segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

O que eu desejo

Em 2008, o Salvador na sola do pé encerrou o ano com uma série de manchetes veiculadas à época pelos meios de comunicação como uma maneira de refletir sobre os votos de felicidades comuns nesse período de virada de um ano para o outro. As manchetes não eram nada animadoras. A situação política, econômica e social no final do ano passado era bastante difícil. E hoje? Mudou? Creio que não. Dificuldades sempre existiram e continuarão a existir nesse ano e nos próximos que virão. Entretanto, não é sobre as dificuldades do mundo e da vida que desejo discorrer. Nesse final de ano me apropriei das palavras do poeta William Vicente Borges a fim de dizer o que eu desejo para 2010: “Que na sua vida... / Tudo tenha a beleza das flores, / Que não falte a luz do luar, / Que os amigos sejam todos sinceros, / Que o mar nunca se agite, mas se agitar / que o barco nunca afunde. / Que os beija-flores visitem / todos os dias o seu jardim, / Que os passarinhos cantem em sua janela, / Que os sorrisos se multipliquem / em sua face. / Que a inspiração renasça / a cada manhã. / Que teus sonhos sejam realizados, / Que seus dias de semana, sejam como o domingo. / Que o mal não chegue a porta da casa. / Que a tua dispensa esteja sempre abarrotada. / Que teus olhos só contemplem bondade, / Que cada passo teu seja iluminado por Deus. / Que todas as manhãs te recebam com um sorriso. É O QUE EU DESEJO”.

E para terminar o ano em grande estilo, um Poema Falado sobre o amor, Soneto CXVI, escrito por William Shakespeare. Como dizia um dos inúmeros grafites do Maio de 1968 francês: Faça amor, não faça guerra! Que 2010 traga muito amor e que todos tenham muito amor para dar e receber (por Sílvio Benevides).


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Imagem: William Bouguereau – Le Ravissement de Psyche (1895).

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

O presente dos magos

Um dólar e oitenta e sete centavos. Era tudo. E sessenta centavos eram em moedas. Moedas economizadas uma a uma, pechinchando com o dono do armazém, o dono da quitanda, o açougueiro, até o rosto arder à muda acusação de parcimônia que tais pechinchas implicavam. Três vezes Della contou o dinheiro. Um dólar e oitenta e sete centavos. E no dia seguinte seria Natal.

Não havia evidentemente mais nada a fazer senão atirar-se ao pequeno sofá puído e chorar. Foi o que Della fez. O que leva à reflexão moral de que a vida é feita de soluços, fungadelas e sorrisos, com predomínio das fungadelas.

Enquanto a dona da casa gradualmente passa do primeiro ao segundo estágio, vamos dar uma espiada na casa. Um apartamento mobiliado, a oito dólares por semana. Não era exatamente miserável, mas tinha essa palavra pronta para o grupo de mendicância.

No vestíbulo embaixo havia uma caixa de correspondência na qual carta nenhuma seria posta, e um botão de campainha que nenhum dedo mortal jamais apertaria. Encontrava-se ali também um cartão anunciando o nome do “Sr. James Dillingham Young”.

O “Dillingham” fora acrescentado durante um anterior período de prosperidade, quando seu possuidor estava ganhando trinta dólares por semana. Agora, que a receita baixara para vinte dólares, as letras de “Dillingham” pareciam nubladas, como se estivessem pensando seriamente em abreviar para um modesto e despretensioso D. Mas sempre que o Sr. James Dillingham Young voltava para casa e chegava ao seu apartamento lá em cima, era chamado de “Jim” e carinhosamente abraçado pela Srª. James Dillingham Young, já apresentada ao leitor como Della. O que está muito bem.

Della terminou de chorar e cuidou do rosto com a esponja de pó. Postou-se junto à janela e ficou a contemplar melancolicamente um gato cinzento caminhando sobre uma cerca cinzenta num quintal cinzento. Amanhã seria Dia de Natal e ela tinha apenas um dólar e oitenta e sete centavos para comprar o presente de Jim. Estivera a economizar tostão por tostão havia meses, e esse era o resultado. Vinte dólares por semana não dão para nada. As despesas tinham sido maiores do que calculara. Sempre são. Apenas um dólar e oitenta e sete centavos para comprar o presente de Jim. O seu Jim. Muitas horas felizes passara ela planejando comprar-lhe alguma coisa bonita. Alguma coisa fina, rara, legítima – algo que estivesse bem perto de merecer a honra de ser possuída por Jim.

