segunda-feira, 31 de maio de 2010

Igualdade, fraternidade, reconhecimento e respeito

Para a tradição filosófica a igualdade diz respeito à relação entre dois termos onde um pode substituir o outro sem prejuízo ou alteração do contexto no qual esta relação está inserida. Logo, dois termos podem ser considerados iguais quando a substituição de um pelo outro preserva o valor intrínseco do contexto.

De acordo com Nicola Abbagnano (Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2000), a noção de igualdade interpretada como possibilidade de substituição de dois termos entre si, refere-se tanto às relações puramente formais de equivalência quanto às relações políticas, morais e jurídicas pautadas pelo princípio da igualdade. De que maneira? Diz ele: “a igualdade dos cidadãos perante a lei pode ser reduzida à possibilidade de substituição nas situações previstas pela lei sem que mude o procedimento da lei, de tal forma que, por exemplo, o réu por um crime D nas circunstâncias C pode ser substituído por qualquer outro réu do mesmo crime na mesma circunstância, sem que o procedimento legal seja alterado. Do mesmo modo, pode-se descrever a igualdade moral ou jurídica dizendo que, nela, X, que se encontre em determinadas condições, possui prerrogativas ou possibilidades não diferentes das possuídas por qualquer outro X nas mesmas condições”. Nessa perspectiva, a igualdade só pode exprimir-se dentro de um contexto específico com base, ainda, segundo Abbagnano, “na determinação das condições às quais os termos devem satisfazer para serem considerados substituíveis”.

Como é possível perceber, a igualdade não denota ausência de diferenças. Tampouco implica ausência de conflitos. Seu significado se aproxima, conforme se pretende demonstrar aqui, da noção de fraternidade, que, em uma de suas acepções, quer dizer amor ao próximo.

Para amar ao próximo é preciso, antes de mais nada, reconhecer o outro como próximo, ou seja, como alguém a quem se pode e/ou se deve amar. O reconhecimento é, portanto, a condição básica para se cultivar o amor ao próximo. O respeito é a conseqüência desse reconhecimento, pois só se respeita algo que consideramos próximos a nós, isto é, igual. E o que se busca ou almeja nas sociedades contemporâneas não é mais uma igualdade que exclui as diferenças. Hoje, o que se quer é uma igualdade onde haja respeito às peculiaridades de cada um, que promova a harmonia e união entre aqueles que vivem em proximidade. Igualdade de oportunidades e direitos, reconhecimento e respeito, estes são os ingredientes básicos para se construir uma sociedade verdadeiramente democrática e justa. Esse é um princípio do qual não podemos abrir mão. Em torno dele devem se unir todos aqueles que lutam pela mesma causa, ou seja, a paz entre os povos e indivíduos, em última instância, o bem da coletividade (por Coccinelle e Sílvio Benevides).
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Imagem: Carlos Lopes – Pisados diariamente

segunda-feira, 24 de maio de 2010

A quem interessa o silêncio?

Qual a razão para se condenar ao ostracismo os massacres orquestrados pelo aparato bélico-militar estatal durante ditadura militar brasileira? O que de fato escondem os arquivos do regime militar? Por que não esclarecer a história referente à Guerrilha do Araguaia e tantos outros episódios ainda mal esclarecidos? Por que insistir no obscurantismo e na mentira? A quem interessa o silêncio? São tantas perguntas e poucas as respostas verdadeiramente convincentes.

Por conta disso o Brasil foi parar no banco dos réus na Corte Interamericana de Direitos Humanos, que abrirá nesta quinta-feira (20/05) uma audiência contra o Brasil para julgar os crimes cometidos pelas forças de segurança durante a ditadura militar (1964-1985), cujos autores foram beneficiados após a polêmica Lei de Anistia ditada pelos generais.

Em uma audiência pública de dois dias, com representantes das vítimas e do governo brasileiro, a Corte julgará o caso Gomes Lund, mais conhecido como a Guerrilha do Araguaia, ocorrido entre 1972 e 1975, dentro da operação das Forças Armadas para destruir um movimento de resistência à ditadura no Estado do Pará.

