventude e infelicita as famílias.

Queridas brasileiras e queridos brasileiros, o pré-sal é nosso passaporte para o futuro, mas só o será plenamente se produzir uma síntese equilibrada de avanço tecnológico, avanço social e cuidado ambiental. A sua própria descoberta é resultado do avanço tecnológico brasileiro e de uma moderna política de investimentos em pesquisa e inovação. Seu desenvolvimento será fator de valorização da empresa nacional e seus investimentos serão geradores de milhares de novos empregos.

O grande agente desta política é a Petrobrás, símbolo histórico da soberania brasileira na produção energética. O meu governo terá a responsabilidade de transformar a enorme riqueza obtida no Pré Sal em poupança de longo prazo, capaz de fornecer às atuais e às futuras gerações a melhor parcela dessa riqueza, transformada, ao longo do tempo, em investimentos efetivos na qualidade dos serviços públicos, na redução da pobreza e na valorização do meio ambiente. Recusaremos o gasto apressado, que reserva às futuras gerações apenas as dívidas e a desesperança.

Meus queridos brasileiros e brasileiras, muita coisa melhorou em nosso país, mas estamos vivendo apenas o início de uma nova era. O despertar de um novo Brasil. Recorro a um poeta da minha terra: “o que tem de ser, tem muita força”.

Pela primeira vez o Brasil se vê diante da oportunidade real de se tornar, de ser, uma nação desenvolvida. Uma nação com a marca inerente da cultura e do estilo brasileiros --o amor, a generosidade, a criatividade e a tolerância. Uma nação em que a preservação das reservas naturais e das suas imensas florestas, associada à rica biodiversidade e a matriz energética mais limpa do mundo, permitem um projeto inédito de país desenvolvido com forte componente ambiental.

O mundo vive num ritmo cada vez mais acelerado de revolução tecnológica. Ela se processa tanto na decifração de códigos desvendadores da vida quanto na explosão da comunicação e da informática. Temos avançado na pesquisa e na tecnologia, mas precisamos avançar muito mais. Meu governo apoiará fortemente o desenvolvimento científico e tecnológico para o domínio do conhecimento e a inovação como instrumento da produtividade.

Mas o caminho para uma nação desenvolvida não está somente no campo econômico. Ele pressupõe o avanço social e a valorização da diversidade cultural. A cultura é a alma de um povo, essência de sua identidade. Vamos investir em cultura, ampliando a produção e o consumo em todas as regiões de nossos bens culturais e expandindo a exportação da nossa música, cinema e literatura, signos vivos de nossa presença no mundo. Em suma: temos que combater a miséria, que é a forma mais trágica de atraso, e, ao mesmo tempo, avançar investindo fortemente nas áreas mais sofisticadas da invenção tecnológica, da criação intelectual e da produção artística e cultural. Justiça social, moralidade, conhecimento, invenção e criatividade, devem ser, mais que nunca, conceitos vivos no dia-a-dia da nação.

Queridos brasileiros e queridas brasileiras, considero uma missão sagrada do Brasil a de mostrar ao mundo que é possível um país crescer aceleradamente, sem destruir o meio-ambiente. Somos e seremos os campeões mundiais de energia limpa, um país que sempre saberá crescer de forma saudável e equilibrada.

O etanol e as fontes de energia hídricas terão grande incentivo, assim como as fontes alternativas: a biomassa, a eólica e a solar. O Brasil continuará também priorizando a preservação das reservas naturais e das florestas. Nossa política ambiental favorecerá nossa ação nos fóruns multilaterais. Mas o Brasil não condicionará sua ação ambiental ao sucesso e ao cumprimento, por terceiros, de acordos internacionais. Defender o equilíbrio ambiental do planeta é um dos nossos compromissos nacionais mais universais.

Meus queridos brasileiros e brasileiras, nossa política externa estará baseada nos valores clássicos da tradição diplomática brasileira: promoção da paz, respeito ao princípio de não-intervenção, defesa dos Direitos Humanos e fortalecimento do multilateralismo.

O meu governo continuará engajado na luta contra a fome e a miséria no mundo. Seguiremos aprofundando o relacionamento com nossos vizinhos sul-americanos; com nossos irmãos da América Latina e do Caribe; com nossos irmãos africanos e com os povos do Oriente Médio e dos países asiáticos. Preservaremos e aprofundaremos o relacionamento com os Estados Unidos e com a União Européia. Vamos dar grande atenção aos países emergentes.