Havia um espelho de tremó entre as janelas da sala. Talvez o leitor já tenha visto um espelho de tremó num apartamento de oito dólares. Uma pessoa muito esguia e muito ágil pode, ao observar seu reflexo numa rápida seqüência de tiras longitudinais, obter uma concepção bastante acurada de sua aparência. Della, por ser esguia, lograra aperfeiçoar-se nessa arte.

Subitamente, afastou-se da janela e postou-se diante do espelho. Seus olhos estavam brilhantes, mas sua face perdeu a cor ao cabo de vinte segundos. Num gesto rápido, soltou o cabelo e deixou desdobrar-se em toda a sua extensão.

Ora, os James Dillingham Youngs tinham dois haveres de que muito se orgulhavam. Um era o relógio de ouro de Jim, que pertencera a seu pai e a seu avô. O outro era o cabelo de Della. Morara a Rainha de Sabá no apartamento do outro lado do poço de ventilação, e Della teria algum dia deixado o seu cabelo cair fora da janela para secá-lo e depreciar assim as jóias e as riquezas de Sua Majestade. Fora o Rei Salomão o zelador, com todos os seus tesouros empilhados no porão, e Jim teria puxado o relógio cada vez que por ele passasse, só para vê-lo arrancar as barbas de inveja.

O cabelo de Della, pois, caiu-lhe pelas costas, ondulando e brilhando como uma cascata de águas castanhas. Chegava-lhe abaixo do joelho e quase lhe servia de manto. Ela então o prendeu de novo, célere e nervosamente. A certo momento, deteve-se e permaneceu imóvel, enquanto uma ou duas lágrimas caíam sobre o puído tapete vermelho.

Vestiu o velho casaco marrom; pôs o velho chapéu marrom. Com um ruge-ruge de saias e com a centelha brilhante ainda nos olhos, correu para a porta e desceu rapidamente a escada que levava à rua.

Parou onde havia um letreiro anunciando: “Mme. Sofronie, Artigos de Toda Espécie para Cabelos”. Della subiu a correr um lance de escada e se deteve no alto, arquejante, para recompor-se. Madame, corpulenta, alva demais, fria, dificilmente faria jus ao nome de “Sofronie”.

- Quer comprar meu cabelo? - perguntou Della.

- Eu compro cabelo - disse Madame. - Tire o chapéu e vamos dar uma olhada no seu.

Despenhou-se, ondulante, a cascata de águas castanhas.

- Vinte dólares – ofereceu Madame, erguendo a massa com mão prática.

- Dê-me o dinheiro depressa – pediu Della.

Oh, as duas horas seguintes voaram com asas róseas. Perdoe-se a metáfora gasta. Della se pôs a vasculhar as lojas à procura de um presente para Jim.

Encontrou-o por fim. Fora certamente feito para ele e para ninguém mais. Nada havia que se lhe parecesse nas outras lojas, e ela as revirara de alto a baixo. Era uma corrente de platina, curta, simples e de modelo discreto, proclamando adequadamente seu valor por sua mesma substância e não por qualquer ornamentação espúria – como o devem fazer todas as coisas boas. Era digna até do Relógio. Tão logo a viu, soube que tinha de ser de Jim. Era como ele. Serenidade e valor – a descrição se aplicava a ambos. Vinte e um dólares cobraram-lhe por ela, e Della correu para casa com os oitenta e sete centavos. Com aquela corrente no relógio, Jim poderia preocupar-se decentemente com o tempo na frente de qualquer pessoa. Grande como era o relógio, ele às vezes o consultava meio envergonhado devido à velha tira de couro que usava em lugar de corrente.

Quando Della chegou a casa, seu embevecimento cedeu lugar a um pouco de prudência e razão. Pegou os ferros de frisar, acendeu o gás e pôs-se a reparar os estragos causados pela generosidade acrescida ao amor. O que sempre é uma tarefa muito árdua, queridos amigos – uma tarefa gigantesca.

Ao cabo de quarenta minutos, sua cabeça estava coberta de pequenos caracóis cerrados, que a faziam parecer, admiravelmente, um menino vadio. Contemplou sua imagem no
espelho durante longo tempo, crítica e cuidadosamente.

- Se Jim não me matar – disse consigo mesma – antes de olhar-me pela segunda vez, dirá que pareço uma corista de Coney Island. Mas que podia eu fazer... oh, que podia eu fazer com um dólar e oitenta e sete centavos? Às sete horas, o café estava preparado e uma frigideira quente no fogão esperava o momento de fritar as costeletas.

Jim nunca se atrasava. Della dobrou a corrente no côncavo da mão e sentou-se a um canto da mesa, perto da porta pela qual ele sempre entrava. Ouviu então seus passos no primeiro lance da escada e empalideceu por um instante. Ela tinha o hábito de rezar pequenas preces silenciosas a propósito das mínimas coisas diárias, e agora murmurava:

- Oh, Deus, fazei-o, por favor, achar-me ainda bonita!