O objetivo é julgar se o Estado brasileiro é responsável pela detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de pelo menos 70 integrantes do Partido Comunista do Brasil (PC do B), uma dissidência do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e de moradores na repressão militar à Guerrilha do Araguaia, além da execução extrajudicial de Maria Lucia Petit da Silva (cujos restos mortais foram localizados).

O Brasil se nega desde o retorno à democracia, em 1985, a abrir uma investigação para esclarecer os fatos e determinar responsabilidades, amparando-se na Lei de Anistia promulgada em 1979 pelo regime militar, segundo as organizações de defesa dos direitos humanos.

Segundo o secretário-executivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Santiago Canton, “a manutenção da Lei de Anistia vai contra o que acreditamos ser a direção legal que o continente deve tomar. Mas o governo brasileiro não cumpriu e por isso é que caberá agora à corte dar sua decisão”.

Fim da impunidade

Há duas semanas, o Supremo Tribunal Federal descartou, por 7 votos a 2, a possibilidade de abrir uma investigação deste caso, alegando a vigência da Lei de Anistia. No dia seguinte, a cúpula da OEA atacou a decisão e pediu o fim da impunidade no País.

“A justiça brasileira parece ser presa da ‘síndrome de Estocolmo’, a recente decisão do Supremo Tribunal apoia quem no passado violou os direitos humanos e hoje aspira manter-se na impunidade”, afirmou Viviana Krsticevic, diretora executiva do Centro pela Justiça e Direito Internacional (CEJIL). Síndrome de Estocolmo diz respeito ao processo psicológico que leva as vítimas de sequestros a simpatizar com seus captores ou se identificar com sua causa.

O CEJIL é uma organização internacional de defesa dos direitos humanos, que representa os familiares das vítimas neste processo ante a Corte Interamericana, com sede em San José. Segundo a entidade, resoluções da ONU e a jurisprudência de tribunais internacionais são claras quando afirmam que as leis de anistia não podem ser alegadas como razão para não investigar o paradeiro dos desaparecidos. Também não podem ser evocadas para negar a identificação e a punição dos autores de casos graves de violações dos direitos humanos, recordou o CEJIL.

Krsticevic disse que o ministro da Defesa brasileiro, Nélson Jobim, sugeriu publicamente a possibilidade de que o Brasil não acate uma eventual condenacão da Corte Interamericana sobre este caso. “Queremos enfatizar a obrigação do Brasil de respeitar as sentenças da Corte Interamericana”, afirmou a ativista, assinalando que uma reação desse tipo seria uma “mancha enorme” na imagem do presidente Luiz Inácio Lula da Silva que foi preso durante a ditadura.

Negativo para o Brasil

O ministro Paulo Vannuchi, da secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, reconhece que há possibilidade de uma sentença negativa para o Brasil na OEA. “Eu temo pelo pior”, disse Vannuchi essa semana. “É claro que quando uma solução amistosa não segue adiante é ruim. A imagem do Brasil de um país muito sensível aos direitos humanos então sofre danos”.

Para Vannuchi, mesmo com uma decisão negativa na Corte da OEA, o trabalho da secretaria segue adiante. “É uma demonstração cabal de que o Brasil está sensível e trabalhando o tema”, disse o ministro, que também comentou a participação do presidente Lula na assinatura de um acordo sobre o programa nuclear iraniano. “O Brasil vive momento novo na história. Pode ter conseguido uma coisa inédita, uma intermediação em uma questão gravíssima para a paz. Tradicionalmente isso foi tarefa dos EUA, da Inglaterra, da França, e agora o Brasil aparece como parceiro intermediador”, disse.

“Nesse salto que o Brasil está dando, o ideal é que não haja nenhuma decisão do sistema OEA contra o País. Mas não tenho dúvida de que, mesmo que haja uma decisão negativa, haverá referências reconhecendo os avanços. O que pode prevalecer nos membros da Corte é a visão de que, embora esteja avançando, os avanços são insuficientes”, completou.