O Brasil reitera, com veemência e firmeza, a decisão de associar seu desenvolvimento econômico, social e político ao de nosso continente. Podemos transformar nossa região em componente essencial do mundo multipolar que se anuncia, dando consistência cada vez maior ao Mercosul e à Unasul. Vamos contribuir para a estabilidade financeira internacional, com uma intervenção qualificada nos fóruns multilaterais.

Nossa tradição de defesa da paz não nos permite qualquer indiferença frente à existência de enormes arsenais atômicos, à proliferação nuclear, ao terrorismo e ao crime organizado transnacional. Nossa ação política externa continuará propugnando pela reforma dos organismos de governança mundial, em especial as Nações Unidas e seu Conselho de Segurança.

Queridas brasileiras e queridos brasileiros, disse, no início deste discurso, que eu governarei para todos os brasileiros e brasileiras. E vou fazê-lo. Mas é importante lembrar que o destino de um país não se resume à ação de seu governo. Ele é o resultado do trabalho e da ação transformadora de todos os brasileiros e brasileiras. O Brasil do futuro será exatamente do tamanho daquilo que, juntos, fizermos por ele hoje. Do tamanho da participação de todos e de cada um: dos movimentos sociais, dos que labutam no campo, dos profissionais liberais, dos trabalhadores e dos pequenos empreendedores, dos intelectuais, dos servidores públicos, dos empresários, das mulheres, dos negros, dos índios e dos jovens, de todos aqueles que lutam para superar distintas formas de discriminação.

Quero estar ao lado dos que trabalham pelo bem do Brasil na solidão amazônica, na seca nordestina, na imensidão do cerrado, na vastidão dos pampas. Quero estar ao lado dos que vivem nos aglomerados metropolitanos, na vastidão das florestas; no interior ou no litoral, nas capitais e nas fronteiras do Brasil. Quero convocar todos a participar do esforço de transformação do nosso país.

Respeitada a autonomia dos poderes e o princípio federativo, quero contar com o Legislativo e o Judiciário, e com a parceria de governadores e prefeitos para continuarmos desenvolvendo nosso País, aperfeiçoando nossas instituições e fortalecendo nossa democracia.

Reafirmo meu compromisso inegociável com a garantia plena das liberdades individuais; da liberdade de culto e de religião; da liberdade de imprensa e de opinião. Reafirmo que prefiro o barulho da imprensa livre ao silêncio das ditaduras. Quem, como eu e tantos outros da minha geração, lutamos contra o arbítrio e a censura, somos naturalmente amantes da mais plena democracia e da defesa intansigente dos direitos humanos, no nosso País e como bandeira sagrada de todos os povos.

O ser humano não é só realização prática, mas sonho; não é só cautela racional, mas coragem, invenção e ousadia. E esses são elementos fundamentais para a afirmação coletiva da nossa nação.

Eu e meu vice Michel Temer fomos eleitos por uma ampla coligação partidária. Estamos construindo com eles um governo onde capacidade profissional, liderança e a disposição de servir ao país serão os critérios fundamentais.

Mais uma vez estendo minha mão aos partidos de oposição e as parcelas da sociedade que não estiveram conosco na recente jornada eleitoral. Não haverá de minha parte discriminação, privilégios ou compadrio. A partir deste momento sou a presidenta de todos os brasileiros, sob a égide dos valores republicanos.

Serei rígida na defesa do interesse público. Não haverá compromisso com o erro, o desvio e o malfeito. A corrupção será combatida permanentemente, e os órgãos de controle e investigação terão todo o meu respaldo para aturem com firmeza e autonomia.

Queridas brasileiras e queridos brasileiros, chegamos ao final desse longo discurso. Dediquei toda a minha vida a causa do Brasil. Entreguei minha juventude ao sonho de um país justo e democrático. Suportei as adversidades mais extremas infligidas a todos que ousamos enfrentar o arbítrio. Não tenho qualquer arrependimento, tampouco ressentimento ou rancor.

Muitos da minha geração, que tombaram pelo caminho, não podem compartilhar a alegria deste momento. Divido com eles esta conquista, e rendo-lhes minha homenagem. Esta dura caminhada me fez valorizar e amar muito mais a vida e me deu sobretudo coragem para enfrentar desafios ainda maiores. Recorro mais uma vez ao poeta da minha terra: “O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”. É com esta coragem que vou governar o Brasil.

Mas mulher não é só coragem. É carinho também. Carinho que dedico a minha filha e ao meu neto. Carinho com que abraço a minha mãe que me acompanha e me abençoa. É com este mesmo carinho que quero cuidar do meu povo, e a ele - só a ele - dedicar os próximos anos da minha vida. Que Deus abençoe o Brasil! Que Deus abençoe a todos nós! (por Dilma Rousseff)
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Imagem: Ricardo Matsukawa (Terra)