A porta se abriu, Jim entrou e a fechou. Parecia magro e muito sério. Pobre sujeito, apenas vinte e dois anos e já responsável por uma família! Precisava de um sobretudo novo e não tinha luvas.

Jim avançou alguns passos, tão rígido quanto um perdigueiro na pista de uma codorniz. Seus olhos estavam fitos em Della e havia neles uma expressão que ela não conseguia ler e que a aterrorizava. Não era raiva, nem surpresa, nem desaprovação, nem horror; não era nenhum dos sentimentos para os quais ela estava preparada. Ele simplesmente a fitava com aquela peculiar expressão na face.

Della esgueirou-se para fora da mesa e se encaminhou para ele.

- Jim, querido – gritou –, não me olhe desse jeito! Mandei cortar o cabelo e o vendi porque não poderia passar o Natal sem dar um presente a você. Ele crescerá de novo...não se aborreça, por favor. Eu tinha de fazer isso. Meu cabelo cresce terrivelmente depressa. Diga “Feliz Natal!”, Jim, e fiquemos felizes. Você não sabe que coisa bonita, que belo presente tenho para você.

- Mandou cortar o cabelo? – perguntou Jim a custo, como se não tivesse ainda compenetrado desse fato patente após o mais árduo esforço mental.

- Cortei-o e vendi-o – disse Della. - Você não continua a gostar de mim do mesmo jeito, então? Estou sem cabelo, não estou?

Jim olhou à volta do aposento de modo curioso.

- Você diz que seu cabelo se foi? – insistiu, com um ar de quase idiotia.

- Não precisa procurar por ele – disse Della. - Foi vendido, como lhe disse...vendido, não está mais aqui. É Véspera de Natal, querido. Seja bonzinho comigo, fiz isso por sua causa. Talvez fosse possível contar os cabelos da minha cabeça – continuou ela, com súbita e grave doçura – mas ninguém poderá jamais avaliar o meu amor por você. Posso fritar as costeletas, Jim?

Emergindo do seu transe, Jim pareceu despertar rapidamente. Abraçou a sua Della. Por dez segundos, contemplemos, com discreta atenção, qualquer objeto inconseqüente, noutra direção. Oito dólares por semana ou um milhão por ano – qual a diferença? Um matemático ou uma pessoa arguta daria a resposta errônea. Os magos trouxeram presentes valiosos, mas isso não estava entre eles. Esta asserção obscura será esclarecida mais tarde.

Jim tirou um pacote do bolso do sobretudo e atirou-o sobre a mesa.

- Não me interprete mal, Della – disse. - Não acho que haja alguma coisa, corte de cabelo, raspagem ou xampu, capaz de fazer-me gostar menos da minha mulherinha. Mas se você abrir esse pacote, poderá ver por que fiquei abafado no princípio.

Alvos dedos ligeiros desfizeram o atilho e o embrulho. Ouviu-se então um grito estático de alegria, e depois, ai!, uma súbita mudança feminina para as lágrimas e os gemidos, que exigiram o imediato emprego de todos os poderes de consolação do senhor do apartamento.

Pois sobre a mesa jaziam Os Pentes – o jogo de pentes para cabelos que Della adorara havia muito numa vitrine da Broadway. Belos pentes, de tartaruga legítima, orlados de pedraria – da cor exata para combinar com o lindo cabelo desvanecido. Eram pentes caros, ela o sabia, e seu coração se limitara a desejá-los e a suspirar por eles sem a menor esperança de vir um dia a possuí-los. E agora pertenciam-lhe, mas as tranças que os anelados enfeites deveriam adornar não mais existiam.

Ela, porém, os apertou contra o peito e, por fim, pôde erguer os olhos nublados, sorrir e dizer:

- Meu cabelo cresce tão depressa, Jim!

E então Della pulou como um gatinho chamuscado e gritou:

- Oh! oh!

Jim ainda não vira o seu belo presente. Ela lho estendeu ansiosamente na palma da mão aberta. O fosco metal precioso parecia brilhar com o reflexo do seu jubiloso e ardente espírito.

- Não é uma beleza, Jim? Vasculhei a cidade toda para achá-lo. Doravante, você terá de ver as horas uma centena de vezes por dia. Dê-me o seu relógio. Quero ver como fica nele.