Essa é a primeira vez que os casos envolvendo crimes durante a ditadura chegam à corte. A ação poderá condenar internacionalmente o Brasil a não mais usar a Lei de Anistia como argumento para isentar de punição os acusados de crimes contra a humanidade cometidos durante a ditadura. No Chile e Peru, os governos foram obrigados a abandonar suas leis de anistia diante da condenação emitida pela corte na Costa Rica.

Audiência
Na audiência, a Corte ouvirá os testemunhos de parentes das vítimas, assim como as alegações dos organismos de direitos humanos e dos representantes do Estado brasileiro. Posteriormente, será aberto um período para a incorporação de alegações por escrito ao processo, até 21 de junho, depois do que a Corte emitirá uma sentença num prazo não estabelecido. Se for mantida a praxe, a decisão da OEA deverá ser anunciada em até 6 meses (Fontes: Último Segundo, Ig, Agência Estado e AFP).
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Imagem: Love remains, por Augusto Peixoto.

Araguaia: 38 anos de viva memória

A Guerrilha do Araguaia completa 38 anos do seu início, quando alguns dos generais fascistas sobreviventes e porta-vozes do regime militar saem do armário e defendem estranhas posições, destinadas à tenebrosa intenção de reescrever a História ao seu favor. Entretanto, nos humores da conjuntura, se realçam boas noticias para a resistência ao obscurantismo remanescente.

O aspecto coincidente remonta à intensificação da luta de idéias na qual o diversionismo ganha espaço exemplar em emissoras como a Globo News — que apresenta uma sequência de entrevistas com sinistras entidades das sombras como o general Leônidas Pires Gonçalves e Newton Cruz.

Nestas, a mais singela das revelações informa que elementos tidos como “de esquerda” foram corrompidos e entregaram reuniões como a da Lapa, onde se reunia o Comitê Central do PCdoB, no dia 16 de dezembro de 1976, num episódio que ficou marcado na História como a última ação dos militares contra a Guerrilha do Araguaia — um desdobramento que bem revelava seu pavor de que a luta armada contra o regime fascista apresentasse novos desdobramentos.

Mentiras ilimitadas

O general Pires Gonçalves, mentindo descaradamente, afronta a inteligência social quando, em diversos momentos da sua entrevista, tenta falsear a realidade. Exemplo disso consta da afirmação de que as forças incumbidas de realizar o Massacre foram “recebidas a tiros” por Ângelo Arroyo e Pedro Pomar — que, sob intensa e covarde fuzilaria, e colhidos de surpresa, foram brutalmente fuzilados e sequer tiveram tempo de esboçar um gesto de resistência.

Também uma entrevista com o ex-ministro da Educação da ditadura, Jarbas Passarinho, renovada oito anos depois pelas repórteres Maria Inês Nassif e Paula Simas, revela outros absurdos. Nessa surreal tentativa de burlar a verdade e os fatos, prevalece a sórdida tentativa de tratar desiguais como iguais, quando afirma Passarinho: “Eu chamo esse período de guerra suja porque a Convenção de Genebra não funcionava para nenhum dos lados (…) É preciso acabar com esse maniqueísmo: se houve erro, houve de parte a parte e uns foram consequência e outros foram causa”.

Desse modo, os “excessos” dos oposicionistas à ditadura são qualificados como “ódio ideológico” e as hediondas torturas produzidas pelos militares são qualificadas como “tática”.

Araguaia: julgamento internacional

O 12 de abril ocorre também num momento de impasse quanto às buscas dos guerrilheiros desaparecidos na região do Araguaia, após buscas infrutíferas que mobilizaram, sob o comando e articulação de um grupo interministerial, um grande aparato técnico e militar no ano de 2009.

E, na medida do insucesso da missão oficial determinada pelo governo federal, não conseguiu conter a determinação da Corte Interamericana de Direitos Humanos, instituição da OEA (Organização dos Estados Americanos) considerada “autônoma”, que ameaçou em 2009 promover o julgamento do Brasil sobre os mortos do Araguaia, em sessão agora marcada para o mês de maio na Costa Rica.