Em lugar de obedecer, Jim deixou-se cair no sofá, pôs as mãos atrás da cabeça, e sorriu:

- Della – disse – vamos pôr os nossos presentes de Natal de lado e deixá-los por algum tempo. São lindos demais para poderem ser usados agora. Vendi o relógio para conseguir o dinheiro com que comprei os seus pentes. Que tal se você fritasse as costeletas agora?

Os magos, como sabem, eram homens sábios – homens maravilhosamente sábios – que trouxeram presentes para a Criança na manjedoura. Inventaram a arte de dar presentes natalinos. Sendo eles sábios, seus presentes eram sem dúvida igualmente sábios. Possivelmente admitiam o privilégio de troca em caso de duplicação. E aqui lhes contei canhestramente a desimportante crônica de duas crianças tolas, num apartamento, as quais da maneira a mais insensata, sacrificaram, uma pela outra, os maiores tesouros de seu lar. Mas como derradeira palavra para os sensatos dos dias que correm, seja dito que, de todos que dão presentes, os dois foram os mais sábios. Todos que dêem e recebam presentes como os deles são os mais sábios. Em toda parte, os mais sábios. São os magos (por O.Henry).

O.Henrypseudônimo de William Sidney Porter, nascido em 11 de setembro de 1862, na cidade de Greensboro, Carolina do Norte (EUA). Filho de Algernon Sidney Porter, médico, e Mary Jane Virginia Swaim Porter. Em 1884, Porter mudou-se para Austin. Por três anos, morou em um quarto na casa de Joseph Harrell. Nesse período trabalhou como desenhista, farmacêutico, gerente de banco e jornalista, tendo adotado pela primeira vez o pseudônimo de O. Henry que algumas fontes afirmam derivar da maneira como o gato da família Porter costumava ser chamado, “Oh, Henry”. Em 1887, casou-se com Athol Estes Roach, com quem teve um casal de filhos. Em 1894, William Porter foi acusado de ser o autor de um desfalque ocorrido no First National Bank de Austin, onde havia trabalhado. Fugiu para New Orleans e, em seguida, para Honduras, onde viveu por dois anos. Por conta do grave estado de saúde da esposa, retornou para Austin. Embora até hoje haja dúvidas sobre o seu grau de culpabilidade no desfalque do banco, em 1897 foi preso e condenado a cinco anos de prisão. Em 1901, porém, foi libertado por bom comportamento. A prisão marcou profundamente sua vida, quer pela misericórdia e compreensão em relação aos desventurados, criminosos e sofredores de todo o tipo, manifestada em toda a sua obra; quer pelos problemas com alcoolismo e pela reclusão sob a qual viveu até o fim dos seus dias. Morreu pobre, de cirrose, num hospital de Nova York, a 5 de junho de 1910.
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Imagens: Vitor Nogueira (Reis Magos); O.Henry, autoria desonhecida.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Nöel dans Québec

Québec. Une ville fabuleuse d’un pays fantastique, habitant pour un peuple magnifique. Je visité Québec et Le Québec pendant l’été de 2008, quand la ville a fait 400 ans. Je ne connais pas le Nöel de Québec, mais je pense que lá, le Nöel est une fête interessant parce que les québécois sont trés sympathique, généreux et hospitalier, comme le peuple de Salvador. De plus, Québec est une ville trés belle, comme est possible voir en le film à bas. D’accord une amie québécoise, la ville de Québec est la place le plus joli en Amérique du Nord dans l'hiver. Será ? Peut-être. Joyeux Nöel pour tout monde! (pour Sílvio Benevides)


Image: La ville de Québec pour Sílvio Benevides.

domingo, 20 de dezembro de 2009

Rei Menino

No princípio já existia o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava, no princípio com Deus, tudo começou a existir por meio dele, e sem Ele, nada foi criado. Nele estava a Vida e a Vida era a luz dos homens. A luz resplandece nas trevas, mas as trevas não a admitiram. Surgiu um homem enviado por Deus, cujo nome era João. Veio como testemunha, para dar testemunho da luz, a fim de todos crerem por Seu intermédio. Ele não era a luz, mas veio para dar testemunho da luz. O Verbo era a luz verdadeira que, vindo ao mundo, a todo o homem ilumina. Estava no mundo, e o mundo foi feito por Ele, mas o mundo não O conheceu. Veio ao que era Seu e os Seus não O receberam, aos que crêem nele, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus. E o Verbo fez-se homem e habitou entre nós, e nós vimos a sua glória, glória que Lhe vem do Pai, como Filho único cheio de graça e de verdade. João dá testemunho dele e exclama nestes termos: “Este é Aquele de quem eu disse: o que vem depois de mim passou à minha frente porque existia antes de mim”. E a Sua plenitude é que todos nós recebemos, graça sobre graça. Porque, se a lei foi dada por meio de Moisés, a graça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo. Ninguém jamais viu Deus: o Filho único, que está no seio do Pai é que O deu a conhecer (Jo, 1:1-18).