Um núcleo de familiares de desaparecidos que conta com a participação de Sônia Maria Haas, irmã do médico e guerrilheiro gaúcho João Carlos Haas Sobrinho, programa ações públicas em Brasília e São Paulo com o objetivo de atrair a atenção da opinião pública sobre o caso nos dias que precedem o julgamento. E clama pelo apoio à mobilização.

Fracasso brasileiro

Na medida do fracasso da iniciativa governamental de resgate dos restos físicos dos guerrilheiros, reforçou-se uma delicada situação para quem duvida da autonomia da Corte em relação à OEA — que não tem simbolizado uma referência na defesa das liberdades democráticas e se afirmou como um organismo subalterno aos interesses imperiais dos EUA, inclusive na subordinação incondicional ao bloqueio econômico e político a Cuba.

Existe a preocupação de que tal tradição antidemocrática, contaminando sua Corte, trate agora de instrumentalizar uma causa justa: a da reparação do absurdo que consiste na ocultação dos vestígios ósseos dos guerrilheiros executados covardemente na região do Araguaia no período 1972-1975. E sem que os familiares possam recusar esta forma de pressão contraditória mas legítima sob o aspecto da sua legalidade e procedência nos fatos.

Nestas circunstâncias, nas quais o lado hediondo da ação castrense se superpõe à justiça requerida pelos familiares e pelo povo brasileiro, são completamente neutralizados os questionamentos acerca dos objetivos políticos voltados contra um governo que, a bordo de uma política externa construtiva e independente, barrou a criação da ALCA e atuou no enfrentamento de outros mecanismos de dominação dos EUA sobre os países e povos da América do Sul e de outros continentes.

Desafios agitam questão militar

O governo brasileiro fica assim em dificuldades, não obstante as iniciativas institucionais voltadas para a resolução do problema, desvencilhando-se dele. Terá que aprofundar questões candentes que afloraram no debate sobre o Plano Nacional de Direitos Humanos, em particular quanto à polêmica relativa à impunidade dos torturadores na relação com o “direito à verdade”.


No recente episódio, que desnudou a ênfase na impunidade, evidenciaram-se tarefas que exigem a superação histórica da tutela militarista e pró-imperialista, que constituem sérios obstáculos à estabilidade das liberdades democráticas e aspectos relacionados aos avanços sociais e políticos no Brasil.

São desafios que exigem o amplo envolvimento do povo brasileiro no resgate da consciência mais avançada e das responsabilidades castrenses. E não apenas quanto ao respeito da missão constitucional das forças armadas, mas sobretudo no que se refere à ruptura dos seus vínculos com a velha base do pensamento conservador que provém das suas relações originais com o latifúndio e com o imperialismo.

A colaboração — ainda que forçada pelos meios ao alcance do Estado — dos antigos agentes do pensamento conservador e do terrorismo institucional, representa a única alternativa para se alcançar a mínima honra devida aos ofendidos pela truculência naquele período de trevas para o Brasil.

Homenagem à Guerrilha e a João Amazonas

Um fato alvissareiro se avizinha nesses 38 anos do início da Guerrilha do Araguaia, com a prevista inauguração, no dia 15 de maio, do anfiteatro do Memorial do Araguaia e do Obelisco que homenageia o presidente (in memorian) João Amazonas em Xambioá — de acordo com as informações de Micheas Gomes de Almeida, o Zezinho do Araguaia.

Zezinho comemora também a vitória que consistiu num fato que estimativamente envolve quase 50 mil pessoas residentes nos municípios da bacia do rio Araguaia: a frustração da Barragem (e da Usina destinada ao beneficiamento de minérios para exportação) de Santa Isabel, que inundaria toda a área conflagrada pela guerrilha e, tal como ocorreu em Canudos com a construção da barragem Cocorobó, afogaria um pedaço da História do Brasil.

Esta obra de resistência, que envolveu e coloca em ação múltiplas forças, atua vigorosamente no sentido de conectar energias voltadas para a continuidade de um projeto que, não obstante a vasta destruição praticada numa região de florestas e riquíssimos recursos naturais e ambientais, trata de homenagear a luta dos guerrilheiros pela prosperidade social e pela felicidade dos despossuídos e lutadores, araguaios e brasileiros (Por Luis Carlos Antero).
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Imagem: Charge de Carlos Latuff.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Desobediência: a virtude original do homem

Pode-se até admitir que os pobres tenham virtudes, mas elas devem ser lamentadas. Muitas vezes ouvimos que os pobres são gratos à caridade. Alguns o são, sem dúvida, mas os melhores entre eles jamais o serão. São ingratos, descontentes, desobedientes e rebeldes - e têm razão. Consideram que a caridade é uma forma inadequada e ridícula de restituição parcial, uma esmola sentimental, geralmente acompanhada de uma tentativa impertinente, por parte do doador, de tiranizar a vida de quem a recebe. Por que deveriam sentir gratidão pelas migalhas que caem da mesa dos ricos? Eles deveriam estar sentados nela e agora começam a percebê-lo. Quanto ao descontentamento, qualquer homem que não se sentisse descontente com o péssimo ambiente e o baixo nível de vida que lhe são reservados seria realmente muito estúpido.

Qualquer pessoa que tenha lido a história da humanidade aprendeu que a desobediência é a virtude original do homem. O progresso é uma conseqüência da desobediência e da rebelião. Muitas vezes elogiamos os pobres por serem econômicos. Mas recomendar aos pobres que poupem é algo grotesco e insultante. Seria como aconselhar um homem que está morrendo de fome a comer menos; um trabalhador urbano ou rural que poupasse seria totalmente imoral. Nenhum homem deveria estar sempre pronto a mostrar que consegue viver como um animal mal alimentado. Deveria recusar-se a viver assim, roubar ou fazer greve - o que para muitos é uma forma de roubo.

Quanto à mendicância, é muito mais seguro mendigar do que roubar, mas é melhor roubar do que mendigar. Não! Um pobre que é ingrato, descontente, rebelde e que se recusa a poupar terá, provavelmente, uma verdadeira personalidade e uma grande riqueza interior. De qualquer forma, ele representará uma saudável forma de protesto. Quanto aos pobres virtuosos, devemos ter pena deles, mas jamais admirá-los. Eles entraram num acordo particular com o inimigo e venderam os seus direitos por um preço muito baixo. Devem ser também extraordinariamente estúpidos. Posso entender que um homem aceite as leis que protegem a propriedade privada e admita que ela seja acumulada enquanto for capaz de realizar alguma forma de atividade intelectual sob tais condições. Mas não consigo entender como alguém que tem uma vida medonha graças a essas leis possa ainda concordar com a sua continuidade.

Entretanto, a explicação não é difícil, pelo contrário. A miséria e a pobreza são de tal modo degradantes e exercem um efeito tão paralisante sobre a natureza humana que nenhuma classe consegue realmente ter consciência de seu próprio sofrimento. É preciso que outras pessoas venham apontá-lo e mesmo assim muitas vezes não acreditam nelas. O que os patrões dizem sobre os agitadores é totalmente verdadeiro. Os agitadores são um bando de pessoais intrometidas que se infiltram num determinado segmento da comunidade totalmente satisfeito com a situação em que vive e semeiam o descontentamento nele. É por isso que os agitadores são necessários. Sem eles, em nosso estado imperfeito, a civilização não avançaria. A abolição da escravatura nos EUA não foi uma conseqüência da ação direta dos escravos nem uma expressão do seu desejo de liberdade. A escravidão foi abolida graças à conduta totalmente ilegal de certos agitadores vindos de Boston e de outros lugares, que não eram escravos, não tinham escravos nem qualquer relação direta com o problema. Foram eles, sem dúvida que começaram tudo. É curioso observar que dos próprios escravos eles só receberam pouquíssima ajuda material e quase nenhuma solidariedade. E quando a guerra terminou e os escravos descobriram que estavam livres, tão livres que podiam até morrer de fome livremente, muitos lamentaram amargamente a nova situação. Para o pensador, o fato mais trágico na Revolução Francesa não foi que Maria Antonieta tenha sido morta por ser rainha, mas que os camponeses famintos da Vendée tivessem concordado em morrer defendendo a causa do feudalismo (por Oscar Wilde, em The Soul of Man under Socialism, 1891).
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Imagem: Teatro de rua, por João Torres.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Deu no La Presse Affaires: Dieux est brésilien!