O Natal significa para os cristãos do mundo inteiro a celebração pelo nascimento de Cristo, a celebração pela encarnação do Verbo. Verbo que instituiu o amor, o cuidado e o respeito ao próximo como o principal e mais importante dos seus mandamentos. Esse é o sentido do Natal para os cristãos. Ao menos deveria ser. Infelizmente, esse sentido está se perdendo e a principal personagem desta festa está, ano a ano, perdendo espaço para uma outra, que não deveria passar de um mero figurante, o Papai Noel. O consumismo desenfreado de nossos tempos elevou Papai Noel à categoria de estrela maior do Natal. Quanto a Jesus e seu legado, este se perde pouco a pouco. Para tentar resgatar o real sentido dos festejos natalinos, o Poema Falado deste mês (excepcionalmente postado no domingo que antecede o Natal) traz um texto do Carlos Drummond de Andrade, Rei Menino, que diz: “O estandarte do Rei não é de púrpura e brocado, é um lírio flutuante sobre o caos, onde ambições se digladiam e ódios se estraçalham. O Rei vem cumprir o anúncio de Isaías: vem para evangelizar os brutos, consolar os que choram, exaltar os cobertos de cinza, desentranhar o sentido exato da paz, magnificar a justiça. Entre Belém e Judá e Wall Street, no torvelinho de negações e equívocos, a vergasta de luz deixa atônitos os fariseus. Cegos distinguem o sinal, surdos captam a melodia de anjos-cantadores, mudos descobrem o movimento da palavra. O Rei sem manto e sem jóias, nu como folha de erva, distribui riquezas não tituladas. Oferece a transparência da alma liberta de cuidados vis. As coisas já não são as antigas coisas de perecível beleza e o homem não é mais cativo de sua sombra. A limitação dos seres foi vencida Por uma alegria não censurada, graça de reinventar a Terra, antes castigo e exílio, hoje flecha em direção infinita. O Rei, criança, permanecerá criança mesmo sob vestes trágicas porque assim o vimos e queremos, assim nos curvamos diante do seu berço tecido de palha, vento e ar. Seu sangrento destino prefixado não dilui a luminosidade desta cena. O menino, apenas um menino, acima das filosofias, da cibernética e dos dólares, sustenta o peso do mundo na palma ingênua das mãos”. Boa leitura e um ótimo Natal! (por Sílvio Benevides).
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Imagem: Natividade (1597), obra de Federico Barocci.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

A Joana em mim

Em que consiste a solidão? Seria ela lava que tudo cobre, conforme escreveu o Paulinho da Viola, ou seria a situação dos sábios cuja autonomia os leva a isolar-se em busca da perfeição? Ou seria, ainda, um fato patológico característico de diversas formas de loucura? Difícil responder. Talvez a solidão seja mesmo um tipo de loucura comum àqueles que têm as vidas norteadas pelas vozes da paixão. Assim percebo a trajetória de vida da heroína e santa francesa Joana d’Arc, magnificamente encenada na Sala do Coro do Teatro Castro Alves (TCA).

Vivida no palco por Jussilene Santana (melhor a cada trabalho que realiza), que já emprestou sua voz a outra heroína com características semelhantes (Maria Quitéria), Joana d’Arc foi uma figura emblemática da chamada Guerra dos Cem Anos, uma série de conflitos armados ocorridos ao longo dos séculos XIV e XV entre a França e a Inglaterra e os seus respectivos aliados. Filha de camponeses, iletrada e com um insuficiente conhecimento militar, Joana, orientada pelas vozes divinas de São Miguel Arcanjo, Santa Catarina e Santa Margarida, esteve à frente de importantes vitórias empreendidas pelas tropas francesas no ano de 1429, sendo a principal delas a Batalha de Orleáns, cujo desfecho favorável aos franceses modificou os rumos do conflito.

Em nome da sua paixão por Deus e por seus ideais de liberdade, Joana d’Arc transgrediu valores sobre os quais se apoiava a sociedade patriarcal da sua época. Como mulher, jamais poderia combater e muito menos comandar milhares de homens nos campos de batalha, ainda por cima vestida de homem e alegando seguir as orientações de vozes divinas, que, ao invés de se comunicarem com autoridades abalizadas, preferiram conversar com uma campesina humilde e iletrada. Meteu-se em assuntos restritos ao universo dos machos adultos e pagou um preço alto por não saber ou, talvez, recusar-se a ocupar o seu lugar. Ao ser capturada e, posteriormente, vendida aos ingleses, Joana conheceu a solidão que normalmente experimentam aqueles que ousam transgredir em nome daquilo em que crêem. Confinada nas masmorras de Ruão, até mesmo as divinas vozes que a acompanharam desde os seus 13 anos silenciaram. Tem início, então, um dos momentos mais tocantes do espetáculo. Joana brada sua dor, alegando suportar qualquer coisa, exceto aquele silêncio atordoante, aquela solidão sufocante, solidão esta estranhamente familiar, pois se trata da solidão humana perante seu destino inevitável.

Os sinos negros repicam nas praias do Atlântico Norte: de certo na vida temos apenas a morte”. Assim falava o silêncio para Joana. Morrer é como cartão de crédito. Trata-se de uma experiência pessoal e intransferível, portanto, individual e totalmente solitária. Joana sabia que ia morrer. Ninguém a reclamou, ninguém tentou resgatá-la. Ela fora abandonada por todos, até mesmo pelas vozes. Sua morte social já havia iniciado. A morte física era apenas uma questão de tempo, pouco tempo. “Muitas pessoas morrem gradualmente [...] Isso é o mais difícil – o isolamento tácito dos velhos e [também] dos moribundos da comunidade dos vivos, o gradual esfriamento de suas relações com pessoas a que eram afeiçoados, a separação em relação aos seres humanos em geral, tudo que lhes dava sentido e segurança” (Norbert Elias, In: A solidão dos moribundos). Por isso o brado da Joana encarcerada ecoou feito um trovão pela Sala do Coro, despertando a Joana em mim, que também bradou e chorou.

Reconhecer em mim uma Joana que eu sequer imaginei existir é um mérito do texto escrito pela Cleise Furtado Mendes. Joana d’Arc possui uma característica comum aos textos produzidos pelos grandes poetas. Ele dialoga diretamente com nossa alma como se parte dela fizesse desde sempre. Só mesmo grandes escritores são capazes disso. Como se não bastasse um texto poderoso, a direção e a iluminação não menos poderosas da Elisa Mendes, os belos cenário e figurinos do Zuarte Júnior e, claro, as interpretações brilhantes e marcantes de Jussilene Santana (Joana d’Arc), Antônio Fábio (La Hire), Caio Rodrigo (Duque d’Alençon e Guarda), Carlos Betão (Promotor), Hamilton Lima, estupendo como o Conselheiro do Rei e o Bispo, Jefferson Oliveira (Jovem Soldado, Guarda e São Miguel Arcanjo, cujo vôo com a Joana d'Arc nos braços é outro momeno emocionante do espetáculo) e Widoto Áquila (Warwick), fazem da montagem Joana d’Arc uma experiência que, sem dúvida, vale a pena ser vivenciada. Imperdível! (por Sílvio Benevides)
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Imagem: Cartaz do espetáculo Joana d'Arc, projeto gráfico Carlos Vilmar.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

O Mercado Cultural pede ...Passagem...

O mundo é pequeno pra caramba, tem alemão, italiano, italiana. O mundo filé milanesa, tem coreano, japonês, japonesa. O mundo é uma salada russa, tem nego da Pérsia, tem nego da Prússia. O mundo é uma esfiha de carne, tem nego do Zâmbia, tem nego do Zaire”. Essa música do André Azambuja pode muito bem definir o espírito do Mercado Cultural, um evento que a cada ano nos surpreende ao trazer para a cidade artistas magníficos dos mais diferentes lugares do planeta, que, com suas performances admiráveis, transformam Salvador em uma grande salada multicultural de sabor ímpar.

Não há dúvida de que o Mercado Cultural é o maior e melhor evento de difusão da cultura dos povos da Bahia, do Brasil e de tantos outros espalhados pelo imenso palneta Terra. É um espaço, de fato, onde as misturas ocorrem. Não uma mistura superficial e enganosa, uma misturaê, promovida por quem nada entende de cultura para tantos outros cuja bagagem nada tem, além de ressaca. No Mercado Cultural é diferente, pois suas misturas nos fazem viajar além das nossas fronteiras por meio de apresentações espetaculares nos palcos das cidades por onde passa, debates, conferências e workshops com artistas locais e de outros locais daqui e do resto do mundo. Por tudo isso as misturas promovidas pelo Mercado Cultural se perpetuam muito além das nossas lembranças.