O jornal canadense La Presse Affaires descobriu a pólvora! Deus é brasileiro. A notícia não chega a surpreender a nós, os brasileiros em questão, pois não é de hoje que temos certeza sobre a nacionalidade do Todo-Poderoso. Qual é a novidade, então? Bem, talvez seja o fato de o Brasil não aparecer no periódico internacional apenas como um lugar de miséria, violência e corrupção política. Não que essas coisas sejam problemas inexistentes em nosso país. Tampouco estou a dizer que as matérias cujo foco é dado a essas questões são inconvenientes ou inverídicas. Não se trata de defender aqui a prática de se tapar o sol com a peneira. Nada disso. Quero dizer apenas que o Brasil não é somente problemas. Sim, estes existem aos montes, mas as soluções estão sendo buscadas e encontradas. Se elas são as mais adequadas, só o tempo dirá. A despeito das dificuldades que o povo brasileiro continua a enfrentar, algumas vergonhosamente seculares, o fato é que mudanças estão a ocorrer nos rumos da história de nossa sociedade. Onde essas mudanças vão dar ou para onde irão nos levar, só mesmo Deus para saber. Mas como ele é brasileiro, resta-nos, então, rezar para que os caminhos vindouros sejam melhores que os pretéritos. Afinal, como já escreveu o Millôr Fernandes, os caminhos já trilhados “foram bons, foram ruins, foram péssimos, foram um fracasso, mas já se foram”. A matéria do periódico canadense foi reproduzida abaixo na íntegra e na língua original. Essa é, portanto, uma boa ocasião para se praticar o bom e velho francês québécois. Boa leitura, mes amies! (por Sílvio Benevides)

Dieux est brésilien

(Montréal) Richesses naturelles abondantes, des millions de nouveaux consommateurs, croissance soutenue... le Brésil semble béni des dieux. Du moins, le monde des affaires y croit.

La crise? Quelle crise? Elle n'est certes pas apparente dans les magasins de Rio de Janeiro ou de São Paulo.

En février, les ventes au détail au Brésil ont fait un bond spectaculaire de 12,3% par rapport à la même période l'an passé, a-t-on appris la semaine dernière. De quoi faire rêver nos détaillants en ces temps incertains.

Et on achète de tout: vêtements, électronique... et beaucoup de voitures neuves. Quelque 3,1 millions de véhicules ont été vendus dans ce pays l'an dernier. Et ça continue.

Si bien que sur le grand circuit mondial de l'automobile, le Brésil devrait dépasser l'Allemagne, cette année, pour devenir le quatrième marché en importance pour les ventes de véhicules (3,4 millions contre 3 millions), selon la firme J.D. Power.

Dieu est de notre côté

Avec des indicateurs aussi enviables, on est porté à croire le président Luiz Inacio Lula da Silva, qui s'est exclamé «Dieu est brésilien!» en annonçant en 2007 la découverte du gigantesque gisement pétrolier Tupi (de 5 à 8 milliards de barils), au large des côtes du pays.

Certes, la nature est généreuse avec le Brésil - l'un des seuls pays à pouvoir assurer son indépendance en matière d'eau, de nourriture et d'énergie.

Mais, comme en témoigne l'affluence dans les magasins, le vrai miracle brésilien est probablement ailleurs, soit dans la naissance de millions de nouveaux consommateurs.

Grâce à ses succès économiques, le Brésil a réussi à créer une véritable classe moyenne parmi les 185 millions d'habitants du pays. En 15 ans, elle est passée de 32 à 52% de la population, selon des statistiques officielles.

C'est probablement le fait d'armes de Lula da Silva, dont le deuxième et dernier mandat se termine l'automne prochain. En lançant des mesures sociales à grande échelle, comme la bolsa familia (aide financière conditionnée à la scolarisation des enfants), le président brésilien a sorti de la pauvreté 32 millions de ses concitoyens, selon le Boston Consulting Group. C'est presque autant que toute la population du Canada.