Na sua IX edição o Mercado Cultural trouxe para Salvador uma diversidade inesquecível de sons e ritmos. A viagem teve início na noite do dia 03/12 com a apresentação do Boi de Dona Laurinha (Dário Meira-BA) e do Terno dos Ferreira (Boa Nova-BA). Os grupos, formados por pessoas de diferentes gerações, proporcionaram aos espectadores uma viagem pelas tradições natalinas do nosso povo, que há muito reverencia o nascimento de Jesus, a encarnação do Verbo, com muita música, dança e alegria. Festa para encher os olhos e relembrar os tempos da infância. A noite terminou com a apresentação do grupo paulista A Barca, uma “expedição musical rumo ao maravilhoso”, como eles mesmos se definem, cujo trabalho vai além da criação artística. O grupo faz pesquisas sobre a cultura popular brasileira, sua fonte de inspiração, e realiza trabalhos de criação, documentação, arte-educação, produção cultural e reflexão sobre o ofício do artista e sua responsabilidade sócio-cultural. Magnífico desde a origem ao produto final. Destaque para as vozes sublimes das duas tripulantes Juçara Marçal e Sandra Ximenez. Lindas!

A viagem cultural continuou na noite seguinte, 04/12. Desta vez foram percorridas as paragens históricas da França dos tempos da Joana D’Arc, espetáculo teatral magnificamente escrito por Cleise Mendes, brilhantemente dirigido por Elisa Mendes e extraordinariamente interpretado por Jussilene Santana e companhia (Carlos Betão, Caio Rodrigo, Jefferson Oliveira, Hamilton Lima, Antônio Fábio e Widoto Áquila), em cartaz na Sala do Coro do Teatro Castro Alves (TCA). Simplesmente imperdível! Depois, foi a vez de trilhar as sendas culturais da Galícia e Guiné-Bissau, com a dupla Aló Irmão, formada pelos músicos Narf e Manecas Costa, cujo som toca nossos corações, pois nos fazem relembrar nossa ancestralidade ibero-africana. Por essa razão, o Aló Irmão nos soa tão familiar. Em seguida, chegou o momento de andar por veredas sul coreanas através do som forte e poderosíssimo do Sonagi Project, criado por Jang Jae Hyo, vocalista e percussionista do grupo. Herdeiro da cultura xamã da Coréia, a importância do Sonagi Project, segundo Nicolas Ribalet, produtor cultural, consiste no fato de o grupo ter resistido aos apelos da releitura, tão comum nesses tempos pós-modernos. “O fato é que eles não estão misturando a sua música com jazz ou rock, e que não estão tentando adaptar a tradição aos sons de hoje. Trata-se de cinco jovens que decidiram usar apenas os seus tambores para nos levarem ao seu mundo. Um mundo bem moderno, por sinal. Para nos contar algo novo, algo pessoal e único. Os seus instrumentos são meios modernos, feitos para a expressão, à livre expressão. Técnicas podem variar na criação dos sons necessários para falar e contar histórias. Para cantar ou para chorar. Para percurtir ou para pintar. Através de suas baquetas de bambu, eles traçam a caligrafia musical, direta e instintiva. São poucos caracteres sobre o papel, mas o seu significado é tão amplo quanto o mundo. Esse significado que é tão nosso quanto deles”.

No terceiro dia (05/12), a viagem cultural teve início com o espetáculo de dança da artista Maureen Fleming, cuja performance é tão suave como uma brisa primaveril e vigorosa como as apresentações de uma ginasta olímpica. Acompanhada pelas belas notas do pianista Bruce Bubaker, a dança de Maureen Fleming assemelhava-se, em alguns momentos, aos traços vibrantes do Pieter Pauwel Rubens, especialmente aos que podem ser vistos na sua tela O Juízo Final, na qual corpos caem do firmamento feito plumas que se desprendem dos pássaros em vôo de arribação. Incrível a capacidade do ser humano em criar coisas belas! No momento seguinte da viagem, nos deparamos com as paisagens mexicanas oriundas dos acordes dissonantes de Juan Pablo Villa e das imagens efêmeras do Arturo Lopez. Autoral e experimental, o espetáculo nos faz lembrar dos muros que ainda separam e dilaceram a humanidade. Nada melhor que a arte e a cultura para pulverizá-los como fazia o Arturo Lopez com suas criações fugazes de água, tinta e areia. Nessa viagem cultural também havia espaço para a reflexão sobre os destinos de todos nós em um mundo cada vez mais segregacionista. A noite terminou com o estupendo e vibrante show do Idan Raichel Project. Idealizado por Idan Raichel, o grupo musical surgido em Israel em 2002 mistura sons, ritmos, tradições e almas da África, da América Latina, do Leste Europeu e do Oriente Médio. O resultado é uma miscelânea de talento ímpar, sensualidade e vigor musical contagiante que nos faz pensar que um mundo melhor é, sim, possível, mas somente quando as fronteiras deixarem de existir e os muros (invisíveis ou não) forem derrubados. Na arte isso já ocorre e o Idan Raichel Project é o melhor exemplo. É preciso levar essas misturas adiante, isto é, ao mundo cotidiano e, principalmente, ao mundo da política. Sim, os políticos e embaixadores desse planeta precisam aprender com a arte e os artistas, sobretudo com aqueles que se propõem a derrubar os muros invisíveis que nos separam, como faz de maneira brilhante o israelense Idan Raichel com o seu projeto musical. Projeto esse que chama atenção não apenas pela música, mas, também, pela beleza dos seus integrantes, especialmente os/as vocalistas que, certamente, agrada a árabes, judeus, gregos e troianos. E também aos soteropolitanos das mais variadas tendências! Do México para Israel em um breve espaço de respirar. Só mesmo no Mercado Cultural assim se pode viajar.