Autant de nouveaux consommateurs qui ont désormais accès au crédit et qui ne demandent qu'à dépenser.

Ruée des étrangers

Pas surprenant, alors, que les réalisations brésiliennes font accourir de nouveaux fidèles venus de partout dans le monde des affaires.

Ainsi, les investissements directs étrangers au Brésil devraient grimper de 47% cette année à 38 milliards de dollars, selon un sondage Bloomberg auprès de 100 économistes. C'est sans compter les 11 milliards que les investisseurs de l'extérieur du pays ont injectés à la Bourse brésilienne l'an passé - un record.

Les étrangers redoublent évidemment d'efforts dans les secteurs liés à la consommation: Carrefour, Sanofi-Aventis, Volkswagen et d'autres multinationales ont récemment annoncé d'importants investissements dans le pays.

Qui dit développement économique dit aussi infrastructures modernes. Or, le Brésil est en manque à ce chapitre.

Faute d'intervention divine, c'est Lula da Silva lui-même qui s'en occupera: son gouvernement vient d'annoncer des investissements de 900 milliards de dollars en grands travaux d'infrastructures, dont la plupart avant les Jeux olympiques qui auront lieu à Rio de 2016. C'est la deuxième étape de l'ambitieux Programme d'accélération de la croissance (PAC), lancé en janvier 2007.

Cet argent servira à la construction de deux millions de logements, de routes, de réseaux d'électricité ainsi qu'à la modernisation des ports et des voies ferrées et à l'urbanisation des favelas. Tout ça, sans toucher la cote de crédit du pays - toujours la meilleure d'Amérique latine.

Inflation

Le Brésil a donc fait des progrès énormes, mais peut-être trop rapides. Désormais, le défi du gouvernement sera de prévenir une surchauffe économique, prévient le président de la banque centrale, Henrique Meirelles.

L'inflation a atteint, sur une base annuelle, 5,2% en mars - ce qui est au-dessus de la cible de 4,5% que visent les autorités. Les Brésiliens doivent donc s'attendre à des hausses de taux d'intérêt pour contenir la croissance, qui devrait frôler les 6% cette année.

Un autre point tracasse les économistes. Bons vivants, les Brésiliens n'épargnent pas. Et quand ils consomment, c'est à crédit.

Le taux de défaillance des emprunteurs est élevé, de l'ordre de 12 à 15%, selon des banques européennes. Pas de quoi encore provoquer une crise. Mais c'est certainement une faiblesse que les dieux de la finance auront à l'oeil (par Richard Dupaul).
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Imagem: Millôr Fernandes.

domingo, 2 de maio de 2010

Poema Falado: O guardador de águas

Que a água é a fonte da vida, ninguém duvida ou sequer duvidou. Que a água é fonte de lendas, crenças, magias, paixões, medos e dissabores, ninguém questiona. Que a água é fonte da mais fresca poesia, só mesmo aqueles que pela vida se apaixonam sabem dizer. E assim o disse o Manoel de Barros na sua poesia O guardador de águas, que hora se apresenta nesse Poema Falado.

“Esse é Bernardo. Bernardo da Mata. Apresento. Ele faz encurtamento de águas. Apanha um pouco de rio com as mãos e espreme nos vidros até que as águas se ajoelhem do tamanho de uma lagarta nos vidros. No falar com as águas rãs o exercitam. Tentou encolher o horizonte no olho de um inseto - e obteve! Prende o silêncio com fivela. Até os caranguejos querem ele para chão. Viu as formigas carreando na estrada duas pernas de ocaso para dentro de um oco... E deixou. Essas formigas pensavam em seu olho. É homem percorrido de existências. Estão favoráveis a ele os camaleões. Espraiado na tarde - Como a foz de um rio - Bernardo se inventa... Lugarejos cobertos de limo o imitam. Passarinhos aveludam seus cantos quando o vêem”.



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Imagem: Ermida Gerês, Portugal, por Tiago Corvão.