A jornada cultural promovida pelo Mercado finalizou no dia 06/12 com um encontro deveras inusitado. A noite começou com a apresentação do Samba de Dona Dete, oriundo da zona rural de Dário Meira (BA). De acordo com a organização do Mercado Cultural, “a influência do candomblé é marcante nos toques dos atabaques, nos cantos e nas danças – todos decorrentes de cerimônias religiosas que elaboram [e liquefazem] os problemas e celebram as alegrias do dia-a-dia da comunidade”. Guardiães de uma tradição secular, a apresentação do Samba de Dona Dete no palco do TCA foi como apreciar um belo pássaro preso em uma gaiola. Belo, mas incompleto, pois aprisionado. Em seguida aterrissa no centro daquela grande arena teatral um cometa arrasador vindo dos paramos de Pernambuco. Era o grupo Bongar, composto por seis primos, herdeiros culturais do Terreiro de Xambá, do Quilombo do Portão do Gelo, região de Olinda. O som forte e pulsante do Bongar mistura a musicalidade do Coco da Xambá, uma vertente do Coco, típico do Nordeste do Brasil, com ciranda, maracatu, candomblé, entre outros ritmos da cultura brasileira. Para Guitinho, o vocalista do grupo, o melhor de participar do Mercado Cultural foi descobrir que na Bahia se faz música de verdade e que a cultura daqui não é só o que a TV mostra. Seria bom que muito mais gente tivesse ouvido essa observação. Depois do samba e do coco entrou em cena a diva coreana (ao menos era o que parecia ser) Chae Soo-Jung e sua Korean Traditional Music Performance Company. Segundo o material de divulgação do Mercado Cultural, a companhia musical coreana “participa do esforço em buscar o que é novo na música, ela almeja fazê-lo mantendo-se fiel à essência da música tradicional coreana. A Companhia está comprometida em preservar e levar as qualidades tradicionais da música coreana aos públicos contemporâneos”. Um espetáculo encantador, sobretudo, para nós que temos pouco ou nenhum contato/acesso à cultura oriental, em especial da Coréia. Agora responda: onde mais se pode ouvir samba, coco e música tradicional coreana? Coisa assim só se vê no Mercado Cultural.

E essa viagem multicultural chegou ao fim. O mais estranho de tudo foi constatar que um evento de tamanha magnitude, responsável por conectar Salvador ao que há de melhor e mais criativo na produção artístico-cultural do Brasil e do resto do mundo costuma ser ignorado pela imprensa local. Um evento como esse deveria ser exaustivamente divulgado nos veículos de comunicação porque não é todo dia que os soteropolitanos têm a oportunidade de interagir com uma produção artística de alto nível e comprometida mais com a preservação e difusão de valores culturais e estéticos do que com o lucro, único propósito da produção de massa, para a qual não falta espaço de divulgação. Esse comportamento dos nossos veículos de comunicação é estranho e lastimável. Mas esse fato é um fato menor. O importante é que nada diminui a beleza e magnitude do Mercado Cultural cujo encerramento, este ano, em Salvador, deixou muita saudade. O bom é saber que o Mercado continuará até 12/12 com sua caravana que passará por Ibirataia (08/12), Ipiaú (09/12), Dário Meira (10/12) e Boa Nova (11 e 12/12) com o Festival de Reisados, feira de artes e apresentações de artistas que estiveram no palco do TCA, como o Sonagi Project e o grupo Bongar. Quanto a Salvador, em 2010 teremos mais. Vida longa para o Mercado Cultural! (por Sílvio Benevides)
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Imagens: Patrícia Carmo (cartaz Joana D'Arc); Rose Vemelho (cartaz Mercado Cultural); Sílvio Benevides.